Drummond

Por Silviano Santiago*, via Suplemento de Cultura da Secretaria de Estado de Cultura/MG

DrummondO século 20 é o irmão mais velho do poeta Carlos Drummond de Andrade, que nasceu em Itabira do Mato Dentro no ano de 1902.

Em companhia do irmão mais velho, o menino Carlos vê o sulco de prata do cometa Halley a cortar em 1910 os céus de Itabira. Sabe da Grande Guerra de 1914-1918 pelos jornais da província e, entre germanófilo e descrente, vai trocando as calças curtas pelas compridas.

Na década de 1920, já em Belo Horizonte, o rapaz vive a molecagem e a orgia das vanguardas internacionais. A “pedra no meio do caminho”, que publica, será divisora de águas, como uma tela de Pablo Picasso. Prepara-se para a vida pública. Forma-se em Farmácia, faz jornalismo e flerta com a política estadual. Dá certo o namoro com a política e, funcionário público federal na capital da República, descobre-se um poeta preocupado com o Homem, ser rebelde e precário, e com as grandes causas humanistas. Politiza-se à esquerda durante a Segunda Guerra Mundial. Luta com palavras e com outras armas contra a ditadura Vargas, o Eixo e a intolerância nazifascista. Com o russo entra em Berlim. Com o homem do povo Charlie Chaplin promete destruir o mundo capitalista e com o poeta francês Paul Eluard grafita a palavra Liberdade em todos os muros da cidade. A Segunda Guerra Mundial chega ao fim, cai o Estado Novo. Na busca de coerência entre arte e política, o poeta se filia ao Partido Comunista Brasileiro. Abandona as hostes getulistas, vivendo apenas da sua produção escrita. Ainda juntos – irmão mais velho e irmão mais novo − chegam à idade madura. O poema “Dentaduras duplas” constata: “Rugas, dentes, calva…”.

Já cinquentões, Século & Poeta entram pelos anos 1960. Veem crescer os jovens rebeldes nascidos na metade do século − os filhos de Hiroxima, como se disse na Europa, ou a multidão de universitários pertencentes ao “war baby boom”, como os americanos denominaram o fenômeno de maneira pragmática. São filhos de pais traumatizados pela chacina da guerra, do campo de concentração e da bomba atômica. Ao mesmo tempo, são jovens com o alto nível de escolaridade proporcionado pelas sociedades do Primeiro Mundo. Vivem as riquezas ditas inesgotáveis do após-guerra e o clima da guerra fria.

Maio de  68, na França

Maio de 68, na França

Os novos universitários são cabeludos e radicais. Embalados pelas drogas e ao som do rock&roll, abrem as portas da percepção e declaram que os velhos − o século 20 e os nascidos com ele − estão vendidos ao Sistema. Já não prometem destruir o mundo capitalista, começam a apedrejá-lo com os paralelepípedos das ruas de Paris. Se Século & Sistema aceitam de início a luta armada juvenil, amoldando-se aparentemente ao seu gosto anárquico e terrorista, é para logo retomarem o controle da situação. Nas últimas décadas de vida do poeta, Século & Sistema tornam-se repressivos, tradicionalistas e conservadores. Voltam os olhos para os regimes totalitários que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, para as formas autoritárias de controle da população civil e para a despreocupação da belle époque, fazendo o elogio da sociedade de consumo. O poeta maduro acompanhou o movimento geral do irmão mais velho, o Século 20, e passou a se deleitar com a lembrança da infância feliz em Itabira, ao mesmo tempo em que, no fio de alta tensão da poesia, vivia os valores rurais e patriarcais, inscritos na “tábua da lei mineira de família”. Irmão mais velho e irmão mais novo sobrevivem no futuro do passado. Como diz Drummond em Menino antigo: “Não saí para rever, saí para ver / o tempo futuro”. E na coleção de poemas Esquecer para lembrar, confessa: “Com volúpia / voltei a ser menino”.

Até a década de 1950, o século 20 tinha nascido para as grandes revoluções sociais pregadas pelo determinismo histórico inventado pelo século 19. A estrutura socioeconômica da sociedade nossa contemporânea era idêntica à de um edifício frágil e carcomido, que tinha de ser demolido. No seu lugar, seria levantado o edifício justo e igualitário das utopias socialistas. Esse sentimento leva o poeta a predizer: “Que século, meu Deus! diziam os ratos / E começavam a roer o edifício”. De 1970 para cá, estamos compreendendo que o século 20 sobrevive sob o signo de Marcel Proust e de A la recherche du temps perdu. Em busca do tempo perdido, acabam todos por passar pela experiência da madeleine e dos avós. Século das biografias e das autobiografias, século dos diários íntimos e das correspondências, século dos romances e poemas que são alimentados pela memória do artista. E tudo porque Freud descobriu, no apagar das luzes do século 19, o inconsciente e a sexualidade infantil.

À medida que Carlos Drummond se aprofunda no inconsciente e na infância, restringe-se sua preocupação com a sociedade universal. Primeiro, restringe-se ao grupo nacional a que pertence e, em seguida, à célula familiar que se responsabiliza por ele. A crise do liberalismo dos anos 1930, gerada pelos regimes revolucionários tanto da esquerda quanto da direita, cuja redenção estaria na sociedade justa do futuro, acaba por encontrar a solução prática, quando o cidadão descobre a sua comunidade e abandona as utopias universais, autodefinindo-se neoliberal. Ao final do século 20 e no início do milênio, a comunidade é o melhor antídoto contra qualquer pensamento, qualquer ação revolucionária universal. Cultivamos o nosso jardim e redescobrimos o bom senso de Voltaire. A crise do liberalismo, enquanto sistema sócio-político universal, não termina pelas utopias de esquerda ou de direita, mas pela… redescoberta do liberalismo.

Enquanto jovens, Século & Poeta gastam energia na rotina das boas ações sociais e do inconformismo político. Profissionais, racionalizam a integração ao Sistema como inevitável. E maduros, descobrem que eles e todos nós já estávamos no inconsciente e na família. E saímos em busca de nós mesmos. Mais sabidos e mais racionais, empilhamos livros, conhecimento, teorias, e deixamos a ação revolucionária transformadora do planeta para a geração seguinte. Ultimamente, com a ajuda do poeta Mallarmé, andamos redescobrindo que a carne, depois de lidos todos os livros, fica triste. “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres”. E tome discussão sobre o prazer.

*

O sucesso de público de Drummond, a validade do seu texto em termos estéticos, históricos e sociológicos, a unanimidade em torno da escolha da sua obra poética como a mais significativa do Modernismo brasileiro, tudo isso advém do fato de que a sua poesia dramatiza de forma complexa e original a oposição e a contradição entre Marx e Proust, entre a revolução político-social, instauradora de uma Nova Ordem Universal, e o gosto pelos valores tradicionais do clã familiar dos Andrades, seus valores socioeconômicos e culturais.

Ao fazer essa constatação, evitamos ver o conjunto dos poemas e livros de Drummond como articulados pela sucessão cronológica das publicações, ou como explicados pelo amadurecimento gradual do poeta. Preferimos, portanto, julgar o conjunto da obra como organizado por essas duas linhas de força paralelas e contraditórias. Ao ler os livros reunidos, temos, de um lado, textos poéticos que descrevem longa e minuciosamente o processo de decadência por que passa a oligarquia rural mineira nos seus constantes embates com a urbanização e a industrialização do Brasil e, do outro lado, poemas que traduzem a esperança em uma frutífera radicalização político-social, oriunda do otimismo gerado pelo movimento tenentista de 1930, otimismo este crítico da oligarquia rural onde, paradoxalmente, se situa o clã dos Andrades. Essas duas linhas de força se afirmam ou se negam, combinam-se, enroscam-se, enlaçam-se, caminham lado a lado, ocasionando a principal tensão dramática da poesia de Drummond.

