Beatriz Sarlo: “Benjamin é nosso contemporâneo”

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Em novo livro, a crítica argentina Beatriz Sarlo reflete sobre as quatro décadas dedicadas à obra do filósofo alemão e diz que os ‘conflitos teóricos’ fazem dele ‘nosso contemporâneo’

Entrevista concedida a Guilherme Freitas

Nos anos 1970, a obra de Walter Benjamin, quase desconhecida na Argentina, era citada com reverência por escritores como Ricardo Piglia e Juan José Saer. Foi deles que Beatriz Sarlo ouviu as primeiras menções ao pensador que seria, ao lado de Roland Barthes, fundamental na formação de seu “temperamento crítico”, como ela conta em seu novo livro, Sete ensaios sobre Walter Benjamin e um lampejo. Nele, a crítica argentina relembra quatro décadas dedicadas à obra do filósofo alemão, das primeiras leituras em más traduções até hoje, quando, depois da “moda Benjamin” que tomou as universidades argentinas nos anos 1980 e 90, ele se tornou “banalmente canônico”. Autora de estudos que dialogam de forma criativa com o pensamento de Benjamin, como Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930 (Cosac Naify), que aplica sobre a capital argentina o tipo de olhar que o filósofo alemão lançou sobre a Paris do século XIX, e Cenas da vida pós-moderna (Editora UFRJ), Sarlo analisa nesta entrevista por e-mail o que chama de “método Benjamin” e diz que é graças aos “conflitos teóricos” de sua obra que ele “ainda pode ser lido como nosso contemporâneo”: “Os ‘exemplos’ citados por ele pertencem ao passado, mas suas perspectivas não”, diz.

Você escreve que Benjamin foi decisivo para seu “temperamento crítico”. Qual foi a importância da obra dele para sua formação como crítica?

110_714-Beatriz-SarloComecei a ler Benjamin em meados dos anos 70. Talvez o primeiro texto tenha sido A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. [O escritor argentino Ricardo] Piglia o mencionava no começo dessa década, mas se tratava sempre de um título, algo que citava como se fosse uma espécie de senha ou lema. Não me lembro de falarmos dele em mais detalhes, embora o nome fosse pronunciado com entusiasmo. Em 1979, em Paris, na casa de Juan José Saer, conheci Raúl Beceyro, que foi menos enigmático e mais explícito em suas referências a Benjamin. Beceyro estava escrevendo seus ensaios sobre fotografia (que eu publicaria dois ou três anos depois em uma coleção do Centro Editor da América Latina). Nas conversas desse primeiro encontro, Benjamin apareceu como referência histórico-crítica obrigatória, sobretudo em relação com a história da fotografia. Certa tarde, creio que a última que passei em Paris, Saer me presenteou com um livrinho com dois ou três ensaios de Benjamin traduzidos para o francês. Péssimas traduções, eu soube depois, o que não é surpreendente, pois Benjamin padeceu de muitas delas. Esse livrinho incluía “A obra de arte…”. Acredito que foi a primeira vez que li o texto completo. Pouco depois, traduzi para a revista Punto de Vista o ensaio Desempacotando minha biblioteca, a partir de uma boa versão italiana que Pancho Aricó [o intelectual argentino José María Aricó] tinha, e uma troca de cartas entre Adorno e Benjamin, bastante áspera, sobre Baudelaire e Paris.

Por que Benjamin não era conhecido na Argentina naquela época, quando já era bastante debatido na Europa?

Nos anos 60 e meados dos 70, Benjamin não era lido pelos jovens críticos que estávamos no campo da esquerda. Essa curiosa cegueira se devia a dois motivos. Em primeiro lugar, ainda não circulavam as traduções espanholas de Jesus Aguirre, que, mesmo cheias de problemas, inconsistências e mal-entendidos, foram a introdução a Benjamin para quem não lia alemão. Em segundo lugar, o pessoal da esquerda não reconheceu, ignorou e negligenciou as traduções de Benjamin publicadas por Héctor A. Murena em sua coleção de Estudos Alemães da Editora Sur, precisamente porque saíram por essa editora, identificada pelos jovens de esquerda ou nacionalistas com uma cultura esnobe e elitista. Benjamin, no livro publicado por Murena, tornava-se invisível. Por fim, os anos 50 foram sartreanos. O grupo de escritores que nos antecedeu (David Viñas, Sebreli) não conhecia Benjamin quando entramos na universidade e, logo, nas revistas. Eu, formada nos anos 60, fui antes de nada barthesiana.

No livro, você ensaia uma aproximação ao que chama de “Método Benjamin”: um estilo estranho e fragmentário, ancorado no detalhe, na citação e em imagens. Quais são as marcas desse “método”?

