De olhos bem abertos

Por Theotonio de Paiva

Casa onde morou Mário de Andrade, na Rua Lopes Chaves

“Casa minha”, podemos ler no verso da imagem. Lá morou Mário de Andrade, na Rua Lopes Chaves – Foto M. A.

Há muito não ia a São Paulo. Devia ter pelo menos uns quatro anos que não andava pelas ruas daquela cidade. Em outros tempos, geralmente ao chegar, ali pelo Tietê, embicando na rodoviária, me recordava dos versos famosos: “São Paulo! Comoção de minha vida…” e me deixava iluminar por dentro. E vinha um compasso trinado daquilo que a distante cidade significava em mim, desde a primeira visita com meu pai até resvalar nas idas constantes para as minhas pesquisas e alguns projetos.

Era uma sexta-feira e eu acabara de almoçar na Rua Augusta. Estava ali, num misto de trabalho, contatos e, sobretudo, interessado em realizar finalmente uma espécie de visita sentimental.

Uma chuva contínua dera o ar de sua graça lá pelo final da tarde do dia anterior. As calçadas molhadas pareciam insistir para que os meus sensores mais vagabundos ganhassem uma atenção redobrada. Nada poderia escapar daquela vigília realizada com os olhos bem abertos. Absolutamente nada.

Como ia dizendo, acabara de almoçar num restaurante com um jornalista amigo meu. Estávamos acompanhados de uma senhora encantadora, igualmente jornalista, que eu conhecera ali, naquela ocasião.

Na verdade, havia uma sutileza nesse encontro. Efetivamente, eu acabara de conhecer esse meu amigo, naquele exato momento. É claro que isso se explica com algumas poucas palavras. Muito embora nos correspondêssemos há uns três anos, embalados pelas facilidades do mundo virtual, e, nesses contatos, fosse fácil perceber uma certa intimidade, éramos, contudo, ainda distantes um para o outro. Por conta de um trabalho em comum, passamos a nos comunicar com certa frequência, através de emails e mensagens. A mulher, ao contrário, seria desde sempre uma presença real, linda nos seus movimentos e capacidade de perguntar o que ficara em construção pelo pensamento. E ambos me ajudavam a pensar São Paulo como uma cidade, cuja tradução “a berrar nos desertos da América”, se faz necessária emergir em novas equivalências nas suas sensíveis diferenças.

De todo modo, havia uma expressão de segurança, de velhos conhecidos, cujas antigas afinidades se deixavam acontecer. Com um pouco de ironia, dali a algum tempo, ao me afastar deles, esse estado de segurança iria desaparecer em mim, quase sem deixar vestígios.

Há alguns anos, sob um sol escaldante, estive em Barra Funda, antigamente considerada periferia da cidade, a fim de visitar a casa onde morou Mário de Andrade. Era uma visita para a qual me preparara desde sempre. Começou quando, ainda adolescente, vi algumas fotos de uma São Paulo antiga que embalara a existência do escritor. E aquilo crescera comigo, em meus modestos estudos e num desejo de quem mitifica o mundo, e, nesse compasso, ambiciona trazer para dentro de si aquele mesmo quadrante que os olhos sonolentos abrigavam.

Esforço inútil. Era um sábado e o local, já na época transformado em centro de cultura, a Oficina da Palavra, não abria aos sábados. Fechava-se no seu mobiliário pela voz do guarda aos visitantes desavisados.

Atualmente a situação, parece, mudou bastante. De qualquer maneira, talvez fosse capaz de dizer que apenas aquela lembrança ainda me deixa sem ação. Preso à calçada, contava uma derrota que me retorcia inteiro. Impossibilitado de gerar uma reação tímida que fosse, procurava, com os meus olhos, um sentido qualquer para aquela situação de desalento.

Acreditando ou não, naquele momento, eu fora privado de olhar pela mesma janela por onde o poeta via o mundo. Coisa talvez sem importância, num culto desnecessário ao passado, embora não se tratasse de um poeta qualquer. As horas de dedicação e pesquisa, ao menos para mim, há muito tinham gerado uma intimidade distante e próxima. Diria mesmo perversa, quando, ao final de algum tempo, acabamos por travar com os nossos objetos de estudo uma afeição necessária, porém desmedida. E, nessa curiosa relação, o poeta modernista era alguém que se infiltrava pelas minhas retinas, em seu terno de casimira inglesa, como aqueles que meu pai também usava.