De maneira nem sempre muito explícita Drummond institui dois mitos como portadores das duas opções poéticas: o mito de começo e o mito de origem.

Por mito de começo entende-se o desejo de Drummond em inaugurar, por conta própria, uma nova sociedade em que pode negar totalmente os valores do passado rural e do clã. Rompe os laços de família, para poder afirmar com convicção e radicalismo os valores de individualismo e de rebeldia que julga justos para o estabelecimento de uma futura sociedade sem classes. Tal mito é representado, desde o século 18 e na primeira poesia de Drummond, pela estória de Robinson Crusoé, “comprida história que não acaba mais”, como está escrito no poema “Infância”, de 1930. Retirado da cultura europeia por causa de desastre marítimo, Robinson arriba sozinho a uma ilha deserta, onde tem de refazer todos os passos culturais do homem. Da solidão passa a descoberta do outro, Sexta-Feira, e se empolga com o retorno à vida social. O mito de começo é um mito de rebeldia, onde trabalho e heroísmo individual se casam. No caso da poesia de Drummond, é mito de negação do Pai como transmissor da cultura, e da Família como determinante da situação socioeconômica do indivíduo na sociedade. O passado não conta, só o presente. O mundo está para ser inventado pelo homem, desde que as mãos da solidariedade sejam dadas. Nos anos de A rosa do povo, Albert Camus torna paradoxal e engajado o cogito cartesiano: “Je me révolte, donc nous sommes”. A conscientização revolucionária da multidão tem a ver com o aprimoramento político do indivíduo enquanto rebelde.

Coronelismo

Oligarquia mineira

Por mito de origem entende-se a vontade de o poeta Drummond inscrever seu projeto de vida numa ordem sociocultural mineira, em que os valores fortes da individualidade e da rebeldia perdem a razão de ser, já que são meros indícios de insubordinação passageira. Só são válidos e eternos os valores superiores do passado e da tradição. O poeta tira do rosto a máscara de Robinson Crusoé e descobre que, em si, nada vale: ele só é alguma coisa quando se identifica ao clã dos Andrades e é legitimado por ele. A ação do poeta na terra não é uma aventura robinsoniana. A curta aventura humana no planeta é uma aproximação infinita da sabedoria dos antigos por uma nova geração, sempre menos preparada. Retorna o Filho à casa do Pai, para que, depois da insubordinação juvenil, possa assumir o seu lugar na família; volta ao lar para que seja o futuro Patriarca. Tal forma de exigência social está autenticada pela fé religiosa do grupo social − o catolicismo. A transmissão dos bens culturais se dá pela herança, assim como a transmissão dos bens econômicos.

Ao se inserir na família mineira cristã e patriarcal, o poeta transcende sua vida e seu tempo, revelando seu eu autêntico na eternidade. O eu autêntico não é produto da alteridade rebelde e heroica, mas é a reprodução do mesmo, que se perpetua pela cadeia do sangue. Diz o poema “Raiz”:

Os pais primos-irmãos

avós dando-se as mãos

os mesmos bisavós

os mesmos trisavós

os mesmos tetravós

a mesma voz

o mesmo instinto, o mesmo

fero exigente amor

crucificante

crucificado

Rebeldia, insubordinação e aventura revolucionária, de um lado; arrependimento, reconhecimento tardio e obediência aos valores familiares, do outro.

*

Já em poema que leva o sugestivo título de “Infância”, publicado em 1930, a não identificação com o Pai (e com a Família) vem associada com a leitura da estória de Robinson Crusoé:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

Próximo dos seus, mas sozinho, o menino, com o livro nas mãos, começa a viver como se estivesse numa ilha banhada de mangueiras por todos os lados. Isola-se a criança quando o pai parte para o campo, a mãe se entrega à costura e o irmão mais novo ao sono. Nessa área de auto-exclusão, a criança compensa a falta de companhia familiar, vivendo em aberto a aventura do livro. O menino vive como se fosse o próprio Robinson e, ao identificar-se a ele, admite como regra de vida a moral do tudo é permitido dostoievskiano. Quando a criança joga o livro para o lado, dá-se a “Iniciação amorosa”:

A rede entre duas mangueiras

balançava no mundo profundo. […]

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um dia ela veio para a rede,

se enroscou nos meus braços,

me deu um abraço

me deu as maminhas

que eram só minhas. […].

Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde.

Longe da vida-em-família, no espaço de mangueiras, “espaço verde” (diz o poema), se situa a área do individualismo e da liberação e, também, da aventura sexual. Julgando-se um novo Robinson, o menino pratica ações transgressoras sem que sobre ele recaia julgamento moral ou social. Tudo o que é proibido na área familiar pode ser desejado e obtido na área de exclusão: a lavadeira “me deu as maminhas/ que eram só minhas”. O texto poético que fala de Robinson é também o texto que canaliza o discurso sexual transgressor.

Se os poemas que seguem a estrutura provinciana que estamos revelando se orquestram em clave individual, diferentes são os poemas onde a rebeldia robinsoniana quer afirmar-se num centro urbano, cosmopolita, longe muito longe de Itabira. Ao se alongar para a capital da República, onde Getúlio Vargas usurpa o poder, e ao se propagar pelo mundo conturbado pela Segunda Guerra Mundial, a revolta que se dava contra a família visa a uma práxis política imediata e revolucionária que questiona não só a oligarquia rural como toda a organização socioeconômica e política do Ocidente. A rebeldia solitária quer transformar-se em práxis marxista. Diz o poema “Nosso tempo”:

O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma floresta,

um verme.

Chega o momento em que Drummond quer manter o almejado diálogo com o operário, atravessando − como prega Marx no Manifesto comunista − as barreiras de classe: “[…] hoje uma parte da burguesia passa-se para o lado do proletariado, principalmente o setor dos ideólogos burgueses que chegaram a compreender teoricamente o movimento histórico em seu conjunto”. Leiamos trechos do poema “Operário no mar”:

Na rua passa um operário. […] Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze aos seus olhos. […] Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

Poema das perguntas e da insegurança, do compromisso e da dúvida ideológica, da compreensão da marcha da história e das fraquezas do indivíduo frente a ela, “Operário no mar” é também onde se percebe nítida a negação de uma esquerda festiva em Drummond. Se houver compromisso do poeta com o operário, não haverá paternalismo. Para o intelectual pequeno-burguês é fácil dar o operário como irmão nas suas investidas literárias, mas não o é no seu dia-a-dia profissional e político. Entre o Operário e o Poeta, ergue-se a muralha da classe e da desconfiança mútua.

*

Não se pense que o mito de origem venha depois, ou antes, do mito de começo numa ordem evolutiva ou histórica. No discurso poético de Drummond, os dois mitos coexistem e são responsáveis pela alta tensão dramática que salta de seus poemas, de seus livros. Se fosse preciso definir a integração dos dois mitos no todo do discurso poético drummondiano, teríamos de falar de recalque. Quando o mito de começo é recalcado, é porque brotam na superfície do poema os elementos do mito de origem − e vice-versa.

Assim é que o reconhecimento pelo poeta dos valores do clã dos Andrades é anunciado como “viagem de regresso”. Viagem de regresso ao “país dos Andrades”, com o fim de conhecer as figuras familiares que abandonam o menino entre mangueiras e são abandonadas por ele a partir do momento em que passa a viver na revolucionária ilha robinsoniana. Manifesta-se pleno o desejo de conhecimento do mecanismo social, da identidade única que organiza o relacionamento entre todos os membros do clã: “Que há no Andrade/ diferente dos demais?/ Que de ferro sem ser laje?/ braúna sem ser árvore?”.