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O crítico francês [Pierre] Missac analisou, há muito tempo, os traços do método compositivo benjaminiano: citação e fragmento. Depois, a edição do livro Passagens por Rolf Thiedemann (do qual há uma magnífica edição brasileira pela Editora UFMG) põe em cena o método compositivo de Benjamin, aplicado tanto à escrita como à imagem. O essencial, me parece, é que Benjamin produz uma espécie de revolução sintática, não apenas no nível da prosa, como também nos vínculos entre as obras que introduz em sua própria exposição, como blocos, como sólidas matérias construtivas. Articula tudo que encontra nos arquivos da Biblioteca Nacional de Paris, opondo-se à ideia de uma exposição que oculte o movimento do pensar. Pelo contrário, a sintaxe benjaminiana é tão complexa porque sempre tem algo mais a dizer, algo que escapa à ordem disciplinada da composição acadêmica, na qual introduz a “desordem” de seus materiais: Simmel, Baudelaire, um cartaz comercial. Benjamin está em condições de fazê-lo sem trivializar porque também percebe agudamente as qualidades propriamente estéticas da grande literatura e a pregnância do banal quando arrancado de seu espaço (ou seja: não quando o banal é celebrado e sim quando é capturado e interrogado). É capaz de articular os textos mais díspares e em todos encontra um máximo de significação. Seu estilo é inseparável de sua forma de ler os materiais com que trabalha. E, antes, de encontrá-los e escolhê-los.

Você nota que a Argentina viveu uma “moda Benjamin” a partir dos anos 1980. Como se manifesta essa “moda” e que limitações impõe à leitura de Benjamin?

No caso argentino, a moda Benjamin coincidiu com o ingresso na universidade, como professores, de todos os que estivéramos fora dela durante a ditadura militar. Nós, que vínhamos lendo Benjamin, chegamos com a ideia de que era a oportunidade de ensiná-lo (junto com outras linhas teóricas: formalismo russo, sociologia da cultura, estética da recepção). Por outro lado, Benjamin se tornou um teórico fashion para quem se dedicava à literatura e à crítica, ou seja, aqueles que não fazíamos uma leitura filosófica nem dele nem de Adorno. As coisas são diferentes entre quem ensinava filosofia nas mesmas instituições naquela época. Eles deverão fazer sua própria história do “ingresso” de Benjamin. Essa moda “literária” de Benjamin também corre paralela à renovação dos estudos sobre cultura urbana e grandes cidades. Os historiadores da literatura se interessam pela literatura na cidade e pela cidade na literatura. [O brasileiro Nicolau] Sevcenko estuda São Paulo; [o mexicano Carlos] Monsiváis escreve sobre a cultura popular urbana do México; vários escrevemos sobre Buenos Aires. Nem todos são benjaminianos, mas há um clima “benjaminiano”, ainda que, em muitos casos, ele sequer seja citado. É um lugar comum, ou seja, um espaço de encontro.

Você escreve que a melhor forma de superar as “modas” em torno de um crítico é sublinhar seus “conflitos teóricos”. E argumenta que é justamente por causa de seus conflitos que Benjamin “ainda pode ser lido como nosso contemporâneo”. Quais são os conflitos mais interessantes da obra de Benjamin e em que domínios do mundo atual ele pode ser lido mais claramente como “nosso contemporâneo”?

Embora sua lateralidade em relação a Adorno e Horkheimer fosse evidente, Benjamin compartilhou com eles a ideia de que uma totalidade, construída pelo filosófico, era possível; e que o capitalismo e a decadência da burguesia corromperam as bases materias e sociais sobre as quais podia se apoiar essa visão total. Nada mais distante de Benjamin ou de Adorno do que celebrar a explosão do mundo em fragmentos, como se isso se tratasse de algo divertido e pluralista. Eles não eram otimistas, eram nostálgicos. Esta questão pode ser discutida, mas não negligenciada. Adorno deixa inconclusa sua Teoria Estética, é verdade. Mas é preciso sublinhar que se propôs escrevê-la. Benjamin deixa inconcluso seu livro Passagens e talvez fosse um projeto inacabável desde o início, mas ele quis encontrar a chave da Paris do século XIX na mercadoria e quis encontrar a chave da mercadoria em sua exibição urbanística e estética (as passagens, o dândi, o flâneur). Nada mais distante de Benjamin que a celebração extasiada da explosão. A impossibilidade de uma totalidade perceptível e pensável é um destino da modernidade, não uma escolha superficial. E, como destino, tem uma dimensão trágica, vivida por subjetividades em conflito, não por atores adaptados às ruínas que restam na paisagem. Benjamin é nosso contemporâneo no mesmo sentido que é ainda um autor aberto a “usos” diferentes. Por um lado, ele se tornou banalmente canônico. Mas seus textos resistem à síntese explicativa. Acreditamos conhecê-lo e, no entanto, fica um resíduo de conflitos, um núcleo que rechaça interpretação. Nada mais difícil do que “ensinar” Benjamin. É claro que muitos de seus temas ainda são atuais, sobretudo o da estetização do político e o da mercadoría como forma universal. Os “exemplos” citados por ele pertencem ao passado, mas suas perspectivas não. Sua atualidade como crítico é assombrosa, ainda que essa não seja a dimensão mais explorada pela vulgata benjaminiana.

Que conclusões se pode tirar do fato de que, como afirma Hannah Arendt, Benjamin definia a si mesmo (nas raras ocasiões em que o fazia) como crítico literário?

Que Benjamin se definisse como crítico literário deve ser entendido no marco da cultura europeia, e especialmente alemã, das primeiras décadas do século XX. O crítico literário representava então uma das figuras principais do debate filosófico e estético. Não era a alma penada de hoje, quando oscila entre a história cultural e a análise de discursos não literários, como se assaltado por uma “má consciência” da literatura. Benjamin escrevia sobre Goethe e Proust. Ser crítico literário não significava ser condenado ao elitismo, e sim ocupar-se dos objetos mais densos do ponto de vista estético e filosófico. É um anacronismo pensar em Benjamin como marco da crise vocacional do crítico literário atual, acuado entre a cruz da negação valorativa e a espada dos estudos culturais americanos.