No entanto, a situação agora era integralmente nova. E aquela visita programada voltava a existir enquanto uma modesta possibilidade.

Saímos do almoço, os meus dois amigos jornalistas e eu, conversando sobre amenidades. Os guarda-chuvas se esbarravam e queriam pedir passagem, apressados. Naquele descompasso, o tempo parecia não deixar ver direito o vai-e-vem de ricos e brancos, que bem de perto ficam pobres e pretos.

Passamos novamente pelo local onde fica o bunker da redação. Faço uma pequena hora, despeço-me, e, ansioso, dirijo-me ao metrô.

Ao comprar o bilhete, pensava naquelas distantes ruas da Barra Funda. É para lá que eu ia.

Os anos passados e o tempo chuvoso tornavam o lugar pouco familiar. Não me recordava direito da topografia. Queria me lembrar daquela rua íngreme, por onde imaginava o poeta subindo à noite. Talvez procurasse por algum vizinho próximo a escutar os ecos, às duas horas da manhã, do piano tocando Bach, enquanto os trabalhadores dormiam profundamente.

No entanto, naquela tarde, a rua parecia ter sumido de suas próprias cercanias. Ante o meu desespero, procurei um ambulante que pudesse me informar onde ficava a Rua Lopes Chaves. Avisto um rapaz negro, meio alto, vendendo algumas guloseimas numa esquina, próxima de um enorme viaduto. Daquele lugar, com construções antigas, que soavam estranhas à cidade, ele também não distinguia muito bem o mundo que o rodeava.

Um pouco distante, vejo se aproximar um homem ainda jovem. Os passos contidos ajudavam a organizar os pontilhados da imagem que lentamente se formavam. Era visivelmente um morador de rua. As roupas encardidas, o cabelo, meio gruvinhado, e as mãos que se afagavam mostravam um aspecto visivelmente miserável. No entanto, aquela aparência, veria logo, desdizia o homem. À parte deixar transparecer uma generosidade incomum, exercia um comando meio heróico dos seus seres imaginários e da sua solidão inconclusa, além de efetivamente parecer disposto a encontrar a rua e assim me ajudar.

Naquele passo de alma cambaleante me deixei levar por aquela situação e concordei com a sua oferta. Não tinha muito que perder. Num ato contínuo, o homem vai até uma birosca e retorna decidido. Já sabia onde ficava o local.

Aquilo dura pouco. Logo em seguida, descubro que está enganado. Era um outro Lopes, ou um outro Chaves, que lhe informaram. Mas isso agora não fazia uma diferença significativa.

A princípio, aquilo para mim não estava claro, mas aquele homem, com cerca de seus trinta e poucos anos, via em mim alguém com quem pudesse conversar e, provavelmente, conseguir alguma ajuda, o que logo se confirmaria.

No entanto, o que assoma do nosso amigo é a sua capacidade de entreter o outro. Assim, como um malabarista das palavras, se desdobra em encontrar assuntos e meios para conduzir o tempo. Comentava pelos cotovelos a importância da educação, da cultura e daqueles outros conceitos distantes que ele possuía e, ao mesmo tempo, invejava por não ter, ao menos por não ter da maneira que desejava. E contava de sua compreensão sobre o Príncipe, de Maquiavel. Evidentemente, Emerson, vamos chamá-lo assim, não frequentara uma escola formal, no entanto, lera aquele clássico da ciência política por duas vezes, expondo em detalhes uma concepção bem formada que me nocauteava.

Falava de Napoleão. E apressava-se em discorrer sobre Maquiavel e Sun Tzu, os autores de cabeceira do corso, cuja dedicatória à Heróica fora implacavelmente riscada pelo músico alemão quando aquele se fizera Imperador. E emendava os assuntos. E cantava romanticamente uma espécie de lírica sobre a sua mulher, a doce Elisa, que mais parecia se erguer como um simulacro de Dulcineia. Entretanto, tudo leva a crer, Elisa não ocultava a verdade praquele Quixote das quebradas. Era ela a verdadeira dama.