Em viagem de regresso à área familiar, o Poeta reencontra os valores silenciosos do seu clã, da sua família nuclear e, pouco a pouco, compreende sua discreta e tirânica razão de ser, isto é, seu poder de funcionamento alheio à vontade e aos anseios mais fortes do menino solitário e do homem precário e rebelde que se politizou à esquerda.

Foi preciso que o menino Drummond perdesse primeiro os familiares, foi preciso que o poeta maduro construísse um mundo utópico alheio a ele, para que depois, ao final da vida, os recuperasse pela palavra poética na série de livros intitulada Boitempo. Leiamos o poema “Comunhão”. De início o Filho se situa fora da roda do clã, em atitude de distanciamento e de contemplação. As figuras da roda − descobre ele quando vê a cena do centro − não têm faces e só são reconhecíveis pelo que dizem em silêncio. Do momento em que o excluído entra na roda da família, abandonando a sua posição de espectador, ilumina-se toda a cena, todas as faces anônimas se acendem. O Filho assume a família no momento em que aceita sentar no lugar vazio que estava à sua espera,  previsto e designado para ele pelos antigos.

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,

eu no centro.

Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis

pela expressão corporal e pelo que diziam

no silêncio de suas roupas além da moda

e de tecidos […]

Notei um lugar vazio na roda.

Lentamente fui ocupá-lo.

Surgiram todos os rostos, iluminados.

Ao se identificar aos familiares mortos, o poeta esboça um primeiro passo em busca da origem e de seus valores sociais e econômicos. A figura do Pai, de longe e em aparente descaso pelo Filho, arma o palco da origem. Nele, o Poeta, como novo filho pródigo, representa a volta ao lar, desmistificando a artificialidade de sua palavra de começo. Representativos da dramaticidade do conflito entre indivíduo e família, entre começo e origem, são alguns versos de “Como um presente”, poema escrito para comemorar o aniversário do pai já morto:

A identidade do sangue age como cadeia,

fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,

onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.

Por que ficar neste município, neste sobrenome?

Taras, doenças, dívidas, mal se respira no sótão.

Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,

e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.

O poeta teria querido apagar da memória todo traço de hereditariedade e o peso da responsabilidade para com os antigos; teria querido circunscrever só para ele a existência dentro de uma redoma neutra, pouco exigente e inaugural, semelhante a uma tábula rasa. Restaria, pois, ao poeta pôr em prática um absurdo paradoxo: “inaugurar novos antepassados em uma nova cidade”. Mas sob o signo de Proust e do tempo perdido, são os antepassados que, ao ditar autoritariamente nossos passos e nossas normas de comportamento, nos inauguram, determinando-nos social e economicamente.

Contra o paradoxo da rebeldia contra os antigos se insurge, à maneira de vacina instilada gota a gota, a ciência do sangue que, como diz o poema, “é soprada por avós tetravós milavós”. E é através do lento aprendizado da ciência do sangue que se recebem os bens de família, bens simbólicos que, em última e derradeira instância, determinam a posição sócio-política e econômica do Poeta. Seu lugar no clã dos Andrades, o lugar do clã na comunidade, na Nação. Inexoravelmente, tradição e conservadorismo invadem as páginas do tardio Proust mineiro, confundindo-se nos poemas o patriarcalismo na família e o mandonismo na vida política local. Patriarca e coronel ressurgem das cinzas pela força da palavra poética: o futuro do passado.

*

Como estamos vendo, existem pelo menos dois Drummonds na sua poesia. O primeiro compreendeu de maneira inigualável “o tempo presente, os homens presentes”. Teria se assustado com o trabalho sangrento que o bisturi poético faz nas chagas sociais do nosso tempo? Escreve em Claro enigma, livro publicado em 1951: “Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada. / Pois que aprouve ao dia findar, / aceito a noite”.

Na década de 1950, Drummond passa o bastão de revezamento da crítica social para o jovem João Cabral de Melo Neto. Este, ao abandonar a estética mallarmaica então em vigor, busca uma poesia de maior eficácia política. Receoso do compromisso ético e ideológico que o sujeito do poema pode manter com o assunto tratado, João Cabral resolve retirar do discurso poético todo resquício de subjetividade, como se dá no poema dramático Morte e vida Severina. Como bom fenomenólogo que é, haja vista a discussão sobre teoria poética que está na plaquete “Psicologia da composição”, Cabral mostra a miséria nordestina tal como ela é, e não tal como o diplomata ou o Poeta a vê.

Por outro lado, Cabral evitou o perigo que Drummond, o segundo Drummond, assumiu autobiograficamente: conhecer em profundidade todos os valores que determinaram o homem-poeta no processo de sua realização econômica, social e política. E esses valores − espero que tenha ficado claro − são os valores do velho latifúndio mineiro. Ao assumir o discurso do Pai, do Patriarca, Drummond foi-se esquecendo de continuar a esquadrinhar com os olhos o caminho de luz que os faróis do carro poético abriam à sua frente, como o tinha feito em Sentimento do mundo. Passou a ficar embevecido com a paisagem antiga que lhe enviava o espelho retrovisor. Instalado de novo − e poeticamente − no antigo Sobrado mineiro, descobre-o muito acima dos mortais. Entre o Sobrado e a Rua, uma escada reveladora:

É teatral a escada de dois lances

entre a rua e os andrades.

Armada para a ópera? Ou ponte

para marcar isolamento?

.

O texto aqui reproduzido foi lido pelo autor na conferência de abertura da 10ª Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, no dia 4 de julho de 2012.

* Silviano Santiago é professor de Literatura, ensaísta, poeta, contista e romancista.

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Morte e vida severina

O mundo de Mário de Andrade

Telê, a principal responsável pelo acervo, fala sobre a obra do escritor - Foto: Daniel Garcia

Telê, a principal responsável pelo acervo, fala sobre a obra do escritor – Foto: Daniel Garcia

Talvez não exista algo similar no Brasil. O arquivo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo, tem os manuscritos, as fotografias, as matérias de periódicos, os recortes, a correspondência, os quadros do escritor. Há também manuscritos de outros escritores. “Mário dialogava com os companheiros modernistas que mandavam a ele manuscritos de obras ainda a publicar”, conta Telê Ancona Lopez

Telê Porto Ancona Lopez, titular de Literatura Brasileira na FFLCH-USP, devotou sua vida à curadoria do Arquivo Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Coordenou o projeto temático Fapesp, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras (2006-2011). Nesta entrevista à Walnice Nogueira Galvão, publicada originalmente na Teoria e Debate, a principal responsável pela manutenção do acervo de Mário de Andrade nos fala sobre o seu trabalho com a obra do escritor..

Conte para nós como você foi parar na pesquisa da marginália (anotações autógrafas na margem dos livros) dos livros de Mário de Andrade, e daí para essa maravilha que é o Fundo Mário de Andrade. Hoje, entre suas realizações contam-se inúmeros volumes publicados, teses defendidas sob sua orientação, equipes que se formaram sob sua coordenação, projetos para os quais você arranjou financiamento. Tudo isso começou antes ou depois do doutoramento?