Esta entrevista foi publicada originalmente no Prosa & Verso.

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Drummond

Por Silviano Santiago*, via Suplemento de Cultura da Secretaria de Estado de Cultura/MG

DrummondO século 20 é o irmão mais velho do poeta Carlos Drummond de Andrade, que nasceu em Itabira do Mato Dentro no ano de 1902.

Em companhia do irmão mais velho, o menino Carlos vê o sulco de prata do cometa Halley a cortar em 1910 os céus de Itabira. Sabe da Grande Guerra de 1914-1918 pelos jornais da província e, entre germanófilo e descrente, vai trocando as calças curtas pelas compridas.

Na década de 1920, já em Belo Horizonte, o rapaz vive a molecagem e a orgia das vanguardas internacionais. A “pedra no meio do caminho”, que publica, será divisora de águas, como uma tela de Pablo Picasso. Prepara-se para a vida pública. Forma-se em Farmácia, faz jornalismo e flerta com a política estadual. Dá certo o namoro com a política e, funcionário público federal na capital da República, descobre-se um poeta preocupado com o Homem, ser rebelde e precário, e com as grandes causas humanistas. Politiza-se à esquerda durante a Segunda Guerra Mundial. Luta com palavras e com outras armas contra a ditadura Vargas, o Eixo e a intolerância nazifascista. Com o russo entra em Berlim. Com o homem do povo Charlie Chaplin promete destruir o mundo capitalista e com o poeta francês Paul Eluard grafita a palavra Liberdade em todos os muros da cidade. A Segunda Guerra Mundial chega ao fim, cai o Estado Novo. Na busca de coerência entre arte e política, o poeta se filia ao Partido Comunista Brasileiro. Abandona as hostes getulistas, vivendo apenas da sua produção escrita. Ainda juntos – irmão mais velho e irmão mais novo − chegam à idade madura. O poema “Dentaduras duplas” constata: “Rugas, dentes, calva…”.

Já cinquentões, Século & Poeta entram pelos anos 1960. Veem crescer os jovens rebeldes nascidos na metade do século − os filhos de Hiroxima, como se disse na Europa, ou a multidão de universitários pertencentes ao “war baby boom”, como os americanos denominaram o fenômeno de maneira pragmática. São filhos de pais traumatizados pela chacina da guerra, do campo de concentração e da bomba atômica. Ao mesmo tempo, são jovens com o alto nível de escolaridade proporcionado pelas sociedades do Primeiro Mundo. Vivem as riquezas ditas inesgotáveis do após-guerra e o clima da guerra fria.

Maio de  68, na França

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Os novos universitários são cabeludos e radicais. Embalados pelas drogas e ao som do rock&roll, abrem as portas da percepção e declaram que os velhos − o século 20 e os nascidos com ele − estão vendidos ao Sistema. Já não prometem destruir o mundo capitalista, começam a apedrejá-lo com os paralelepípedos das ruas de Paris. Se Século & Sistema aceitam de início a luta armada juvenil, amoldando-se aparentemente ao seu gosto anárquico e terrorista, é para logo retomarem o controle da situação. Nas últimas décadas de vida do poeta, Século & Sistema tornam-se repressivos, tradicionalistas e conservadores. Voltam os olhos para os regimes totalitários que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, para as formas autoritárias de controle da população civil e para a despreocupação da belle époque, fazendo o elogio da sociedade de consumo. O poeta maduro acompanhou o movimento geral do irmão mais velho, o Século 20, e passou a se deleitar com a lembrança da infância feliz em Itabira, ao mesmo tempo em que, no fio de alta tensão da poesia, vivia os valores rurais e patriarcais, inscritos na “tábua da lei mineira de família”. Irmão mais velho e irmão mais novo sobrevivem no futuro do passado. Como diz Drummond em Menino antigo: “Não saí para rever, saí para ver / o tempo futuro”. E na coleção de poemas Esquecer para lembrar, confessa: “Com volúpia / voltei a ser menino”.

Até a década de 1950, o século 20 tinha nascido para as grandes revoluções sociais pregadas pelo determinismo histórico inventado pelo século 19. A estrutura socioeconômica da sociedade nossa contemporânea era idêntica à de um edifício frágil e carcomido, que tinha de ser demolido. No seu lugar, seria levantado o edifício justo e igualitário das utopias socialistas. Esse sentimento leva o poeta a predizer: “Que século, meu Deus! diziam os ratos / E começavam a roer o edifício”. De 1970 para cá, estamos compreendendo que o século 20 sobrevive sob o signo de Marcel Proust e de A la recherche du temps perdu. Em busca do tempo perdido, acabam todos por passar pela experiência da madeleine e dos avós. Século das biografias e das autobiografias, século dos diários íntimos e das correspondências, século dos romances e poemas que são alimentados pela memória do artista. E tudo porque Freud descobriu, no apagar das luzes do século 19, o inconsciente e a sexualidade infantil.