Num repente, assim de chofre, se revela: – Nós somos soropositivos.

Mais um golpe. Previsível nocaute. Mas de todo modo, constrangedor, apesar da inteligência em falar de si mesmo com uma espécie de distanciamento o que dava às palavras daquele homem uma certa leveza.

Feliz com a atenção que eu lhe dedicava, pedia para tocar as mãos em sinal de amizade. E gentilmente dizia: – Se eu não lhe incomodasse, receberia de bom grado um presente. Que presente seria? Fraldas para ele e a sua mulher. Rapidamente, sem me deixar raciocinar, informava que os recursos dados pelo governo haviam terminado e o coquetel os fragilizava terrivelmente.

Enquanto nos dirigíamos a uma farmácia próxima, observava melhor aquele sujeito. Cruzávamos um viaduto. E as roupas encardidas, os dentes mal conservados, e a verve de um intelectual que poderia ter sido e não foi, gritavam em toda a sua plenitude. Cuido para que não seja importunado no estabelecimento, ouça frases que venham a agredi-lo, ou, quem sabe ainda, seja convidado a se retirar. Nesse sentido, adoto uma postura meio paternal, que me dói um pouco ter de lançar mão, mas julgo necessária assim mesmo.

E nos despedimos mais à frente. Numa confusão vulcânica, encaminhava-me à Rua Lopes Chaves, naquele momento, já devidamente mapeada. A casa, encantadora, não mais pertencia a ninguém, mas à memória de uma cidade e do mundo. E poderá ser compreendida como um patrimônio cultural dos nossos desejos e das nossas tradições mais fecundas.

De volta à minha cidade, um outro amigo, ao ouvir o relato, colocava um reparo. E nele deixava estremecer toda a sorte do mundo, que se apresentava como uma injunção terrível. Aquele homem parecia um espelhamento, uma versão dolorosamente invertida do poeta. Enquanto este seguia morto e reconhecido, às vezes de um modo incompreensivelmente tão antimodernista, por uma sociedade com a qual mantivera conflitos intensos, aquele outro, morador de rua, soropositivo, apesar do sangue ainda lhe correr pelas veias, visto de perto, permanecia uma sombra fugidia de si mesmo, desenhando a cada movimento a sua própria exclusão. Parecia se perguntar como o poeta: “Onde está o insofrido?”

Este texto foi publicado originalmente no Outras Palavras.

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Telê, a principal responsável pelo acervo, fala sobre a obra do escritor - Foto: Daniel Garcia

Telê, a principal responsável pelo acervo, fala sobre a obra do escritor – Foto: Daniel Garcia

Talvez não exista algo similar no Brasil. O arquivo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo, tem os manuscritos, as fotografias, as matérias de periódicos, os recortes, a correspondência, os quadros do escritor. Há também manuscritos de outros escritores. “Mário dialogava com os companheiros modernistas que mandavam a ele manuscritos de obras ainda a publicar”, conta Telê Ancona Lopez

Telê Porto Ancona Lopez, titular de Literatura Brasileira na FFLCH-USP, devotou sua vida à curadoria do Arquivo Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Coordenou o projeto temático Fapesp, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras (2006-2011). Nesta entrevista à Walnice Nogueira Galvão, publicada originalmente na Teoria e Debate, a principal responsável pela manutenção do acervo de Mário de Andrade nos fala sobre o seu trabalho com a obra do escritor..

Conte para nós como você foi parar na pesquisa da marginália (anotações autógrafas na margem dos livros) dos livros de Mário de Andrade, e daí para essa maravilha que é o Fundo Mário de Andrade. Hoje, entre suas realizações contam-se inúmeros volumes publicados, teses defendidas sob sua orientação, equipes que se formaram sob sua coordenação, projetos para os quais você arranjou financiamento. Tudo isso começou antes ou depois do doutoramento?

