O latifúndio multinacional

Metáfora do capitalismoPor Mauro Santayana

Os grandes bancos já controlam, mediante o sistema constituído dos fabricantes de agrotóxicos, como a Monsanto, intermediários, exportadores, importadores e compradores locais, usinas de beneficiamento, bolsas de futuros, silos e armazéns, o mercado mundial de alimentos. Agora, associados aos governos dos países centrais, estão avançando sobre as terras onde ainda há áreas férteis disponíveis. Só existem dois continentes com essa possibilidade: a África e a América do Sul.

A China, cujo espaço territorial é quase todo árido e fragmentado em centenas de milhões de áreas reduzidíssimas, exploradas por famílias numerosas, está hoje à frente dessa conquista territorial nos dois grandes continentes. Seu rival histórico, e que sofre da mesma dificuldade geológica, o Japão, mais antigo nesse movimento, disputa as mesmas áreas. Sobre o assunto, no que se refere à China, vale a pena conhecer o estudo de Dambisa Moyo, Winner Take All (O vencedor leva tudo). No caso da China não se trata só de empreendedores privados, mas de operação conduzida pelo Estado, como controlador direto de toda a economia do país. Muitos se preocupam com a compra, direta, de jazidas minerais pelos chineses, mas se esquecem do mais estratégico bem da natureza, que é a terra e, com ela, a comida. Ao juntar a agricultura à mineração (a China comprou uma serra inteira ao Peru, uma das maiores reservas de cobre) os chineses buscam controlar o solo rico do planeta.

Empresas multinacionais, além das organizações chinesas e japonesas, estão adquirindo as áreas disponíveis nas margens dos rios africanos, onde é fácil a irrigação. O mesmo ocorre na América do Sul, e mais no Brasil, onde segundo informações oficiosas, já foram investidos 60 bilhões de dólares na compra de terras. Os chineses usam argentinos como laranjas, para constituir firmas agropecuárias de fachada. O projeto chinês é importar tudo o que produzir para seu próprio consumo.

Ainda agora, na discussão, entre o governo e as Farc, na Colômbia, soube-se que lá não há titularidade regular das terras. Bastou que o governo e os guerrilheiros se dispusessem a discutir, em primeiro lugar, o problema da terra, para que o presidente Santos fosse contestado pelas oligarquias, por meio do ex-presidente Uribe.

No caso da África, os compradores se entendem diretamente com os governantes, muitos deles notórios corruptos. Os pobres não têm como resistir aos governos e são expulsos, dando lugar a trabalhadores chineses. No mundo neoliberal, esse movimento de ocupação estrangeira, impelido pelo agronegócio, é a globalização do latifúndio. Se, no Brasil, não houver uma reação forte e estratégica, seremos súditos dos novos donos das terras. E chegará o dia em que só as recuperaremos com sangue.

Este texto foi publicado originalmente em Mauro Santayana.

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Nacionalismo e Desenvolvimento Econômico II

Nacionalismo e desenvolvimento econômico I

Sobre o desenvolvimento chinês IV

Diversidade

Por José Luís Fiori*

As happened with other great powers, China seems to be following a technological road where the search for modern defense systems constitutes a primum mobile for national scientific endeavors and modern technologies.
N. Trebat e C. A. Medeiros, Military modernization in Chinese Technical Progress and Industrial Innovation [1]

O texto a seguir faz parte de um ensaio sobre o desenvolvimento chinês. Leia aqui a primeira e segunda partes e aqui o terceiro segmento.

É visível, a olho nu, que a liderança da inovação tecnológica se concentra nos países com maior poder dentro do sistema internacional. E que os países que ocupam posições inferiores acessam as tecnologias de “ponta”, através da cópia, da importação ou de pequenas adaptações incrementais, mediante pagamento de “direitos de propriedade intelectual”. Por isto, invariavelmente, os países que se propõe mudar sua posição dentro da hierarquia internacional também mudam, em algum momento, seu sistema de pesquisa e inovação. Como vem acontecendo com a China, segundo estudo recente dos professores N. Trebat e C. Medeiros (veja nota), que demonstra que os chineses estão deixando para trás a “cópia tecnológica”, e estão se aproximando rapidamente do modelo norte-americano, onde o “sistema de defesa” do país ocupa um lugar central no seu “sistema de inovação”.

