A revolução e a aurora

Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, com a Cia. de Mysterios e Novidades

Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, com a Cia. de Mysterios e Novidades

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Por Theotonio de Paiva

Seria toda revolução uma aurora?
Oswald de Andrade, Um homem sem profissão

Ao longe, vemos se aproximar um grande cortejo. São atores, bailarinos, músicos, que surgem da direção do cais. São tantos que a vista se perde em contar. Em seus passos cadenciados, embalados por uma velha melodia, atravessam uma larga via expressa. Talvez nos queiram dizer que aquela caminhada começou nos desvãos do mundo. No alto, trazem um caixão envolto com a bandeira do Brasil. Parece tratar-se de um herói. Mas que herói seria esse que entidades míticas reverenciam dessa maneira, a ponto de virem à frente, abrindo os caminhos?

O destino do teatro é andar. Assim, muitos se erguem às alturas, caminhando em pernas de pau, equilibristas de um destino, como os gigantes das velhas fábulas. Observados mais de perto, julgamos, pela doçura dos seus olhares, dos seus meneios, que, ao trazerem costumes religiosos antiquíssimos, aliados às fontes pagãs, não reverenciam uma personagem qualquer.

E isso nos faz pensar que também o tempo é outro e precisa ser mais bem compreendido, pois se divide em diversas possibilidades e criações. Desse modo, na narrativa da Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, sobressai de imediato o tempo da celebração.

Dança dramática revisitada pela Grande Companhia Brasileira de Mysterios e Novidades, sob a direção de Ligia Veiga, numa dramaturgia a partir de textos da diretora em parceira com Edmilson Santini, espetacularmente a ela se une um outro tempo, aquele da história concreta.

O primeiro é um tempo arcaico, ao passo que, no último, estamos distante apenas de um século, num Rio de Janeiro, capital do país na época, que se transformava rapidamente. E é por aí que o sagrado e o profano se entrelaçam.

Naqueles primeiros anos de uma era dos extremos, a cidade, capital de uma jovem república, tendo dobrado a sua população na década anterior, contabilizava a marca de um milhão de habitantes. O impacto disso no papel a que se destinava o Rio de Janeiro irá se potencializar com as obras da reforma do porto e a construção do cais.

E essa ação não acontecia de forma a levar em consideração os interesses de amplos setores da população, sobretudo das classes subjugadas. Muito ao contrário. E se dava a conhecer através dos morros arrasados, das avenidas cortadas para darem vez somente aos moços e moças bem trajados da belle époque, pela destruição de abrigos e casas populares, curiosamente no suporte da lei que constrangia cidadãos.

Essa calculada ação do Estado, que ficou conhecida como bota-abaixo, foi ordenada a partir de um conceito visando a implantação do progresso e da civilização em termos definitivos. Se quisermos entender um pouco mais o que estava acontecendo, precisaremos levar em consideração o processo que as regiões periféricas ao desenvolvimento industrial iriam experimentar, num quadro que consagrava a hegemonia européia por todo o planeta.

Assim, ao se transformar numa capital que se queria majestosa, com ares parisienses, abandonando os antigos contornos mouriscos, herdados da cultura ibérica, a cidade, inconsequentemente, via seus filhos serem expulsos do seu próprio mundo.

Num contraponto a esse estado de coisas, curiosamente se ergue o cortejo na antiga porta de entrada da cidade. Exatamente ali, naquele trecho da nossa costa, onde os navios estrangeiros outrora atracavam e despejavam levas de homens e mulheres d’outras terras. Interessante lembrar que foi exatamente essa condição uma das armas de convencimento para a grande transformação urbanística daqueles primeiros anos.

Encenado numa tarde de outono, num domingo, na antiga Praça Mauá, em frente ao Museu de Arte do Rio – MAR, a Chegança do Almirante Negro deixa claro que irá nos revelar, melhor, tirar o véu das nossas sabenças confusas e mais estupidamente imediatas. E é aí, quando aquela rude pergunta repousa de novo: quem é esse almirante negro? Talvez fosse melhor começar sabendo o que ele não é.