Antes, em 1962. Antes mesmo do meu mestrado, em 1967; meu doutoramento é 1970. O trabalho com a marginália do Mário de Andrade começa em um curso de especialização dado por Antonio Candido, em 1962, na área de Teoria Literária e Literatura comparada da Faculdade de Filosofia, da Universidade de São Paulo, em 1970. Era a análise e a interpretação do poema “Louvação da tarde”, se prolongou naquele belíssimo ensaio “O poeta itinerante”. Ficamos um semestre trabalhando o poema; praticamente em tudo: estrofação, metrificação, sonoridade, imagens, metáforas e símbolos… Nesse curso, Antonio Candido contou pra gente que o acervo de Mário de Andrade permanecia intacto na casa da Rua Lopes Chaves, cuidado pela família, com perfeita responsabilidade: biblioteca, quadros, discos, manuscritos. E nos disse que, na biblioteca do Mário, havia marginália, e que ele a conhecia. Era talvez a marginália mais importante, mais rica, no Brasil. Eu, muito afoita, levantei a mão e propus: “Professor, vamos recolher essa marginália nas férias de janeiro!”. A verdade é que foram muitos janeiros, até 1968, quando demos por terminada a tarefa. Quero lembrar que as aulas de Antonio Candido eram às sextas-feiras, na sala 11, a maior sala, no prédio da Rua Maria Antônia, e que muita gente importante vinha assisti-las, discutir o texto. (Leia depoimento de Antonio Candido sobre a trajetória do acervo)

Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Teles assistiam ao curso, você se lembra?

Claro! Vinha também o Maurice Capovilla. Falava-se também de cinema. E de política, naturalmente!

E também o secretário, José Bento?

Ele não. Em 1962, o José Bento vivia em Ribeirão Preto. Por coincidência, eram amigos do meu pai, lá. Zé Bento, quando se aposentou e voltou para São Paulo, passou a frequentar o Instituto de Estudos Brasileiros. Era um excelente amigo, sempre disposto a responder nossas questões. Sua correspondência com Mário de Andrade, que será publicada por Marcos Antonio de Moraes, oferece a minúcia do cotidiano, na casa do escritor.

E seu trabalho não acabou até hoje… Sei que o estudo da marginália você completou, li seu trabalho.

A reunião da marginália, sim. A reunião e o início do estudo dela foram trabalho de Maria Helena Grembecki, que era minha colega naquele curso de 1962; Nites Feres, que viera de Assis, já uma pesquisadora competente, e por mim, com Antonio Candido orientando as três.

Mas no levantamento da marginália do Mário eram só vocês três?

Nós três. Em 1968, a Vera Chalmers trabalhou nas férias do fim de ano, para nos auxiliar na finalização; conseguimos uma moedinha parca e ela ficou conosco dois meses.

Já era da Fapesp? A pesquisa da marginália foi financiada pela Fapesp, que acabara de ser criada?

Foi. Aliás, a remuneração da Vera Chalmers foi indiretamente da Fapesp; compartilhamos com ela nossas bolsas.

Parece que foi a primeira vez que saiu verba da Fapesp para literatura. Antes só saía para ciência. Antonio Candido propôs vocês três como bolsistas…

A primeira verba para literatura foi, de fato, a do professor José Aderaldo Castello, que viajou pelo Brasil recolhendo a produção das academias coloniais. Em 1963, Antonio Candido pediu verba à Fapesp para nosso projeto. Em 1964, estava tudo encaminhado, mas sobreveio o golpe militar e não saiu nada. Continuamos firmes, trabalhando por nossa conta. Dávamos aula para sobreviver e, no princípio, íamos à Rua Lopes Chaves duas, três vezes por semana. Depois, quando saíram as bolsas em 1965, íamos de segunda a sexta-feira. D. Lourdes, a irmã de Mário, o marido dela, Eduardo Ribeiro dos Santos Camargo e os três filhos nos recebiam com amizade e carinho; viramos gente da casa.

Quantos anos demorou esse trabalho?

Saímos da Lopes Chaves em agosto de 1968. Portanto, ficamos de 1963 a 1968. Me lembro do Antonio Candido chegando de boina, muito chique, no inverno. Eu levei minha máquina de escrever Olivetti portátil; usávamos também a Remington do Mário, por ele batizada Manuela, e a máquina do “seu” Eduardo.