Antes, em 1962. Antes mesmo do meu mestrado, em 1967; meu doutoramento é 1970. O trabalho com a marginália do Mário de Andrade começa em um curso de especialização dado por Antonio Candido, em 1962, na área de Teoria Literária e Literatura comparada da Faculdade de Filosofia, da Universidade de São Paulo, em 1970. Era a análise e a interpretação do poema “Louvação da tarde”, se prolongou naquele belíssimo ensaio “O poeta itinerante”. Ficamos um semestre trabalhando o poema; praticamente em tudo: estrofação, metrificação, sonoridade, imagens, metáforas e símbolos… Nesse curso, Antonio Candido contou pra gente que o acervo de Mário de Andrade permanecia intacto na casa da Rua Lopes Chaves, cuidado pela família, com perfeita responsabilidade: biblioteca, quadros, discos, manuscritos. E nos disse que, na biblioteca do Mário, havia marginália, e que ele a conhecia. Era talvez a marginália mais importante, mais rica, no Brasil. Eu, muito afoita, levantei a mão e propus: “Professor, vamos recolher essa marginália nas férias de janeiro!”. A verdade é que foram muitos janeiros, até 1968, quando demos por terminada a tarefa. Quero lembrar que as aulas de Antonio Candido eram às sextas-feiras, na sala 11, a maior sala, no prédio da Rua Maria Antônia, e que muita gente importante vinha assisti-las, discutir o texto. (Leia depoimento de Antonio Candido sobre a trajetória do acervo)

Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Teles assistiam ao curso, você se lembra?

Claro! Vinha também o Maurice Capovilla. Falava-se também de cinema. E de política, naturalmente!

E também o secretário, José Bento?

Ele não. Em 1962, o José Bento vivia em Ribeirão Preto. Por coincidência, eram amigos do meu pai, lá. Zé Bento, quando se aposentou e voltou para São Paulo, passou a frequentar o Instituto de Estudos Brasileiros. Era um excelente amigo, sempre disposto a responder nossas questões. Sua correspondência com Mário de Andrade, que será publicada por Marcos Antonio de Moraes, oferece a minúcia do cotidiano, na casa do escritor.

E seu trabalho não acabou até hoje… Sei que o estudo da marginália você completou, li seu trabalho.

A reunião da marginália, sim. A reunião e o início do estudo dela foram trabalho de Maria Helena Grembecki, que era minha colega naquele curso de 1962; Nites Feres, que viera de Assis, já uma pesquisadora competente, e por mim, com Antonio Candido orientando as três.

Mas no levantamento da marginália do Mário eram só vocês três?

Nós três. Em 1968, a Vera Chalmers trabalhou nas férias do fim de ano, para nos auxiliar na finalização; conseguimos uma moedinha parca e ela ficou conosco dois meses.

Já era da Fapesp? A pesquisa da marginália foi financiada pela Fapesp, que acabara de ser criada?

Foi. Aliás, a remuneração da Vera Chalmers foi indiretamente da Fapesp; compartilhamos com ela nossas bolsas.

Parece que foi a primeira vez que saiu verba da Fapesp para literatura. Antes só saía para ciência. Antonio Candido propôs vocês três como bolsistas…

A primeira verba para literatura foi, de fato, a do professor José Aderaldo Castello, que viajou pelo Brasil recolhendo a produção das academias coloniais. Em 1963, Antonio Candido pediu verba à Fapesp para nosso projeto. Em 1964, estava tudo encaminhado, mas sobreveio o golpe militar e não saiu nada. Continuamos firmes, trabalhando por nossa conta. Dávamos aula para sobreviver e, no princípio, íamos à Rua Lopes Chaves duas, três vezes por semana. Depois, quando saíram as bolsas em 1965, íamos de segunda a sexta-feira. D. Lourdes, a irmã de Mário, o marido dela, Eduardo Ribeiro dos Santos Camargo e os três filhos nos recebiam com amizade e carinho; viramos gente da casa.

Quantos anos demorou esse trabalho?

Saímos da Lopes Chaves em agosto de 1968. Portanto, ficamos de 1963 a 1968. Me lembro do Antonio Candido chegando de boina, muito chique, no inverno. Eu levei minha máquina de escrever Olivetti portátil; usávamos também a Remington do Mário, por ele batizada Manuela, e a máquina do “seu” Eduardo.

Em 1967, o professor José Aderaldo Castello, da área de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, nos emprestou a máquina de fotografar/microfilmar por ele inventada para coligir documentos do movimento academicista, sua pesquisa de fôlego, que rendeu dezessete volumes publicados. Essa máquina era fantástica: sobre uma base quadrada, quatro hastes sustentavam quatro lâmpadas e o suporte de uma câmera Leica que usava filme de 12 ou de 24 poses. Era preciso recortar as beiradas com uma tesourinha para encaixá-lo na câmera. Nós nos sentíamos muito importantes, fechadas no estúdio de Mário de Andrade, fotografando no escuro. Essa máquina foi fundamental para concluirmos o nosso registro da marginália.

Vocês três microfilmaram toda a marginália?

Fazíamos a transcrição diplomática datilografando tudo o que o Mário escrevera nas margens, nas páginas de rosto ou páginas em branco dos livros e revistas, até a gente se convencer de que a marginália era mesmo um mundo. Então, o Castello nos socorreu com a sua máquina especial. Para o registro das obras e das notas marginais Antonio Candido estabeleceu duas fichas: a cor de laranja, que eu gostava de chamar de “terra de Siena”, para os dados bibliográficos, e a ficha branca, que repetia esses dados e captava as anotações marginais. Creio que o estudo da marginália foi mais uma frente pioneira de Antonio Candido, no Brasil. Perseverei nesse caminho, trabalhando a criação de Mário de Andrade na biblioteca por ele formada. Venho me ocupando das leituras como matrizes, em diálogos que se explicitam na marginália, ou não. Escrevo artigos, oriento teses e dissertações que exploram a marginália.

Depois que vocês terminaram esse trabalho de pesquisa em 1968, passaram a redigir os mestrados?

Em 1966, o Antonio Candido chegou da França e disse: “Todo mundo tem de fazer mestrado”. E nós não sabíamos muito bem o que era mestrado, mas fomos descobrindo… Então, fizemos os três mestrados, focalizando a marginália. Em 1967, foram o da Nites Feres e o meu; em 1968 o da Maria Helena Grembecki. O meu foi O se-sequestro da Dona Ausente: reconstrução de um estudo de Mário de Andrade a partir de sua marginália. Não se conhecia os manuscritos desse inédito que veio à tona durante a organização do arquivo, na década de 1970. Depois, entre 1998 e 2001, Ricardo Souza de Carvalho, meu orientando e bolsista da Fapesp, ancorado nos manuscritos, preparou a Edição genética de O sequestro de Dona Ausente de Mário de Andrade, uma excelente dissertação defendida na FFLCH. Trabalhou com a marginália e com o dossiê do manuscrito. O mestrado de Nites foi sobre as leituras em francês de Mário de Andrade, leituras formadoras do modernista; o de Maria Helena cuidou de Mário e a revista francesa L’ Esprit Nouveau. Entre 2005 em 2008, Lilian Escorel, minha orientanda e bolsista da Fapesp, mergulhou nesse tema em seu doutoramento, agora publicado, A revista L’Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas e na poética de Mário de Andrade.

Então, defendidos os mestrados, o que aconteceu, qual foi a próxima etapa?

Foi a transferência do acervo de Mário para a USP, perspectiva para lá de lúcida traçada por Antonio Candido. Em 1968, ele e o professor Castello, então diretor do Instituto de Estudos Brasileiros propuseram ao governo do estado a compra do acervo para a Universidade de São Paulo. Para figurar no patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros. Vieram especialistas para a avaliação e eu secretariei o processo todo. Houve até a parte engraçada. Começaram a aparecer, na casa da Lopes Chaves, pessoas de terno e gravata, muito circunspectas. O secretário da Cultura, nos garantia que o Mário era tão importante quanto os jogos abertos do interior, ou o reflorestamento. E a gente firme ali. Porque o acervo tinha que ir para a universidade. Deu certo. A família recebeu um valor simbólico pelo que foi, de fato, negociado: a coleção de quadros e a biblioteca.