Estamos distantes daquelas figuras que, num passado não muito remoto, rapidamente se transformavam em efígies de poderosos, lambidas pelos dedos infantis nas páginas dos livros escolares. Nada de presidentes engalanados, donos da pátria, acadêmicos, marechais de ferro, poetas de sobrecasaca, ou heróicos bandeirantes que se glorificaram em “adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne humana”. Nada disso encontraremos nas vestes brancas de um estranho chamado João. A bem da verdade, a imagem do herói é cerzida no manto de uma fidalguia popular.

E o espanto que nos faz admirar tão velha criação humana, em parte, se dá por conta dos seus realizadores tomarem para si o papel de presentificar o mito, numa vasta e portentosa celebração/representação. E, assim, na sua alegria descomunal, acenam todos aqueles marujos de araque, dando vivas como quem re-apresenta o que poderia ter sido e não foi. Orgulhosos de si e da fantasia que expulsam do ventre. Nela, veremos, adernando em navios espetaculares, o episódio da Revolta da Chibata e de seu líder João Cândido Felisberto, o almirante negro.

Trata-se, provavelmente, de um dos movimentos políticos mais significativos da era moderna do Brasil. Como se sabe, a Revolta foi organizada por militares da Marinha do Brasil, cujo planejamento, por cerca de dois anos, viria a explodir num intenso motim, durante a semana de 22 a 27 de novembro de 1910, na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Fundamentalmente, ocorre numa reação aos intensos castigos corporais e ao oferecimento forçado do consumo de carne podre a que eram submetidos os marujos.

Não é difícil entrever, nesse quadro, uma espécie de renitência dos tempos do escravismo. Curiosamente, o escritor Oswald de Andrade, uma das mais expressivas testemunhas daquela revolta, irá comparar, em seu livro de memórias, Um homem sem profissão, a experiência narrada no filme Encouraçado Potemkim, de Sergei Eisenstein, às reivindicações dos marujos brasileiros. Vamos lá.

Chegança

Como se fossem pelos ares, em galopes de pernas de pau, os atores e bailarinos criam embates, em danças e contradanças. Igualmente pelo ar, os músicos plantados no chão fazem revoar uma antiga toada dos marinheiros. Por anos seguidos, a canção fora associada a um verde amarelismo ufanista, espécie de devotamento cívico, que mascarava dores e chibatas, quando não ostentava toda a sorte de opressão. No entanto, agora, toma-se novamente gosto por ela. Como se a velha melodia fosse devolvida aos seus legítimos senhores, duramente arrancada que fora por mãos inábeis, para dela cuidar de forma perversa e molestá-la. Isso talvez equivaleria a dizer que o nosso navio, ao menos numa vaga esperança, também flutua.

Mais à frente, desce o corpo à terra. Se o almirante está morto, é nesse momento que a sua história tem início. Contada por bufões, que se desdobram em inúmeros atores-narradores, é essa reinvenção que dará suporte ao mito, levando-nos a pensar naquela linha tênue, a separar toda a fantasia da história, e retornando pela imaginação em voos surpreendentes.

Mas, do quê exatamente eles falam? A chegança, que serve de suporte à narrativa, ao invés de contar a história de mouros e cristãos, como versa a tradição dos folguedos, inverte a roda. Dessa maneira, a tradição imemorial é posta a serviço de uma recriação sensível daquilo que originalmente pertencia a um mundo ibérico e que nos chegou pela audácia, o destemor e a violência dos colonizadores, abrasileirando-se indelevelmente, unificada que fora pelo trabalho marítimo.

Quando paramos para observar a Chegança do Almirante Negro, notamos, contudo, em sua narrativa, a presença de uma história de tempos profanos misturados a uma transcendência que se liga aos ritos dos antepassados negros, negros assim como o nosso herói. E exatamente por isso se diferencia, ainda mais, das cartilhas e murais canônicos. Cândido, aliás, nos é apresentado ainda menino, como um antigo negrinho do pastoreio, que um dia irá se juntar às armas, por força da precisão e de algum oculto desejo heróico.