À medida que Carlos Drummond se aprofunda no inconsciente e na infância, restringe-se sua preocupação com a sociedade universal. Primeiro, restringe-se ao grupo nacional a que pertence e, em seguida, à célula familiar que se responsabiliza por ele. A crise do liberalismo dos anos 1930, gerada pelos regimes revolucionários tanto da esquerda quanto da direita, cuja redenção estaria na sociedade justa do futuro, acaba por encontrar a solução prática, quando o cidadão descobre a sua comunidade e abandona as utopias universais, autodefinindo-se neoliberal. Ao final do século 20 e no início do milênio, a comunidade é o melhor antídoto contra qualquer pensamento, qualquer ação revolucionária universal. Cultivamos o nosso jardim e redescobrimos o bom senso de Voltaire. A crise do liberalismo, enquanto sistema sócio-político universal, não termina pelas utopias de esquerda ou de direita, mas pela… redescoberta do liberalismo.

Enquanto jovens, Século & Poeta gastam energia na rotina das boas ações sociais e do inconformismo político. Profissionais, racionalizam a integração ao Sistema como inevitável. E maduros, descobrem que eles e todos nós já estávamos no inconsciente e na família. E saímos em busca de nós mesmos. Mais sabidos e mais racionais, empilhamos livros, conhecimento, teorias, e deixamos a ação revolucionária transformadora do planeta para a geração seguinte. Ultimamente, com a ajuda do poeta Mallarmé, andamos redescobrindo que a carne, depois de lidos todos os livros, fica triste. “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres”. E tome discussão sobre o prazer.

*

O sucesso de público de Drummond, a validade do seu texto em termos estéticos, históricos e sociológicos, a unanimidade em torno da escolha da sua obra poética como a mais significativa do Modernismo brasileiro, tudo isso advém do fato de que a sua poesia dramatiza de forma complexa e original a oposição e a contradição entre Marx e Proust, entre a revolução político-social, instauradora de uma Nova Ordem Universal, e o gosto pelos valores tradicionais do clã familiar dos Andrades, seus valores socioeconômicos e culturais.

Ao fazer essa constatação, evitamos ver o conjunto dos poemas e livros de Drummond como articulados pela sucessão cronológica das publicações, ou como explicados pelo amadurecimento gradual do poeta. Preferimos, portanto, julgar o conjunto da obra como organizado por essas duas linhas de força paralelas e contraditórias. Ao ler os livros reunidos, temos, de um lado, textos poéticos que descrevem longa e minuciosamente o processo de decadência por que passa a oligarquia rural mineira nos seus constantes embates com a urbanização e a industrialização do Brasil e, do outro lado, poemas que traduzem a esperança em uma frutífera radicalização político-social, oriunda do otimismo gerado pelo movimento tenentista de 1930, otimismo este crítico da oligarquia rural onde, paradoxalmente, se situa o clã dos Andrades. Essas duas linhas de força se afirmam ou se negam, combinam-se, enroscam-se, enlaçam-se, caminham lado a lado, ocasionando a principal tensão dramática da poesia de Drummond.

De maneira nem sempre muito explícita Drummond institui dois mitos como portadores das duas opções poéticas: o mito de começo e o mito de origem.

Por mito de começo entende-se o desejo de Drummond em inaugurar, por conta própria, uma nova sociedade em que pode negar totalmente os valores do passado rural e do clã. Rompe os laços de família, para poder afirmar com convicção e radicalismo os valores de individualismo e de rebeldia que julga justos para o estabelecimento de uma futura sociedade sem classes. Tal mito é representado, desde o século 18 e na primeira poesia de Drummond, pela estória de Robinson Crusoé, “comprida história que não acaba mais”, como está escrito no poema “Infância”, de 1930. Retirado da cultura europeia por causa de desastre marítimo, Robinson arriba sozinho a uma ilha deserta, onde tem de refazer todos os passos culturais do homem. Da solidão passa a descoberta do outro, Sexta-Feira, e se empolga com o retorno à vida social. O mito de começo é um mito de rebeldia, onde trabalho e heroísmo individual se casam. No caso da poesia de Drummond, é mito de negação do Pai como transmissor da cultura, e da Família como determinante da situação socioeconômica do indivíduo na sociedade. O passado não conta, só o presente. O mundo está para ser inventado pelo homem, desde que as mãos da solidariedade sejam dadas. Nos anos de A rosa do povo, Albert Camus torna paradoxal e engajado o cogito cartesiano: “Je me révolte, donc nous sommes”. A conscientização revolucionária da multidão tem a ver com o aprimoramento político do indivíduo enquanto rebelde.

Coronelismo

Oligarquia mineira

Por mito de origem entende-se a vontade de o poeta Drummond inscrever seu projeto de vida numa ordem sociocultural mineira, em que os valores fortes da individualidade e da rebeldia perdem a razão de ser, já que são meros indícios de insubordinação passageira. Só são válidos e eternos os valores superiores do passado e da tradição. O poeta tira do rosto a máscara de Robinson Crusoé e descobre que, em si, nada vale: ele só é alguma coisa quando se identifica ao clã dos Andrades e é legitimado por ele. A ação do poeta na terra não é uma aventura robinsoniana. A curta aventura humana no planeta é uma aproximação infinita da sabedoria dos antigos por uma nova geração, sempre menos preparada. Retorna o Filho à casa do Pai, para que, depois da insubordinação juvenil, possa assumir o seu lugar na família; volta ao lar para que seja o futuro Patriarca. Tal forma de exigência social está autenticada pela fé religiosa do grupo social − o catolicismo. A transmissão dos bens culturais se dá pela herança, assim como a transmissão dos bens econômicos.