Nos EUA, a mudança se acelerou durante a II Guerra Mundial, com a criação do National Defense Research Council (NDRC), que foi responsável pelo projeto Manhattan e pela criação da primeira bomba atômica, e pela reorganização da pesquisa científica dentro das universidades e das empresas privadas reunidas dentro de um mesmo “complexo-militar–industrial-acadêmico” de pesquisa e inovação, orientado pela competição militar com a União Soviética. Donde se possa dizer, hoje, que a Guerra Fria foi responsável – em última instância – pelos principais avanços tecnológicos norte-americanos, da segunda metade do século XX, no campo aeroespacial e da energia nuclear, da computação, das fibras óticas e dos transistores, assim como da química, da genética e da biotecnologia. Em todos estes setores, a estratégia de defesa americana funcionou como primeiro motor na criação das tecnologias “duais” que revolucionaram a economia mundial. Hoje, a “Agência de Projetos Avançados de Pesquisa em Defesa” (DARPA) – que responde ao Departamento de Defesa dos EUA – conta com um orçamento de mais de 3 bilhões de dólares, e financia investigações em todo e qualquer setor considerado estratégico para a segurança americana, independente do seu objeto específico, bastando se propor “inovações radicais” na fronteira do conhecimento humano.

No caso chinês, a inflexão começou nos anos 90, depois da Guerra do Golfo, quando a China reconheceu a necessidade de modernizar seu sistema de defesa e mudou o rumo da sua pesquisa científica e tecnológica, adotando progressivamente o modelo americano de integração da academia com o setor publico e privado, na produção de “tecnologias duais” capazes de dinamizar, ao mesmo tempo, a economia civil chinesa. O passo inicial foi dado, ainda na década de 80, com a criação da “Comissão de Ciência, Tecnologia e Indústria, para a Defesa Nacional”, mas o verdadeiro salto aconteceu depois de 1990, quando foi criado o “Programa 863” de financiamento à pesquisa de “ponta”, e depois de 2001, quando foi lançado o “Projeto de Segurança Estatal 998”, com objetivo explícito de desenvolver a capacidade chinesa de contenção das forças norte-americanas no Mar do Sul da China. Entre 1991 e 2001, o gasto militar chinês cresceu 5% ao ano, e entre 2001 e 2010, 13%. Hoje a China possui o segundo maior orçamento militar do mundo, mas o que importa, neste caso, é que os gastos com a “defesa” já alcançam cerca de 30% de todo o gasto governamental com pesquisa e inovação, e foram os grandes responsáveis pelo avanço dos chineses, nos últimos anos, na microeletrônica, computação, telecomunicação, energia nuclear, biotecnologia, química, e no campo aeroespacial. Mais recentemente, o “Plano de Desenvolvimento Nacional Científico e Tecnológico de Médio e Longo Prazo”, para o período entre 2006 e 2020, aumentou a tônica no desenvolvimento das tecnologias “duais”, e na importância da conquista da autonomia militar da China. E apesar de que os chineses sigam utilizando tecnologias importadas, a verdade é que eles obtiveram avanços notáveis nestas últimas duas décadas. Neste sentido, o novo caminho tecnológico da China parece reforçar uma verdade antiga e obliterada sistematicamente, pela “ciência econômica”: que o ritmo e liderança da pesquisa e inovação de “ponta”, nos países que lideram a hierarquia internacional, não são determinados pelas forças de mercado. Nestes casos – e cada vez mais – as grandes inovações vieram de sua estratégia de defesa e de sua permanente “preparação para a guerra”. Goste-se ou não, foi sempre assim, e ainda mais, no caso dos estados nacionais que criaram e lideraram, ou lutaram pela liderança do sistema interestatal capitalista, através dos séculos.