Mas a sua história seria outra, de um outro heroísmo. Assim, nesse auto popular brasileiro ocorre toda a sorte de violências, castigos corporais, lutas e revoltas, compondo um quadro extremado e violentamente poético de esperanças de um novo tempo, naufragadas em novas esperanças desesperadoras. E será João o grande líder que irá conduzir aquela pequena frota e os homens.

O embate decisivo, quando as armas dos navios apontam para a cidade, trazem clamores e revoltas de toda sorte, em torno daquela epopéia. Parte da população civil se vê convidada a se envolver e a decidir de que lado está, ou identificados com os marinheiros, ou com o poder do Estado. Não há meio termo.

Dessa maneira, a cena é invadida por personagens que medem forças políticas e indiretamente repensam o estado civilizatório em que nos chafurdamos. São populares, jornalistas, políticos e artistas. E ditadores disfarçados, marechais, representantes do grande capital, altas patentes. Bem-intencionados, cretinos, puros d’alma, malfazejos, oportunistas e covardes. Alguns cabem na história como maioria. Outros têm os seus nomes reduzidos a lembranças incômodas.

E, em meio a todo esse conflito, surge como um bálsamo do futuro o relato sereno e vigoroso de Oswald de Andrade. Numa noite, ainda jovem, ao sair da casa de amigos, em meio à Avenida Central, mais tarde Rio Branco, o poeta ouviu falar em revolução. O coração maravilhado e sedento de aventuras, pergunta: onde? E apontaram o mar. E do mar se escutava um “prolongado soluço de sereia”.

E novamente no cais, ao admirar uma baía que “esplendia com seus morros e enseadas”, o escritor, lá pelas quatro da manhã, naquela hora shakespeariana em que tudo pode acontecer, qualquer levante, qualquer virada radical no enredo, é acordado por um reles ladrão.

Encontrava-se nos jardins da Glória, perto da Praça Paris. Em frente, navios de guerra, todos de aço. Naquele momento, reconhece o encouraçado Minas Gerais, que conduzia a marcha, o São Paulo e mais um outro. E, simbolicamente, todos ostentavam, “numa verga do mastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha”.

E, assim, conduzido por um destino zombeteiro, o poeta estava “diante da revolução”. E ali, muito provavelmente, ainda distante do que aquilo efetivamente significava para a história do país, semearia a pergunta que um diria conseguiria exprimir, numa notável poética: “Seria toda revolução uma aurora?”

Os dois movimentos se integravam. A esperança dos homens por uma radical transformação do mundo, ainda alicerçada, segundo alguns, numa categoria mítica, e a expressão do próprio mundo que se revigora em seus nascimentos e mortes, em suas noites de frio e suas manhãs ensolaradas. E aí, desembocamos nas cheganças.

Em alguma medida, as cheganças, duramente construídas por séculos de sabedoria popular e semi-erudita, se combinam com uma tradição muito antiga, que envolve a dialética vida e morte.

Espantosamente, nelas testemunhamos um registro humano das expressões dos ciclos vitais. Surgem enquanto possibilidade de compreensão do homem diante de um mundo tão fascinante quanto assombroso. E ele próprio, homem, sujeito e testemunha dessa transformação, chega (de chegança), para lutar e contemplar. E era (e ainda é) esse o mundo do folguedo popular, considerado como um ato divinatório, a considerar a própria criação como uma expressão que se perde em tempos arcaicos.

No entanto, se olharmos bem, na Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África esse ciclo é diverso da tradição popular. Vai além. Nem melhor, nem pior, mas opera num minuano que sopra para outros lados, provocando um refazimento daquilo que herdamos para aquilo que potencialmente somos enquanto nação brasileira. E se deixa levar, ao final, num novo cortejo que se encaminha para um outro tempo, de ressurreição do herói, cujos cantos ensejam o romper de uma nova aurora.

Este texto foi publicado originalmente no Outras Palavras.

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Suplício dos cem pedaços

Suplício dos cem pedaços

Por Theotonio de Paiva

A propósito de pastores e pequenos tiranos, uma coisa aprendi com a história: não menosprezar a habilidade que essas caricaturas de homens têm em realizar estragos profundos nas sociedades. Os exemplos são vários e para todos os gostos.