Ao se inserir na família mineira cristã e patriarcal, o poeta transcende sua vida e seu tempo, revelando seu eu autêntico na eternidade. O eu autêntico não é produto da alteridade rebelde e heroica, mas é a reprodução do mesmo, que se perpetua pela cadeia do sangue. Diz o poema “Raiz”:

Os pais primos-irmãos

avós dando-se as mãos

os mesmos bisavós

os mesmos trisavós

os mesmos tetravós

a mesma voz

o mesmo instinto, o mesmo

fero exigente amor

crucificante

crucificado

Rebeldia, insubordinação e aventura revolucionária, de um lado; arrependimento, reconhecimento tardio e obediência aos valores familiares, do outro.

*

Já em poema que leva o sugestivo título de “Infância”, publicado em 1930, a não identificação com o Pai (e com a Família) vem associada com a leitura da estória de Robinson Crusoé:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

Próximo dos seus, mas sozinho, o menino, com o livro nas mãos, começa a viver como se estivesse numa ilha banhada de mangueiras por todos os lados. Isola-se a criança quando o pai parte para o campo, a mãe se entrega à costura e o irmão mais novo ao sono. Nessa área de auto-exclusão, a criança compensa a falta de companhia familiar, vivendo em aberto a aventura do livro. O menino vive como se fosse o próprio Robinson e, ao identificar-se a ele, admite como regra de vida a moral do tudo é permitido dostoievskiano. Quando a criança joga o livro para o lado, dá-se a “Iniciação amorosa”:

A rede entre duas mangueiras

balançava no mundo profundo. […]

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um dia ela veio para a rede,

se enroscou nos meus braços,

me deu um abraço

me deu as maminhas

que eram só minhas. […].

Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde.

Longe da vida-em-família, no espaço de mangueiras, “espaço verde” (diz o poema), se situa a área do individualismo e da liberação e, também, da aventura sexual. Julgando-se um novo Robinson, o menino pratica ações transgressoras sem que sobre ele recaia julgamento moral ou social. Tudo o que é proibido na área familiar pode ser desejado e obtido na área de exclusão: a lavadeira “me deu as maminhas/ que eram só minhas”. O texto poético que fala de Robinson é também o texto que canaliza o discurso sexual transgressor.

Se os poemas que seguem a estrutura provinciana que estamos revelando se orquestram em clave individual, diferentes são os poemas onde a rebeldia robinsoniana quer afirmar-se num centro urbano, cosmopolita, longe muito longe de Itabira. Ao se alongar para a capital da República, onde Getúlio Vargas usurpa o poder, e ao se propagar pelo mundo conturbado pela Segunda Guerra Mundial, a revolta que se dava contra a família visa a uma práxis política imediata e revolucionária que questiona não só a oligarquia rural como toda a organização socioeconômica e política do Ocidente. A rebeldia solitária quer transformar-se em práxis marxista. Diz o poema “Nosso tempo”:

O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma floresta,

um verme.

Chega o momento em que Drummond quer manter o almejado diálogo com o operário, atravessando − como prega Marx no Manifesto comunista − as barreiras de classe: “[…] hoje uma parte da burguesia passa-se para o lado do proletariado, principalmente o setor dos ideólogos burgueses que chegaram a compreender teoricamente o movimento histórico em seu conjunto”. Leiamos trechos do poema “Operário no mar”:

Na rua passa um operário. […] Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze aos seus olhos. […] Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

Poema das perguntas e da insegurança, do compromisso e da dúvida ideológica, da compreensão da marcha da história e das fraquezas do indivíduo frente a ela, “Operário no mar” é também onde se percebe nítida a negação de uma esquerda festiva em Drummond. Se houver compromisso do poeta com o operário, não haverá paternalismo. Para o intelectual pequeno-burguês é fácil dar o operário como irmão nas suas investidas literárias, mas não o é no seu dia-a-dia profissional e político. Entre o Operário e o Poeta, ergue-se a muralha da classe e da desconfiança mútua.

*

Não se pense que o mito de origem venha depois, ou antes, do mito de começo numa ordem evolutiva ou histórica. No discurso poético de Drummond, os dois mitos coexistem e são responsáveis pela alta tensão dramática que salta de seus poemas, de seus livros. Se fosse preciso definir a integração dos dois mitos no todo do discurso poético drummondiano, teríamos de falar de recalque. Quando o mito de começo é recalcado, é porque brotam na superfície do poema os elementos do mito de origem − e vice-versa.

Assim é que o reconhecimento pelo poeta dos valores do clã dos Andrades é anunciado como “viagem de regresso”. Viagem de regresso ao “país dos Andrades”, com o fim de conhecer as figuras familiares que abandonam o menino entre mangueiras e são abandonadas por ele a partir do momento em que passa a viver na revolucionária ilha robinsoniana. Manifesta-se pleno o desejo de conhecimento do mecanismo social, da identidade única que organiza o relacionamento entre todos os membros do clã: “Que há no Andrade/ diferente dos demais?/ Que de ferro sem ser laje?/ braúna sem ser árvore?”.

Em viagem de regresso à área familiar, o Poeta reencontra os valores silenciosos do seu clã, da sua família nuclear e, pouco a pouco, compreende sua discreta e tirânica razão de ser, isto é, seu poder de funcionamento alheio à vontade e aos anseios mais fortes do menino solitário e do homem precário e rebelde que se politizou à esquerda.