Nota

N. Trebat e C. A. Medeiros, “Military modernization in Chinese Technical Progress and Industrial Innovation”, paper, “World Keynhes Conference”, Izmair Economics University, junho de 2013.

[1] “Da mesma maneira como ocorreu com outras grandes potências, a China parece estar seguindo um caminho tecnológico em que a busca por modernos sistemas de defesa constitui um primum mobile [impulso especial] para esforços científicos nacionais e tecnologias modernas.”

* José Luis Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”. (www.poderglobal.net)

Este texto foi publicado originalmente na Carta Maior.

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Sobre o desenvolvimento chinês III

Por José Luís Fiori, da Carta Maior

O mundo visto pela China, 1418

O mundo visto pela China, 1418

Engana-se quem pensa que a China nunca foi um estado expansionista. O poder é sempre expansivo, ainda que ele possa ter longos períodos de “adormecimento” ou “fragmentação”. Foi assim, em qualquer tempo ou lugar, durante toda a história da humanidade, independente da existência de economias de mercado, e muito antes da existência do capitalismo. E o mesmo aconteceu na história da China. Começando pelo próprio processo originário de unificação do império chinês depois de longos séculos de guerras e conquistas, durante o período dos “Reinos Combatentes”, entre os anos de 481 a.C e 221 a.C.. Resumindo a história, o primeiro império chinês nasceu da expansão vitoriosa de dois reinos situados no nordeste da China atual: o Estado Qin, que foi o grande vencedor da guerra e promoveu a unificação, e o Estado Han, que o sucedeu em 206 a.C e foi responsável pela construção de um império que durou 400 anos, período “dourado” da história chinesa. O Império Han depois estendeu sua influencia à Coréia, Mongólia, Vietnã e Ásia Central, chegou ao Mar Cáspio e inaugurou a famosa “rota da seda”. Foi neste período que o império chinês concebeu o seu “sistema hierárquico-tributário” de relacionamento com povos vizinhos que aceitassem manter sua autonomia em troca do reconhecimento da superioridade da civilização chinesa. Um “modelo de relacionamento” que se transformou numa “rotina milenar”, dentro do mundo sinocêntrico, até meados do século XIX.

No século XIV, depois de um longo período de fragmentação territorial e guerras intestinas, a China viveu um novo processo de centralização do poder, sob a Dinastia Ming (1368-1644), que reorganizou o estado chinês e liderou uma segunda “era de ouro” nas artes, na economia, na filosofia, mas também nas conquistas territoriais e navais. De novo, a centralização do poder interno se prolongou no expansionismo externo, através da diplomacia, da guerra e do brilho exemplar da civilização confuciana. Durante a Dinastia Ming, a China reconquistou a Mongólia, a Coréia e o Vietnã, e impôs seu domínio ao Japão, Java, Brunei, Srivijaya, Sião e Camboja. Em 1424, o império suspendeu as expedições marítimas do Almirante Cheng Ho, mas foi apenas uma opção pelas conquistas terrestres, através das infinitas “fronteiras móveis” do império, por onde se multiplicou o seu território e a sua população, sem que ele tivesse que se afastar de suas linhas de suprimento estratégico, como ocorreu com os impérios marítimos europeus. No tempo em que a acumulação do poder se media em território, população, excedente econômico e capacidade de tributação, a China conquistou, em três séculos, mais do que o dobro do que foi conquistado pela Europa e seus impérios marítimos. E o mesmo veio a ocorrer mais tarde, com a Dinastia Qing, que governou a China entre 1668 e 1912, em particular durante o reinado do Imperador Ch´ien-Lung (1735-1799), quando a China duplicou seu território, conquistando o Tibet, Taiwan, e todo o oeste do atual território chinês, até o Turquistão. No caso dessas regiões, a conquista chinesa foi particularmente violenta e as terras conquistadas foram transformadas em colônias, numa posição inferior dentro do sistema de “círculos concêntricos”, como era concebido pelos chineses o seu “Império do Meio”, construído a partir do seu pináculo civilizatório, situado em Pequim.