E é difícil acreditar que, apesar de tudo o que sofremos e conseguimos construir ao longo de todo o processo civilizatório, muitos ainda sejam mobilizados por essas narrativas tão grotescamente degradantes do ser humano.

Vale a pena registrar que algumas figuras notáveis se debruçaram e mobilizaram grandes energias para entender esse processo terrível de manipulação de corações e mentes. Freud, com o seu Mal-Estar na Civilização, foi um deles, Adorno e Reich foram outros. E por aí vai.

De qualquer maneira, impressiona como a grande maioria desses pensadores traça um eixo comum que aponta para a construção de um imaginário que ataca alguns pontos extremamente vulneráveis do ser humano.

Nesse sentido, agem através de uma farta simbologia. E essa simbologia é posta a serviço de uma reinterpretação de mitos arcaicos – o caso de Noé é emblemático – visando atingir drasticamente aquelas zonas perigosas do inconsciente em que anseios e repressões se confundem.

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O mito do capitalismo natural

Por Rafael Azzi, do Outras Palavras

l'hommeO modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que somos  essencialmente individualistas e agressivos.

Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos sobre a natureza humana.

O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”.

Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A narrativa histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.

O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue, sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas. Além disso, ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de outras pessoas e outras gerações.

Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por um conjunto de teorias científicas. O darwinismo social é uma interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana. Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade humana. Dessa forma, características como individualismo, agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução. Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o modelo natural a ser adotado.

Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista. Já se observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um dos animais mais sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato: vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de coletividade e de comunidade.

Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia. Os neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo algo. Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação ou duplicação interna dos atos de outros.

Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao observar alguém sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também. Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.

A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo em que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo grupo. Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado diferente, distante e, eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza humana.

Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o questionamento. Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um menino de rua”. Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular constantemente o egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.

Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento, mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.

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A arte de ouvir

Muitas palavras acabarão em jazigos digitais, mas o contador de estórias seguirá até que o último ser deixe de escutá-lo

Por Henning Mankell* | Tradução: Paulo Cezar de Mello, via Outras Palavras

Cheguei à África com um objetivo: queria ver o mundo do lado de fora da perspectiva egocentrista europeia. Podia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul. Acabei na África porque a passagem aérea para lá era mais barata.

Vim e fiquei. Durante quase 25 anos, vivi em Moçambique em períodos alternados. O tempo passou e eu não sou mais jovem. Na realidade, estou chegando à velhice. Mas a minha razão de levar essa existência escarranchada, com um pé na areia africana e outro na neve europeia— na melancólica região de Norrland, Suécia, onde cresci —, tem a ver com a vontade de ver com clareza, de compreender.

O modo mais simples de explicar o que aprendi com minha vida na África é recorrer à parábola sobre a razão de os seres humanos possuírem duas orelhas mas só uma língua. Por que isso? Provavelmente porque precisamos ouvir duas vezes mais do que falar.

Na África, ouvir é um princípio orientador. Princípio que tem se perdido na tagarelice ininterrupta do mundo ocidental, onde ninguém parece ter tempo nem mesmo desejo de ouvir quem quer que seja. Pela minha própria experiência, percebi como a necessidade que tenho de responder a uma pergunta durante uma entrevista para a TV ficou mais urgente do que era dez, quem sabe cinco anos atrás. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de ouvir. Falamos, falamos e acabamos amedrontados pelo silêncio, o refúgio daqueles que ficam sem saber o que responder.

Sou velho o bastante para lembrar a época em que a literatura sul-americana emergiu na consciência popular e mudou para sempre nossa visão da condição humana e do significado de ser humano. Agora, penso que chegou a vez da África.

Por toda parte, gente do continente africano escreve e conta estórias. Com certeza, a literatura africana logo estará pronta a irromper na cena mundial — assim como aconteceu com a literatura sul-americana anos atrás, quando Gabriel García Márquez e outros conduziram uma revolta tumultuosa e altamente emocional contra verdades arraigadas. Brevemente um jorro literário africano oferecerá uma nova perspectiva sobre a condição humana. O escritor moçambicano Mia Couto, por exemplo, criou um realismo mágico africano que mistura linguagem escrita com as grandes tradições orais da África.