E a coleção de arte popular também.

Também, mas o arquivo foi doado.

Em cima disso tudo? Foi uma espécie de brinde.

Bem mais que isso. Uma oferenda que marcou a alta compreensão do valor e do destino desse arquivo, por parte da família Mário de Andrade.

Como você dimensiona isso? Em termos da variedade e quantidade, como é que fica o total?

O acervo de Mário de Andrade, um intelectual cultor da memória e documentalista de si próprio, constitui uma rede sem remate, na qual as informações se correlacionam. Equivale a uma profusa e fragmentada autobiografia, cuja montagem se multiplica nos enfoques que documentos de vários tipos e natureza proporcionam. Correspondência, manuscritos da criação nas áreas do polígrafo, manuscritos de outros escritores e de músicos, programas musicais, discos, fotografias, matéria extraída de periódicos, cardápios, papéis de teor  pessoal e burocrático, a biblioteca com mais 17 mil volumes e extensa marginália, a pintura, os desenhos e as gravuras, as peças de extração popular, enfim, um prodigioso número de registros guarda uma precisa cronologia que vai dos últimos anos século 19 até fevereiro de 1945, quando Mário de Andrade morre, as 51 anos.

Sou ruim de números, mas há no ABC do IEB, uma bela publicação organizada pela professora Anna Lanna, em 2010, o total dos documentos existentes no arquivo, na biblioteca e na coleção de artes visuais do Acervo Mário de Andrade. Fui curadora do arquivo até 2008 e coordenei a classificação das séries. Um banco de dados, preparado por Fred Camargo nestes três últimos anos, alarga o alcance dos documentos em todas as séries. Entre 2006 e 20011, o projeto temático Fapesp, sob minha responsabilidade, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras, no qual tive, como coordenadores associados, os professores Marcos Antonio de Moraes e Flávia Toni, classificou um total de 130 títulos de manuscritos. O projeto visou um “catalogue raisonné”, exemplificado na nossa revista Marioscriptor. Os dois números dessa revista eletrônica do projeto temático estão no site do IEB-USP.

Não tem nada de similar no Brasil? Em porte?

Talvez não. O que existe neste arquivo, em termos de séries, é importantíssimo. Como eu disse, há os manuscritos, as fotografias, matérias de periódicos, os chamados recortes, uma riqueza inesgotável em termos de documentos e possibilidades de pesquisa, de exploração. Os manuscritos de Mário de Andrade não se restringem à série que os organiza fisicamente; estão também nos recortes de textos do escritor na imprensa, rasurados como exemplares de trabalho; estão na marginália, na qual se flagra poemas e artigos esboçados e se localiza a possível primeira versão fragmentada de Macunaíma. Estão ainda na especialíssima série Manuscritos de outros escritores, na qual, dialogando com poetas e prosadores nas margens dos textos enviados para sua leitura e análise, Mário aparece como coautor, em suas sugestões. “Aconselho-te a dormir sobre o livro – REFLEXÃO”, ele observou, por exemplo, na margem do manuscrito de Cocktails, do poeta Luís Aranha, em 1922, e, aliás, deixou um projeto para a capa do livro. Márcia Jaschke Machado, minha orientanda, preparou um bonito catálogo analítico, anotadíssimo, dos manuscritos brasileiros nessa série.

Até que ponto vai a organização do próprio Mário? Quando você fala em manuscritos de outros escritores, por exemplo, é uma organização sua ou de Mário?

É uma classificação que propus decalcada numa divisão original, considerando a particularidade do arquivo. A classificação que coordenei no IEB, apoiada na arquivística, partiu da análise do arquivo. Concretizamos essa organização, eu e os pesquisadores que comigo trabalharam na equipe Mário de Andrade do IEB. Mário de Andrade era organizado: os manuscritos de outros escritores, na casa dele, ficavam juntos em uma estante, no hall do andar superior. Não havia, contudo, uma listagem ou uma ordenação. A identificação vinha dos próprios autores, em autógrafo ou datilografia. Desenvolvi metodologia para classificar manuscritos, à luz da arquivística, da codicologia e da crítica genética, procurando compreender o processo criativo para ordenar os documentos nos dossiês. Esse é o aporte teórico novo que marcou a classificação dessa série e dos Manuscritos Mário de Andrade.

E ainda há a correspondência passiva, oito mil cartas que ele recebeu.

A correspondência existente no Arquivo Mário de Andrade foi integralmente processada; o catálogo eletrônico, concluído em 2003, com respaldo financeiro da Vitae, está em um CD-ROM e no site do IEB. As 8 mil cartas significam o conjunto: a correspondência passiva, a ativa, que reúne cartas não remetidas, cópias guardadas, bem como originais doados pelos destinatários ou suas famílias, e a correspondência de terceiros, preservada por Mário. O professor Marcos Antonio de Moraes vem trabalhando incansavelmente para obter a correspondência ativa completa de Mário e publicá-la, na ligação com a passiva. É um projeto vinculado ao CNPq.

Mas você não chegou a mencionar o que tinha no arquivo.

A correspondência estava em pastas lacradas; havia uma organização inicial, discutível, que não conservamos, mas registramos. Esse registro nos auxiliou, pois, no caso de carta sem data, contígua a outra, datada, podia-se inferir o ano, o mês etc. Outros conjuntos ou séries do arquivo estavam fisicamente separados, mas não havia um inventário, uma listagem, uma organização precisa.

Estavam em caixas ou em outro tipo de ordem?

O material do arquivo estava originalmente em envelopes e pastas de cartolina, muitas delas reaproveitadas, isto é, portando títulos sobrepostos a indicações riscadas. Mário não usava caixas. A mudança do acervo para o IEB foi feita em caixas que conseguimos no supermercado vizinho. Foram preenchidas mantendo a sequência original das obras na biblioteca. Não se seguiu regra para o transporte e nem havia recursos financeiros para isso. Nem se pensava em seguro, com avaliação dos bens a serem deslocados. Hoje, felizmente, há regras, rigor. Hoje, com o que se conhece e se obedece, nossa cabeça não nos permitiria fazer algo semelhante. A Nossa Senhora da Glória, da coleção de imagens religiosas do Mário, veio para a USP embrulhada em um cobertor, viajando no meu colo, no banco de trás do Morris do professor Castello. Tivemos muita sorte, nos nossos cuidados; nada se perdeu, nada foi danificado. Enfim, o acervo de Mário foi recebido com emoção, no IEB, bem me lembro. Dona Brasilina, funcionária da copa, creditou a sorte aos santos barrocos, pois temia Exu e Xangô que também vieram. Todo esse panteão sincrético está organizado seguindo as formas mais atuais de conservação e figura no catálogo preparado por Marta Rossetti Batista, um livro notável. No IEB, a biblioteca ficou inicialmente tempo na ordem original e as bibliotecárias apenas conferiam, ajustavam. Depois começaram a organizar.

Esse foi o seu primeiro projeto coletivo?