Depois das duas “Guerras do Ópio”, em 1839-42 e 1856-60, a China foi submetida a um século de humilhações por parte das potências europeias do “Sistema de Westphália”. Mas na segunda metade do século XX, a China voltou a centralizar seu poder interno, expulsou as potências coloniais, adotou o capitalismo como instrumento de acumulação de poder e entrou num novo período de crescimento econômico e expansão externa do seu poder e de sua influência civilizatória. E está reconstruindo o seu antigo “sistema hierárquico tributário”, dentro e fora do antigo mundo sinocêntrico, o que leva muitos analistas a prever um grande embate civilizatório com o “Sistema de Westphália”. Do nosso ponto de vista, entretanto, esse choque não ocorrerá, por quatro motivos fundamentais:

i. O “Sistema de Westphália”, formado por estados iguais e soberanos, foi uma invenção europeia do século XVII, que só funcionou efetivamente na Europa, e até meados do século XX.

ii. Esse sistema, quando se expandiu para fora da Europa, não foi igualitário nem respeitou o principio de soberania dos povos conquistados e submetidos à condição de colônias, protetorados, domínios ou periferias dependentes.

iii. O que estamos assistindo no início do século XXI, dentro do mundo eurocêntrico, é um realinhamento de vários sistemas “hierárquico-tributários”, como por exemplo, no caso da nova relação da Alemanha com os demais países da U.E; ou dos EUA com os países da “Aliança do Pacífico”.

iv. Não é improvável que o mundo eurocêntrico abandone aos poucos suas fantasias westfalianas, e aceite cada vez mais o modelo hierárquico chinês, enquanto o sistema mundial adota a forma de dois grandes “impérios do meio”, com algumas réplicas inferiores.

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José Luis Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”. (www.poderglobal.net)

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Nacionalismo e desenvolvimento econômico I

Sobre o desenvolvimento chinês I e II

China2

Por José Luís Fiori, da Carta Maior

I

“Sou leigo no campo da economia.
Fiz alguns comentários a respeito do assunto, mas todos de um ponto de vista político.
Por exemplo, propus uma política de abertura econômica chinesa para o mundo exterior,
mas, quanto aos detalhes ou especificidades de sua implementação, sei muito pouco de fato.”
Deng Xiaoping, cit. In H. Kissinger, Sobre a China

A história não se repete, nem pode ser transformada em receita. Mas ela pode ensinar os que desejam aprender, como se fosse um velho e bom professor.

Haja vista, o caso do extraordinário desenvolvimento econômico chinês das últimas décadas. A explicação dos economistas costuma sublinhar a importância demiúrgica das reformas liberalizantes, ou, a eficácia das políticas econômicas heterodoxas, apesar de que Deng Xiaoping – considerado pai do “milagre econômico chinês” – sempre tenha insistido na natureza política e estratégica do seu projeto reformista, muito mais do que econômica. Como se ele estivesse apontando para a lua, enquanto os economistas insistissem em olhar apenas para o seu dedo, devido a sua grande dificuldade de compreender racionalidades que não se submetam à “lógica utilitária”. Sendo assim, qual foi então este ponto de partida político do “milagre econômico” chinês, a que se refere insistentemente Deng Xiaoping?

Não é fácil reconstruir e sintetizar um processo tão complexo. Mas parece não haver dúvida que “o grande salto capitalista” da China, começou no final da década de 50, com a ruptura entre o comunismo chinês e o soviético. Uma ruptura ideológica que se transformou numa disputa de fronteira, durante toda a década de 60, culminando com o conflito militar do Rio Ussuri, em 1969. A partir daí, a URSS aumentou geometricamente sua força militar, junto à fronteira chinesa, e a China respondeu ao cerco russo, com seu primeiro teste nuclear, em 1964, e com o lançamento do seu primeiro foguete balístico, em 1966. O sentimento de ameaça e insegurança crescente, levou Mao Tsé Tung a convocar de volta, em 1969, um grupo de quatro marechais do Exército de Libertação Popular, que haviam sido expurgados pela Revolução Cultural – Chen YI, Nie Rongzhen, Xu Xiangqian e Ye Jianying – com a tarefa de apresentar um mapa das opções estratégicas da China, frente aos desafios criados pela ruptura do bloco comunista. O diagnóstico da alta comissão militar foi determinante, e suas propostas mudaram a história da política externa chinesa.