Foi preciso que o menino Drummond perdesse primeiro os familiares, foi preciso que o poeta maduro construísse um mundo utópico alheio a ele, para que depois, ao final da vida, os recuperasse pela palavra poética na série de livros intitulada Boitempo. Leiamos o poema “Comunhão”. De início o Filho se situa fora da roda do clã, em atitude de distanciamento e de contemplação. As figuras da roda − descobre ele quando vê a cena do centro − não têm faces e só são reconhecíveis pelo que dizem em silêncio. Do momento em que o excluído entra na roda da família, abandonando a sua posição de espectador, ilumina-se toda a cena, todas as faces anônimas se acendem. O Filho assume a família no momento em que aceita sentar no lugar vazio que estava à sua espera,  previsto e designado para ele pelos antigos.

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,

eu no centro.

Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis

pela expressão corporal e pelo que diziam

no silêncio de suas roupas além da moda

e de tecidos […]

Notei um lugar vazio na roda.

Lentamente fui ocupá-lo.

Surgiram todos os rostos, iluminados.

Ao se identificar aos familiares mortos, o poeta esboça um primeiro passo em busca da origem e de seus valores sociais e econômicos. A figura do Pai, de longe e em aparente descaso pelo Filho, arma o palco da origem. Nele, o Poeta, como novo filho pródigo, representa a volta ao lar, desmistificando a artificialidade de sua palavra de começo. Representativos da dramaticidade do conflito entre indivíduo e família, entre começo e origem, são alguns versos de “Como um presente”, poema escrito para comemorar o aniversário do pai já morto:

A identidade do sangue age como cadeia,

fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,

onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.

Por que ficar neste município, neste sobrenome?

Taras, doenças, dívidas, mal se respira no sótão.

Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,

e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.

O poeta teria querido apagar da memória todo traço de hereditariedade e o peso da responsabilidade para com os antigos; teria querido circunscrever só para ele a existência dentro de uma redoma neutra, pouco exigente e inaugural, semelhante a uma tábula rasa. Restaria, pois, ao poeta pôr em prática um absurdo paradoxo: “inaugurar novos antepassados em uma nova cidade”. Mas sob o signo de Proust e do tempo perdido, são os antepassados que, ao ditar autoritariamente nossos passos e nossas normas de comportamento, nos inauguram, determinando-nos social e economicamente.

Contra o paradoxo da rebeldia contra os antigos se insurge, à maneira de vacina instilada gota a gota, a ciência do sangue que, como diz o poema, “é soprada por avós tetravós milavós”. E é através do lento aprendizado da ciência do sangue que se recebem os bens de família, bens simbólicos que, em última e derradeira instância, determinam a posição sócio-política e econômica do Poeta. Seu lugar no clã dos Andrades, o lugar do clã na comunidade, na Nação. Inexoravelmente, tradição e conservadorismo invadem as páginas do tardio Proust mineiro, confundindo-se nos poemas o patriarcalismo na família e o mandonismo na vida política local. Patriarca e coronel ressurgem das cinzas pela força da palavra poética: o futuro do passado.

*

Como estamos vendo, existem pelo menos dois Drummonds na sua poesia. O primeiro compreendeu de maneira inigualável “o tempo presente, os homens presentes”. Teria se assustado com o trabalho sangrento que o bisturi poético faz nas chagas sociais do nosso tempo? Escreve em Claro enigma, livro publicado em 1951: “Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada. / Pois que aprouve ao dia findar, / aceito a noite”.

Na década de 1950, Drummond passa o bastão de revezamento da crítica social para o jovem João Cabral de Melo Neto. Este, ao abandonar a estética mallarmaica então em vigor, busca uma poesia de maior eficácia política. Receoso do compromisso ético e ideológico que o sujeito do poema pode manter com o assunto tratado, João Cabral resolve retirar do discurso poético todo resquício de subjetividade, como se dá no poema dramático Morte e vida Severina. Como bom fenomenólogo que é, haja vista a discussão sobre teoria poética que está na plaquete “Psicologia da composição”, Cabral mostra a miséria nordestina tal como ela é, e não tal como o diplomata ou o Poeta a vê.

Por outro lado, Cabral evitou o perigo que Drummond, o segundo Drummond, assumiu autobiograficamente: conhecer em profundidade todos os valores que determinaram o homem-poeta no processo de sua realização econômica, social e política. E esses valores − espero que tenha ficado claro − são os valores do velho latifúndio mineiro. Ao assumir o discurso do Pai, do Patriarca, Drummond foi-se esquecendo de continuar a esquadrinhar com os olhos o caminho de luz que os faróis do carro poético abriam à sua frente, como o tinha feito em Sentimento do mundo. Passou a ficar embevecido com a paisagem antiga que lhe enviava o espelho retrovisor. Instalado de novo − e poeticamente − no antigo Sobrado mineiro, descobre-o muito acima dos mortais. Entre o Sobrado e a Rua, uma escada reveladora:

É teatral a escada de dois lances

entre a rua e os andrades.

Armada para a ópera? Ou ponte

para marcar isolamento?

.

O texto aqui reproduzido foi lido pelo autor na conferência de abertura da 10ª Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, no dia 4 de julho de 2012.

* Silviano Santiago é professor de Literatura, ensaísta, poeta, contista e romancista.