De certo modo sim, embora não se tivesse traçado um plano geral. Eu pedi que constasse, das fichas de catalogação, a participação das obras na marginalia e isso foi feito. A biblioteca foi organizada ao mesmo tempo que a coleção de artes visuais, esta sob a coordenação de Marta Rossetti Batista, e o arquivo, por mim com a colaboração da Equipe Mário de Andrade voltada para a formação de pesquisadores. Prestei concurso no IEB em agosto de 1968 e o primeiro trabalho foi recuperar, fichando e microfilmando, a produção de Mário de Andrade na coleção dele do Diário Nacional (1927-1932). Crítica de literatura, artes plásticas e música; crônicas, poesia e ficção. Ali descobri o cronista da coluna Táxi. Em 1972, ocorreu a primeira grande exploração do acervo de Mário, aliás de todo o acervo do IEB, para a exposição comemorativa dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Marta, Yone Soares de Lima e eu, com ajuda de José Miguel Wisnik e Carlos Augusto Calil fizemos a exposição Brasil: 1° Tempo modernista: 1917-1929. Os documentos que levantamos renderam-nos o volume de título homônimo, na elegante diagramação moderna criada pela Marta Rossetti Batista, em 1973. Fomos convidadas para a inauguração da mostra, em Paris, promoção do Itamarati. Recusamos o convite, nesse tempo da ditadora, e preparamos uma jovem escolhida fora da universidade. Desavisada, ela insistia em dizer CEdras, em vez de Cendrars.

O material de recortes era de autoria de Mário ou variava?

É todo um conjunto ou a série Matérias extraídas de periódicos que guarda uma parte da produção jornalística de Mário, contendo até rasuras a lápis e a tinta, uma parcela da crítica sobre ele e um grande número de textos de e sobre literatura brasileira, estrangeira; sobre folclore, geografia, história, música, artes visuais, tudo. Mário de Andrade era atualizadíssimo; recebia de amigos recortes de jornais e revistas da Europa e da América Latina.

E como foi o primeiro projeto coletivo que você montou? Contou com ajuda de Castello? Depois que você fez doutoramento começou a ter orientandos e a dirigir pesquisas dos outros, certo?

O professor Castello, que foi diretor do IEB durante  catorze anos, e eu conversávamos bem sobre os projetos que envolveram o arquivo e a biblioteca de Mário de Andrade. Depois do meu doutoramento, tendo me tornado também docente da área de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, em 1972, passei a conjugar minhas atividades lá com o meu trabalho no IEB. Para organizar o arquivo de Mário, montei projetos coletivos que se ligaram a bolsas e verbas da Fapesp e do CNPQ. Para o arquivo, inventei uma caixa de armazenar documentos, na qual a tampa superior, uma vez aberta, pode conter os fólios já consultados, impedindo a dispersão deles, na mesa. As primeiras caixas foram executadas por presidiários e era muito triste vê-las chegar, sob guarda armada. As atuais foram fabricadas, conforme o modelo, pela Adriana Belarmino, uma expert. São azul cobalto, coisa fina. Como orientadora, procurei duplicar, para o IEB, documentos que perfaziam o corpus de mestrados e doutoramentos fora dos estudos sobre Mário de Andrade.

E qual foi o primeiro?

Minha primeira mestranda, Yoshie Sakyiama Barreirinhas, que reuniu o jornalismo de Menotti Del Picchia vinculado à propaganda do modernismo de 1920-1922, organizou paralelamente, para o Setor de Arquivos do IEB, fac-similes dos textos que levantou. De sua dissertação, O Gedeão do Modernismo: Menotti del Picchia no Correio Paulistano: 1920-1922, tirou ainda a coletânea de título homônimo, publicada pela Civilização Brasileira, em 1982. Nesses dois últimos anos, o elenco dos textos embasou o projeto de pós-doutoramento de Ana Paola de Andrade, que supervisionei. Anna Paola, bolsista da Fapesp, estudou particularmente os reflexos do futurismo na propaganda modernista em Menotti. Fez um livro e palestras na Universidade de Roma e na de Milão, em 2012. Minha primeira doutoranda e também minha primeira bolsista da Fapesp, foi Carmem Lydia Souza Dias. Para sua tese, Paixão de Raiz: o Regionalismo de Valdomiro Silveira, defendida em 1989, conseguimos, emprestados gentilmente pela família, os manuscritos, as primeiras edições de obras e os textos na imprensa. Carmen Lydia, ao lado do ensaio que escreveu, realizou a transcrição de contos inéditos, que depositou no IEB.

Quanto à exploração do acervo de Mário, em 1980, houve o mestrado de Neusa Quirino Simões, uma freirinha muito simpática que auxiliava D. Paulo Evaristo Arns. Seu título é Estudando a Marginália: Mário de Andrade e a Ficção Brasileira. Antes disso, numa espécie de aquecimento ou iniciação à pesquisa, ela coligiu as dedicatórias a Mário de Andrade de poetas e ficcionistas brasileiros, em obras na biblioteca dele. Esse trabalho foi parcialmente revisto, no final da década de 1990, por Marjorie Hummel e agora, neste ano, Leandro Raniero Fernandes, pesquisador da nossa equipe, finalizou a revisão, fez cópias fac-similadas de tudo e está concluindo um belo livro. As dedicatórias que, nas bibliotecas dos escritores marcam fortemente a vida literária, no caso de Mário, põem em cena, especialmente, seu ofício de crítico em jornais e revistas, os diálogos com seus pares poetas e prosadores e a atuação do mentor dos moços. Mostram também presentes como este importantíssimo presente de aniversário, recebido pelo escritor em 9 de outubro de 1925, das mãos de Luís Aranha, amigo no grupo modernista de São Paulo. É um exemplar da edição de 1914 de Rã-txa-hu-ni-ku-i: Gramática, textos e vocabulário caxinauás, obra magna de Capistrano de Abreu. Na dedicatória, que simplesmente reitera a amizade, eu encontro a presença indelével de Paulo Prado, discípulo de Capistrano, alimentando o interesse etnográfico daquele buscava um sentido nacional para nossa literatura e que logo estaria esboçando seu Macunaíma nas margens do lendário indígena recolhido pelo etnólogo Koch-Gruenberg. Analisei o valor dessa dedicatória em uma disciplina de pós-graduação sobre os vestígios da criação de Macunaíma, na biblioteca de Mário de Andrade.

Quais os projetos mais importantes que você coordenou? E as teses, os livros que saíram desse trabalho?

Quando a gente está orientando, todos os projetos são muito importantes… entusiasmantes! E, na minha caminhada de orientadora e supervisora, tenho contado, a maioria das vezes, com o apoio da Fapesp, do CNPq e da Capes.

Os trabalhos relativos a Mário deixam-me acrescentada. Acompanhei o mestrado de Raúl Antelo, hoje um crítico renomado. Sua dissertação mestrado, Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade Lê os Hispano-Americanos, está publicado. Estive ao lado de Marcos Antonio de Moraes, na pesquisa para sua dissertação, Diálogo Epistolar Mário de Andrade/Manuel Bandeira, ganhador do Prêmio Jabuti e primeiro degrau na trajetória deste grande especialista nos estudos sobre o gênero epistolar. Com Angela Teodoro Grillo surpreendi-me com o estudo inédito sobre o negro, no âmbito da literatura oral, objeto de seu mestrado; empolguei-me com o mestrado de Raimunda de Brito Batista, que editou a Vida do Cantador, outro inédito, e o de Márcia Jaschke Machado sobre os manuscritos de outros escritores, de que já falamos. E com os doutoramentos de Lilian Escorel sobre a leitura impregnante da revista L’ Esprit Nouveau, ao qual já me referi, e o de Tatiana Longo Figueiredo, Café: o trajeto da criação de um romance inacabado de Mário de Andrade, tese que desenvolveu a reflexão teórica a respeito da natureza de um texto nessas condições e a análise do manuscrito. O de Rosângela Asche de Paula, O Expressionismo na Biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação, gratifica-me particularmente: concretizou um sonho meu.