Se formos capazes de ouvir, vamos descobrir que muitas narrativas africanas apresentam estruturas completamente diferentes do que estamos acostumados. Eu simplifico demais, claro. No entanto, todo mundo sabe que há verdade no que estou dizendo: a literatura ocidental é normalmente linear; vai do começo ao fim sem grandes digressões no espaço ou no tempo.

Não é o que acontece na África. Aqui, em vez de narrativa linear, existem narrativas desimpedidas e exuberantes que saltam para trás e para frente no tempo e fundem passado e presente. Alguém que morreu há muito tempo pode intervir sem cerimônia numa conversa entre duas pessoas perfeitamente vivas. Isto só para dar um exemplo.

Os nômades que ainda habitam o deserto de Kalahari são conhecidos por contar estórias entre si durante suas caminhadas de um dia inteiro para procurar raízes comestíveis e animais de caça. Com frequência há mais de uma estória se desenrolando ao mesmo tempo. Às vezes, três ou quatro estórias seguem paralelas. Mas, antes de voltar para o local onde passarão a noite, eles procuram entrelaçar as estórias ou separá-las de vez, dando a cada uma sua própria conclusão.

Uns tantos anos atrás, sentei-me em um banco de pedra do lado de fora do Teatro Avenida em Maputo, Moçambique, onde eu trabalho como consultor artístico. Era um dia quente, e estávamos fazendo um intervalo nos ensaios a fim de dar uma escapada lá para fora, esperando que soprasse uma brisa fresca. Fazia tempo que o sistema de ar condicionado do teatro deixara de funcionar. Devia fazer mais de 38 graus lá dentro enquanto trabalhávamos.

Dois velhos africanos estavam sentados no banco, mas havia lugar também para mim. Na África, compartilha-se mais do que apenas água, um hábito fraternal. Mesmo quando se trata de sombra, as pessoas são generosas.

Ouvi os dois falarem de um terceiro homem velho que havia morrido recentemente. Um deles disse: “Eu estava de visita em sua casa. Ele começou a me contar uma estória assombrosa sobre algo que aconteceu quando ele era jovem. Mas a estória era longa. Veio a noite e concordamos que eu devia voltar no dia seguinte para ouvir o resto. Só que, quando eu voltei, ele tinha morrido.”

O homem caiu em silêncio. Resolvi que não deixaria aquele banco enquanto não escutasse a resposta que o outro daria ao que tinha ouvido. Tive um sentimento instintivo de que isso seria importante.

Finalmente, ele também falou:

“Não é um jeito bom de morrer — antes de ter contado o final da sua estória.”

Enquanto eu ouvia aqueles dois velhos, ocorreu-me que um termo para nomear nossa espécie, mais verdadeiro do que Homo sapiens, poderia ser Homo narrans, a pessoa que narra, que conta estórias. O que nos diferencia dos animais é o fato de que podemos escutar os sonhos, medos, alegrias, tristezas, desejos e frustrações das outras pessoas — e elas, por sua vez, podem escutar os nossos.

Muita gente comete o erro de confundir informação com conhecimento. Não se trata da mesma coisa. Conhecimento implica interpretar a informação. Conhecimento implica ouvir.

Então, se eu estou certo em dizer que somos criaturas narradoras, e na medida em que nos permitimos ficar quietos por um momento às vezes, a eterna narrativa irá prosseguir.

Muitas palavras serão escritas no vento e na areia, ou acabarão em algum obscuro jazigo digital. Mas o contador de estórias seguirá em frente até que o último ser humano pare de ouvir. Então, podemos enviar a grande crônica da humanidade para o universo infinito.

Quem sabe? Talvez haja alguém lá fora, desejando ouvir…

(*) Henning Mankell é autor de muitos livros, entre os quais os romances policiais protagonizados pelo personagem Kurt Wallander. O artigo foi publicado em 10 de dezembro de 2011 pelo New York Times