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De olhos bem abertos

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Oswald de Andrade: a última entrevista

No meio do caminho

Morte e vida severina

De olhos bem abertos

Por Theotonio de Paiva

Casa onde morou Mário de Andrade, na Rua Lopes Chaves

“Casa minha”, podemos ler no verso da imagem. Lá morou Mário de Andrade, na Rua Lopes Chaves – Foto M. A.

Há muito não ia a São Paulo. Devia ter pelo menos uns quatro anos que não andava pelas ruas daquela cidade. Em outros tempos, geralmente ao chegar, ali pelo Tietê, embicando na rodoviária, me recordava dos versos famosos: “São Paulo! Comoção de minha vida…” e me deixava iluminar por dentro. E vinha um compasso trinado daquilo que a distante cidade significava em mim, desde a primeira visita com meu pai até resvalar nas idas constantes para as minhas pesquisas e alguns projetos.

Era uma sexta-feira e eu acabara de almoçar na Rua Augusta. Estava ali, num misto de trabalho, contatos e, sobretudo, interessado em realizar finalmente uma espécie de visita sentimental.

Uma chuva contínua dera o ar de sua graça lá pelo final da tarde do dia anterior. As calçadas molhadas pareciam insistir para que os meus sensores mais vagabundos ganhassem uma atenção redobrada. Nada poderia escapar daquela vigília realizada com os olhos bem abertos. Absolutamente nada.

Como ia dizendo, acabara de almoçar num restaurante com um jornalista amigo meu. Estávamos acompanhados de uma senhora encantadora, igualmente jornalista, que eu conhecera ali, naquela ocasião.

Na verdade, havia uma sutileza nesse encontro. Efetivamente, eu acabara de conhecer esse meu amigo, naquele exato momento. É claro que isso se explica com algumas poucas palavras. Muito embora nos correspondêssemos há uns três anos, embalados pelas facilidades do mundo virtual, e, nesses contatos, fosse fácil perceber uma certa intimidade, éramos, contudo, ainda distantes um para o outro. Por conta de um trabalho em comum, passamos a nos comunicar com certa frequência, através de emails e mensagens. A mulher, ao contrário, seria desde sempre uma presença real, linda nos seus movimentos e capacidade de perguntar o que ficara em construção pelo pensamento. E ambos me ajudavam a pensar São Paulo como uma cidade, cuja tradução “a berrar nos desertos da América”, se faz necessária emergir em novas equivalências nas suas sensíveis diferenças.

De todo modo, havia uma expressão de segurança, de velhos conhecidos, cujas antigas afinidades se deixavam acontecer. Com um pouco de ironia, dali a algum tempo, ao me afastar deles, esse estado de segurança iria desaparecer em mim, quase sem deixar vestígios.

Há alguns anos, sob um sol escaldante, estive em Barra Funda, antigamente considerada periferia da cidade, a fim de visitar a casa onde morou Mário de Andrade. Era uma visita para a qual me preparara desde sempre. Começou quando, ainda adolescente, vi algumas fotos de uma São Paulo antiga que embalara a existência do escritor. E aquilo crescera comigo, em meus modestos estudos e num desejo de quem mitifica o mundo, e, nesse compasso, ambiciona trazer para dentro de si aquele mesmo quadrante que os olhos sonolentos abrigavam.

Esforço inútil. Era um sábado e o local, já na época transformado em centro de cultura, a Oficina da Palavra, não abria aos sábados. Fechava-se no seu mobiliário pela voz do guarda aos visitantes desavisados.

Atualmente a situação, parece, mudou bastante. De qualquer maneira, talvez fosse capaz de dizer que apenas aquela lembrança ainda me deixa sem ação. Preso à calçada, contava uma derrota que me retorcia inteiro. Impossibilitado de gerar uma reação tímida que fosse, procurava, com os meus olhos, um sentido qualquer para aquela situação de desalento.

Acreditando ou não, naquele momento, eu fora privado de olhar pela mesma janela por onde o poeta via o mundo. Coisa talvez sem importância, num culto desnecessário ao passado, embora não se tratasse de um poeta qualquer. As horas de dedicação e pesquisa, ao menos para mim, há muito tinham gerado uma intimidade distante e próxima. Diria mesmo perversa, quando, ao final de algum tempo, acabamos por travar com os nossos objetos de estudo uma afeição necessária, porém desmedida. E, nessa curiosa relação, o poeta modernista era alguém que se infiltrava pelas minhas retinas, em seu terno de casimira inglesa, como aqueles que meu pai também usava.

No entanto, a situação agora era integralmente nova. E aquela visita programada voltava a existir enquanto uma modesta possibilidade.

Saímos do almoço, os meus dois amigos jornalistas e eu, conversando sobre amenidades. Os guarda-chuvas se esbarravam e queriam pedir passagem, apressados. Naquele descompasso, o tempo parecia não deixar ver direito o vai-e-vem de ricos e brancos, que bem de perto ficam pobres e pretos.

Passamos novamente pelo local onde fica o bunker da redação. Faço uma pequena hora, despeço-me, e, ansioso, dirijo-me ao metrô.

Ao comprar o bilhete, pensava naquelas distantes ruas da Barra Funda. É para lá que eu ia.

Os anos passados e o tempo chuvoso tornavam o lugar pouco familiar. Não me recordava direito da topografia. Queria me lembrar daquela rua íngreme, por onde imaginava o poeta subindo à noite. Talvez procurasse por algum vizinho próximo a escutar os ecos, às duas horas da manhã, do piano tocando Bach, enquanto os trabalhadores dormiam profundamente.