Foram-me instigantes os doutoramentos de Raúl Antelo, Modernismo em Revista, e de Roselis Oliveira de Napoli, 1922-1972: A Semana Permanece; os de Rosse Marye Bernardi, Dalton Trevisan: a trajetória de um escritor que se revê, e de Rita de Cássia Barbosa, O Cotidiano e as Máscaras: a crônica de Carlos Drummond de Andrade. Igualmente as teses de Édison José da Costa, Quarup: Tronco e Narrativa, que mereceu a atenção de Antonio Callado, durante a pesquisa; a de Marta Moraes da Costa, Teatro em Papel Jornal, centrada no Paraná. E devo citar os mestrados de Roberta Sampaio, Edição Fac-similar Anotada e Estudo dos Arquivos Implacáveis de João Condé, e o de Ana Cândida Franceschini, Artistas Gráficos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo: 1956-1967, que também materializaram sonhos meus.

Como supervisora de pós-doutoramentos, dialogo atualmente com Francisco José Lima Rocha, em sua edição de um romance inacabado de Osman Lins, A Cabeça Levada em Triunfo; com Tatiana Longo Figueiredo, em seu mergulho em Mário de Andrade, leitor e crítico, parcela do Fichário analítico, manuscrito estreitamente ligado à marginália. E acabo de assistir a nova edição de O Banquete, obra de Mário da maior importância. Lilian Escorel a preparou.

Mas é outra edição, fora aquela de Jorge Coli e Luiz Dantas?

Esta é bem completa. O livro, que sairá pela Nova Fronteira, contará também com um ensaio do Jorge Coli, convidado. Quando ele e Luiz Dantas fizeram a primeira edição, em 1979, não se conhecia o manuscrito integral de O Banquete.

Esse livro feito sob sua orientação é o Música Final, do Jorge?

Jorge Coli é um amigo fraterno; compartilhamos nossas interrogações e descobertas. Música Final foi a tese de doutoramento dele, orientada pela professora Gilda de Mello e Souza, a grande mestra nos estudos sobre Mário de Andrade.

Tem, por exemplo, o mestrado livro Vida do Cantador, de Raimunda de Brito Batista. E o mestrado, sob sua orientação com o material do arquivo, do que consta?

O mestrado de Raimunda foi a edição da Vida do Cantador, precedida de um pequeno estudo trabalhando o gênero. Pedi que ela investigasse aquela questão das lições, que é matéria da Igreja Católica. ligada à hagiografia. E o Mário constituiu o santo dele, um ser de exceção – seu personagem Chico Antônio.

Para Vida do Cantador tinha o quê? Fichas, recortes?

Não havia fichas. O manuscrito é o que classificamos como exemplar de trabalho. Neste caso, é o texto resultante da junção do texto impresso, recortado da Folha da Manhã, com as rasuras apostas pelo escritor.

Você aumentou em muito a obra completa de Mário de Andrade. Quais foram os livros que você acrescentou à obra, entre os seus e os de seus orientandos? Os que ele tinha em recortes, manuscritos, fichas etc., e acabaram por virar livro?

Fizemos vários títulos, meus orientandos e eu. Lembro o romance inédito Quatro Pessoas, na edição preparada por Maria Zélia Galvão de Almeida, e a edição que fiz de Balança, Trombeta e Battleship, uma novelinha que o Mário começou a escrever na Amazônia, em 1927. Saiu pelo Instituto Moreira Salles, em 1993, no centenário, e agora, no projeto De mão em mão, conduzido por Carlos Augusto Calil, na Secretaria Municipal de Cultura. Também editei O Turista Aprendiz, e cuidei de três edições críticas do Macunaíma. Em 2007 fiquei encarregada da coordenação das edições de texto fiel de obras de Mário de Andrade, no protocolo que une as editoras Agir/Nova Fronteira e o IEB-USP. Os textos são estabelecidos com base nos manuscritos e edições em vida; trazem uma apresentação, estudo crítico e dossiê de documentos concernentes à criação. Preparadores e críticos são convidados e, a cada título, documentos do arquivo de Mário são reproduzidos em fac-símile. Até agora saíram: Macunaíma, Amar, Verbo Intransitivo, Os Contos de Belazarte, Obra Imatura e Padre Jesuíno do Monte Carmelo. Foi entregue à editora e está nas últimas provas, Poesias Completas, trabalho de Tatiana Longo Figueiredo e meu que oferece as obras publicadas, assim como poemas dispersos e inéditos.

O que há sobre o Macunaíma nesse arquivo? O que tem do processo de criação propriamente dito?

No acervo, de fato. O processo criativo de Macunaíma começa, pelo que hoje se conhece, no esboço de capítulos que o lápis de Mário de Andrade depôs nas margens do segundo volume de Vom Roroima zum Orinoco, consagrado à reunião dos mitos e lendas dos índios daquela região, que é Brasil e Venezuela. Esse volume foi editado na Alemanha, em 1924 e chegou à biblioteca de Mário no ano seguinte ou em 1926. Nessa primeira versão fragmentada do romance, na marginália, percebe-se que o escritor leitor frequentava também Barbosa Rodrigues e outros estudiosos.

Em seguida, vem o que chamei “relíquias do texto”, na minha edição-crítica de 1978, no cinquentenário da obra. São as folhas em autógrafo a lápis preto, remanescentes daquelas versões concretizadas nas férias na “chacra” de um primo, em Araraquara. Mostram o princípio do capítulo 1 na versão feita em “seis dias ininterruptos de rede, cigarros e cigarras”, de 16 a 23 de dezembro de 1926, e na versão subsequente, finalizada no Ano Novo. Juntam-se a dois índices e a dois prefácios, acompanhados de notas para eles. Esse manuscrito representa uma seleção montada possivelmente em 1937, quando sai a segunda edição de Macunaíma, pela Livraria José Olympio. A primeira fora em 1928. Mário, que costumava destruir os originais dos livros seus que via publicados, separou essas páginas para presentear seu amigo Luiz Saia, companheiro de trabalho no Departamento de Cultura. Saia tornou o IEB herdeiro do presente que recebeu. O arquiteto José Saia trouxe os documentos, após a morte do pai.

Pois bem: do processo de criação restaram também, no arquivo, notas de trabalho referentes a termos da flora, da fauna, da topografia do Brasil todo; poucas notas que sobreviveram, a maioria com a indicação “usado”. Na apropriação plasmada na rapsódia que subverteu os padrões do gênero romance, as notas devem ter sido uma infinidade. Talvez houvesse também esboços de capítulos, ao lado delas, quando Mário se pôs a escrever, em Araraquara. Na “Carta pras icamiabas”, capítulo 9 do livro, ele deixa uma pista sobre o início do trabalho, após a leitura do lendário, que tanto o impressionara, conforme se vê em sua correspondência com Drummond, Bandeira e Alceu Amoroso Lima. A pista é a data da “Carta pras icamiabas”: 30 de maio de 1926.