A URSS era definida como a principal ameaça à segurança chinesa, e deveria ser contida através de uma política militar de “defesa ativa”, e de uma estratégia política-diplomática “ofensiva”, de reaproximação com os EUA. No ano seguinte, no dia 8 de dezembro de 1971, chegou à Casa Branca, em Washington, a mensagem do primeiro-ministro, Chou en Lai, que deu início a uma das transformações geopolíticas mais importantes do século XX. Em nome da nova estratégia, na reunião presidencial de 1972, entre os presidentes Mao e Nixon, Mao Tse Tung colocou entre parêntesis as divergências dos dois sobre a questão de Taiwan, e propôs ao presidente Nixon uma “linha horizontal” de contenção da URSS, que passava pelo Oriente Médio, e chegava até o Japão.

Na sequência, e como forma de fortalecer a capacidade defensiva da China, o primeiro-ministro Chou en Lai propôs, em 1975, o seu programa das “4 modernizações” que foram implementadas por Deng Xiaoping, a partir de 1978. Seguindo esta mesma estratégia, o governo de Deng Xiaoping promoveu, em 1979, uma invasão preventiva do Vietnã, para impedir a expansão da influência militar soviética na Indochina, com o conhecimento do Japão e com o apoio logístico do governo Carter.

A nova estratégia militar e econômica encerrou definitivamente a Revolução Cultural (1965-1974) e fortaleceu o estado central chinês, que recuperou sua condição milenar de guardião moral da unidade e do “interesse universal” do território continental e da civilização chinesa. Uma sociedade multitudinária que se vê a si mesma como uma civilização superior, homogênea e com pelo menos 2300 anos de existência, a despeito do “século de humilhação” que lhe foi imposto à China, pela “barbárie europeia”, entre 1842 e 1945.

Depois do fim da URSS, a China se reaproximou da Rússia e redefiniu seu “mapa estratégico”, mas manteve sua fidelidade ao ponto de vista político de Deng Xiaoping: o desenvolvimento da China deve estar sempre a serviço da sua política de defesa. Neste sentido, se nossa hipótese estiver correta, e mesmo que a história não se repita, o mais provável é que a nova Doutrina Obama de contenção da China reforce e expanda a “economia de guerra” do país, acelerando e aprofundando sua “conquista do oeste” e sua integração com a Rússia e com a Ásia Central. Por fim, esta história deixa uma lição surpreendente: para os chineses, o desenvolvimento capitalista é apenas um instrumento a mais de defesa de sua civilização milenar, contra os sucessivos cercos e invasões dos “povos bárbaros”.

II

“Para mim, uma vez que fui designado pelo povo para o atual cargo, preciso colocar sempre o povo no lugar mais importante do coração, ter sempre em mente as enormes expectativas que o povo me confia e lembrar que as responsabilidades são mais pesadas que a montanha Tai”.
Presidente Xi Jinping, Valor Econômico, 20/03/2013

O desenvolvimento chinês possui características que confundem inteiramente a ciência política ocidental, e colocam de cabeça para baixo a teoria do “estado desenvolvimentista”, formulada pelos anglo-saxões, na década de 1980. Até a segunda metade do século XIX, a China se desenvolveu fora do mundo euro-cêntrico e só se transformou num “estado nacional”, depois de 1912, e numa “economia capitalista”, no final do século XX. Mas na verdade, a China tem muito pouco a ver com os pequenos estados nacionais originários da Europa, e é de fato um “estado-civilização” que não possui sociedade civil nem conhece o princípio da “soberania popular”. Apesar disto – contra todas as expectativas ocidentais – o estado chinês tem se demonstrado altamente flexível e inovador, uma contradição aparente que remete às suas origens e à história de longo prazo de sua civilização.