No entanto, naquela tarde, a rua parecia ter sumido de suas próprias cercanias. Ante o meu desespero, procurei um ambulante que pudesse me informar onde ficava a Rua Lopes Chaves. Avisto um rapaz negro, meio alto, vendendo algumas guloseimas numa esquina, próxima de um enorme viaduto. Daquele lugar, com construções antigas, que soavam estranhas à cidade, ele também não distinguia muito bem o mundo que o rodeava.

Um pouco distante, vejo se aproximar um homem ainda jovem. Os passos contidos ajudavam a organizar os pontilhados da imagem que lentamente se formavam. Era visivelmente um morador de rua. As roupas encardidas, o cabelo, meio gruvinhado, e as mãos que se afagavam mostravam um aspecto visivelmente miserável. No entanto, aquela aparência, veria logo, desdizia o homem. À parte deixar transparecer uma generosidade incomum, exercia um comando meio heróico dos seus seres imaginários e da sua solidão inconclusa, além de efetivamente parecer disposto a encontrar a rua e assim me ajudar.

Naquele passo de alma cambaleante me deixei levar por aquela situação e concordei com a sua oferta. Não tinha muito que perder. Num ato contínuo, o homem vai até uma birosca e retorna decidido. Já sabia onde ficava o local.

Aquilo dura pouco. Logo em seguida, descubro que está enganado. Era um outro Lopes, ou um outro Chaves, que lhe informaram. Mas isso agora não fazia uma diferença significativa.

A princípio, aquilo para mim não estava claro, mas aquele homem, com cerca de seus trinta e poucos anos, via em mim alguém com quem pudesse conversar e, provavelmente, conseguir alguma ajuda, o que logo se confirmaria.

No entanto, o que assoma do nosso amigo é a sua capacidade de entreter o outro. Assim, como um malabarista das palavras, se desdobra em encontrar assuntos e meios para conduzir o tempo. Comentava pelos cotovelos a importância da educação, da cultura e daqueles outros conceitos distantes que ele possuía e, ao mesmo tempo, invejava por não ter, ao menos por não ter da maneira que desejava. E contava de sua compreensão sobre o Príncipe, de Maquiavel. Evidentemente, Emerson, vamos chamá-lo assim, não frequentara uma escola formal, no entanto, lera aquele clássico da ciência política por duas vezes, expondo em detalhes uma concepção bem formada que me nocauteava.

Falava de Napoleão. E apressava-se em discorrer sobre Maquiavel e Sun Tzu, os autores de cabeceira do corso, cuja dedicatória à Heróica fora implacavelmente riscada pelo músico alemão quando aquele se fizera Imperador. E emendava os assuntos. E cantava romanticamente uma espécie de lírica sobre a sua mulher, a doce Elisa, que mais parecia se erguer como um simulacro de Dulcineia. Entretanto, tudo leva a crer, Elisa não ocultava a verdade praquele Quixote das quebradas. Era ela a verdadeira dama.

Num repente, assim de chofre, se revela: – Nós somos soropositivos.

Mais um golpe. Previsível nocaute. Mas de todo modo, constrangedor, apesar da inteligência em falar de si mesmo com uma espécie de distanciamento o que dava às palavras daquele homem uma certa leveza.

Feliz com a atenção que eu lhe dedicava, pedia para tocar as mãos em sinal de amizade. E gentilmente dizia: – Se eu não lhe incomodasse, receberia de bom grado um presente. Que presente seria? Fraldas para ele e a sua mulher. Rapidamente, sem me deixar raciocinar, informava que os recursos dados pelo governo haviam terminado e o coquetel os fragilizava terrivelmente.

Enquanto nos dirigíamos a uma farmácia próxima, observava melhor aquele sujeito. Cruzávamos um viaduto. E as roupas encardidas, os dentes mal conservados, e a verve de um intelectual que poderia ter sido e não foi, gritavam em toda a sua plenitude. Cuido para que não seja importunado no estabelecimento, ouça frases que venham a agredi-lo, ou, quem sabe ainda, seja convidado a se retirar. Nesse sentido, adoto uma postura meio paternal, que me dói um pouco ter de lançar mão, mas julgo necessária assim mesmo.

E nos despedimos mais à frente. Numa confusão vulcânica, encaminhava-me à Rua Lopes Chaves, naquele momento, já devidamente mapeada. A casa, encantadora, não mais pertencia a ninguém, mas à memória de uma cidade e do mundo. E poderá ser compreendida como um patrimônio cultural dos nossos desejos e das nossas tradições mais fecundas.

De volta à minha cidade, um outro amigo, ao ouvir o relato, colocava um reparo. E nele deixava estremecer toda a sorte do mundo, que se apresentava como uma injunção terrível. Aquele homem parecia um espelhamento, uma versão dolorosamente invertida do poeta. Enquanto este seguia morto e reconhecido, às vezes de um modo incompreensivelmente tão antimodernista, por uma sociedade com a qual mantivera conflitos intensos, aquele outro, morador de rua, soropositivo, apesar do sangue ainda lhe correr pelas veias, visto de perto, permanecia uma sombra fugidia de si mesmo, desenhando a cada movimento a sua própria exclusão. Parecia se perguntar como o poeta: “Onde está o insofrido?”

Este texto foi publicado originalmente no Outras Palavras.

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