Em 1927 e 1928, Macunaíma teve outras versões, até entrar no prelo de Eugenio Cupolo para a primeira edição que chegou às livrarias no inverno de 1928. Nenhuma foi conservada. Mas, nos arquivos criação, isto é, em documentos fora do manuscrito no dossiê específico, além das declarações em diversas cartas aos amigos, há parcelas que demarcam na viagem de Mário de Andrade à Amazônia, como Turista Aprendiz, entre maio e o princípio de agosto, em 1927, o trabalho em Macunaíma. No verso de um desenho, feito em Marajó, estão termos e situações recolhidos para “Mac” e que foram realmente aproveitados ali. Em O Turista Aprendiz, o diário da viagem que ficou inédito, testemunha-se, com frequência, o entrelaçamento do texto com o da rapsódia, com o romance em elaboração. Nesse diário sobressai o deslumbramento do viajante diante da constelação da Ursa Maior, guia de navegantes, brilhando no céu da Amazônia, terra de Macunaíma que Mário de Andrade elegerá como sede do ócio criador, da preguiça elevada. Essa descoberta muda o desfecho previsto no primeiro traçar dos índices. “Ursa Maior” substitui “Torre Eiffel”, título que me leva a duas hipóteses sobre um capítulo sem texto: o grande final, em Paris ou, uma festa de intensas cores, bem filha de Vei, a Sol, como o Carnaval em Madureira de Tarsila do Amaral. Onde se fixaria também uma enorme réplica da Torre Eiffel, como aquela de precária construção no subúrbio carioca, que domina essa tela pintada em 1924.

Mas, chega de viajar… No arquivo de Mário há ainda os exemplares de trabalho das três edições em vida, de 1928, 1937 e 1944. As rasuras a tinta, no texto da primeira edição, tanto corrigem gralhas, como instituem uma nova versão, obedecida em quase tudo pela de 1937, que deu base à última. Nesse exemplar, o escritor apenas declara, na capa, que desejava rever o texto para novas edições. Faleceu antes, em 25 de fevereiro de 1945. Realizei três edições críticas de Macunaíma e, em 2007, preparei com Tatiana Longo Figueiredo uma edição de texto apurado, acrescida de dossiê de documentos ligados à criação. Temos pronta mais uma, esta com exemplos da crítica quando das edições em vida, e na atualidade.

O manuscrito de Macunaíma foi classificado no projeto temático e teve seu percurso genético exposto no Catálogo analítico dos manuscritos literários de Mário de Andrade, que foi o mestrado de Aline Nogueira Marques, orientado pelo professor Marcos Antonio de Moraes em 2010. Fui co-orientadora desse projeto e orientei o doutoramento de José de Paula Ramos Júnior, que é a análise e a interpretação da crítica sobre Macunaíma, no ano da primeira publicação, agora um belíssimo livro que muito me honra na dedicatória. De Paula recorreu as textos reunidos professora Dilea Zanotto Manfio, da Unesp de Assis, uma pesquisa fantástica que contempla a crítica de Mário polígrafo.

E esse projeto temático Fapesp, levou quanto tempo?

De 2006 a 2011. Seus resultados foram compensadores, bons pra valer! Classificou a tese Manuscritos Mário de Andrade, formou pesquisadores no âmbito da iniciação científica, do mestrado e do doutoramento; acolheu projetos de pós-doutoramento; teve tese publicada e obras de Mário de Andrade, a revista Marioscriptor, disciplinas de pós-graduação sob a responsabilidade do professor Marcos e sob a minha. Foi reportado em palestras e comunicações em reuniões científicas, no Brasil e no exterior. Dialogou com o Institut des Textes et Manuscrits Modernes, no CNRS de Paris (Item), especialmente com a professora Almuth Grésillon.

Você poderia dizer algo sobre o projeto da Correspondência?

A organização da Correspondência de Mário de Andrade estende-se de 1989 a 2003 em vários projetos, financiados pela Fapesp, pela Vitae e pelo próprio IEB. Muitos estagiários deles participaram. Nosso trabalho dialogou com o Item. A organização antecede a abertura da parcela lacrada por 50 anos, devido à disposição testamentária do escritor. Começamos em 1989 a classificar o que não estava interdito. Nesse ano, estava, entre os pesquisadores estagiários, Marcos Antonio de Moraes, meu ex-aluno nas Letras. Para comemorar os 100 anos de Mário, em 1992, Marcos fez seu primeiro livro, dedicado a textos e imagens de postais na correspondência passiva, e a reflexões sobre correspondências. Esse foi o primeiro passo de quem hoje é um especialista em epistolografia e coordena sua própria equipe.

Sua maior descoberta, nesse campo. O Marcos aproveitou o trabalho dele e editou a Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira; dos dois lados.

Fui a orientadora do Marcos nesse mestrado, na verdade um trabalho fraterno. Sua dissertação tornou-se o primeiro livro na Coleção Correspondência de Mário de Andrade, projeto de edições anotadas do IEB com a Edusp, traçado por nós dois. O livro de Marcos ganhou o Prêmio Jabuti. Continuamos cuidando dessa coleção que acaba de mostrar o diálogo epistolar Mário de Andrade & Sérgio Buarque de Holanda, uma edição primorosa, da lavra de Pedro Meira Monteiro. E apresentou a interlocução importante do escritor paulistano com a pintora Tarsila do Amaral, e com a poeta Henriqueta Lisboa, organizadas por Aracy Amaral e Eneida Maria de Souza, respectivamente. A Coleção espera publicar, em 2013, a correspondência com os escritores e artistas plásticos argentinos, com, Luís Camillo de Oliveira Netto, Murilo Miranda, Prudente de Moraes, neto, Anita Malfatti e Ribeiro Couto. Mário & Sérgio Milliet está em andamento. Todos os livros passam pelo confronto dos originais, entregues pelos preparadores, com os manuscritos, na revisão especializada feita por Tatiana Longo Figueiredo.

Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH-USP

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Oswald de Andrade: a última entrevista

O Poeta do Castelo

Hexecontalito

Pós-Walds

O Poeta do Castelo

Versos de Manuel Bandeira, recitados pelo poeta, acompanham e transfiguram os gestos banais de sua rotina em seu pequeno apartamento no centro do Rio; a modéstia do seu lar, a solidão, o encontro provocado por um telefonema, o passeio matinal pelas ruas de seu bairro.

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

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Morte e Vida Severina (Auto de Natal Pernambucano)

Vestido de Noiva, por Antunes

Hexecontalito

Da série Pequenos apontamentos noturnos.

Por Theotonio de Paiva

Mário de Andrade anotou num exemplar do livro de poemas Le départ sous la pluie, escrito pelo poeta e crítico Sérgio Milliet, o significado de uma palavra rara e sonora: “Hexecontalito: pedra preciosa antiga hoje desconhecida, da qual se dizia que tinha sessenta cores”.

Na primeira folha em branco, Mário deixava uma impressão curiosa. Ao dar voltas naquele signo, como se estivesse plantado frente a um enigma, o escritor provocava o significante.

A partir daí, Antonio Candido, num belíssimo ensaio, O ato crítico, especula que essa anotação misteriosa é sugestiva. Assim, ao pensar sobre a obra do modernista, Candido sugere que o volteio crítico de Sérgio Milliet desnudaria um pensamento especialmente perplexo. Provocador, Millet surge como alguém que se apresentasse ensaiando sempre, expressão de um fluxo contínuo de peça inacabada, de obra cheia de incompletudes.

Às vezes, gerando a graciosa impressão de ser determinado, movido mesmo pela convicção de que a obra é um hexecontalito. As  sessenta cores não lhe cabe e é preciso de algum modo supor que se possa captar todas as sete mil faces do poema, as rubricas não escritas do drama, a metáfora insurgente do romance.

Num movimento singular, vê-se aquele leitor especialíssimo rodeando a escritura. E como um amante tímido, aceitando as suas contradições, recebe o  pedido lacônico para ficar na ante-sala, enquanto a conversa com o outro acontece mais dura. Sentado, se vê aflito, enquanto as tolas representações escorrem pelas frestas da porta e se permitem compreender insidiosamente.

Ao desconhecer o medo de se corrigir, como diz Candido, Milliet tracejava os planos de suas leituras, de suas criticas, como alguém que olha e refaz o próprio olhar sobre a obra e sobre si mesmo.