A China é em si mesmo um continente, e seu estado – isoladamente – é responsável por cerca de 1/5 da população mundial. O processo de centralização do poder territorial ocorreu na China, há pelo menos 2300 anos, e apesar de várias fragmentações posteriores, o povo chinês sempre conseguiu refazer sua unidade e preservar sua homogeneidade linguística e cultural, transformando-se no país com a história contínua mais antiga da humanidade. O que mantém o povo chinês unido não é sua identificação à “nação Han”, que foi inventada no final do século XIX, é sua identificação com uma civilização e uma história cujas raízes remontam até o ano 5000 A.C. A China nunca teve nenhum tipo de religião oficial, nem jamais dividiu o seu poder imperial e burocrático com nenhuma instituição religiosa, nobreza ou classe econômica, como no caso das “sociedades civis” europeias.

O império chinês foi gerido através dos séculos, por um mandarinato meritocrático e homogêneo, que se consolidou durante a Dinastia Ming (1368-1644), e que sempre se pautou pela filosofia moral de Confúcio (551-479 a.C.), com sua concepção da virtude e do compromisso ético dos governantes com o interesse universal do povo e da civilização chinesa. Deste ponto de vista, o Partido Comunista Chinês apenas prolongou e radicalizou uma tradição milenar, ao criar uma espécie de “dinastia mandarim”, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos morais confucianos do período imperial. Por outro lado, não existe na tradição chinesa, a ideia da “soberania popular”, e o princípio da “soberania nacional” é associado diretamente à “soberania do estado”.

Mais do que isto, a filosofia confuciana nunca valorizou a participação do povo no governo, e sempre teve uma visão elitista do estado e dos seus governantes. Mas ao mesmo tempo, a tradição chinesa sempre admitiu o direito “divino” da sublevação popular contra as autoridades que não cumprissem suas obrigações morais, com foi o caso da rebelião que derrubou a Dinastia Qing (1644-1912), e proclamou a Republica da China, em 1912.

Aos olhos do Ocidente, este “modelo chinês” é autoritário e inflexível e está condenado à esclerose e à paralisia decisória, como ocorreu com o estado e o governo soviético. No entanto, contra todas as expectativas, o estado chinês tem demonstrado uma extraordinária capacidade de se autocorrigir e de se reinventar, sem apresentar até hoje nenhuma tendência ou necessidade de se transformar numa democracia eletiva e multipartidária. Neste sentido, a história da China traz uma grande novidade, e coloca algumas questões decisivas para a reflexão ocidental:

  1. Ainda que seja difícil de entender e aceitar, o Estado chinês não está a serviço do desenvolvimento capitalista; pelo contrário, é o desenvolvimento capitalista e o próprio estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já se considera o pináculo da história humana.
  2. A história milenar da China e do mundo sino-cêntrico questionam a inevitabilidade da democracia eleitoral e multipartidária, que seria apenas um fenômeno datado e circunscrito, do ponto de vista temporal e territorial. Neste sentido, se poderia valorizá-la ou adotá-la, mas ela não seria inevitável, nem seria um valor universal.
  3. Neste momento a China não parece estar se propondo como um modelo alternativo, mas com certeza o seu sucesso demonstra que existem alternativas ao “modelo ocidental”, que seria apenas uma invenção europeia transformada em “necessidade histórica”.
  4. Por fim, o ingresso do “estado-civilização” chinês, no sistema interestatal deixa uma pergunta: a China que se adaptará ao sistema de Vestfália, ou se será o sistema de Vestfália que terá que se adaptar ao sistema “hierárquico-tributário” do mundo sino-cêntrico?

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José Luis Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”. (www.poderglobal.net)

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