Em 1967, o professor José Aderaldo Castello, da área de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, nos emprestou a máquina de fotografar/microfilmar por ele inventada para coligir documentos do movimento academicista, sua pesquisa de fôlego, que rendeu dezessete volumes publicados. Essa máquina era fantástica: sobre uma base quadrada, quatro hastes sustentavam quatro lâmpadas e o suporte de uma câmera Leica que usava filme de 12 ou de 24 poses. Era preciso recortar as beiradas com uma tesourinha para encaixá-lo na câmera. Nós nos sentíamos muito importantes, fechadas no estúdio de Mário de Andrade, fotografando no escuro. Essa máquina foi fundamental para concluirmos o nosso registro da marginália.

Vocês três microfilmaram toda a marginália?

Fazíamos a transcrição diplomática datilografando tudo o que o Mário escrevera nas margens, nas páginas de rosto ou páginas em branco dos livros e revistas, até a gente se convencer de que a marginália era mesmo um mundo. Então, o Castello nos socorreu com a sua máquina especial. Para o registro das obras e das notas marginais Antonio Candido estabeleceu duas fichas: a cor de laranja, que eu gostava de chamar de “terra de Siena”, para os dados bibliográficos, e a ficha branca, que repetia esses dados e captava as anotações marginais. Creio que o estudo da marginália foi mais uma frente pioneira de Antonio Candido, no Brasil. Perseverei nesse caminho, trabalhando a criação de Mário de Andrade na biblioteca por ele formada. Venho me ocupando das leituras como matrizes, em diálogos que se explicitam na marginália, ou não. Escrevo artigos, oriento teses e dissertações que exploram a marginália.

Depois que vocês terminaram esse trabalho de pesquisa em 1968, passaram a redigir os mestrados?

Em 1966, o Antonio Candido chegou da França e disse: “Todo mundo tem de fazer mestrado”. E nós não sabíamos muito bem o que era mestrado, mas fomos descobrindo… Então, fizemos os três mestrados, focalizando a marginália. Em 1967, foram o da Nites Feres e o meu; em 1968 o da Maria Helena Grembecki. O meu foi O se-sequestro da Dona Ausente: reconstrução de um estudo de Mário de Andrade a partir de sua marginália. Não se conhecia os manuscritos desse inédito que veio à tona durante a organização do arquivo, na década de 1970. Depois, entre 1998 e 2001, Ricardo Souza de Carvalho, meu orientando e bolsista da Fapesp, ancorado nos manuscritos, preparou a Edição genética de O sequestro de Dona Ausente de Mário de Andrade, uma excelente dissertação defendida na FFLCH. Trabalhou com a marginália e com o dossiê do manuscrito. O mestrado de Nites foi sobre as leituras em francês de Mário de Andrade, leituras formadoras do modernista; o de Maria Helena cuidou de Mário e a revista francesa L’ Esprit Nouveau. Entre 2005 em 2008, Lilian Escorel, minha orientanda e bolsista da Fapesp, mergulhou nesse tema em seu doutoramento, agora publicado, A revista L’Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas e na poética de Mário de Andrade.

Então, defendidos os mestrados, o que aconteceu, qual foi a próxima etapa?

Foi a transferência do acervo de Mário para a USP, perspectiva para lá de lúcida traçada por Antonio Candido. Em 1968, ele e o professor Castello, então diretor do Instituto de Estudos Brasileiros propuseram ao governo do estado a compra do acervo para a Universidade de São Paulo. Para figurar no patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros. Vieram especialistas para a avaliação e eu secretariei o processo todo. Houve até a parte engraçada. Começaram a aparecer, na casa da Lopes Chaves, pessoas de terno e gravata, muito circunspectas. O secretário da Cultura, nos garantia que o Mário era tão importante quanto os jogos abertos do interior, ou o reflorestamento. E a gente firme ali. Porque o acervo tinha que ir para a universidade. Deu certo. A família recebeu um valor simbólico pelo que foi, de fato, negociado: a coleção de quadros e a biblioteca.

E a coleção de arte popular também.

Também, mas o arquivo foi doado.

Em cima disso tudo? Foi uma espécie de brinde.

Bem mais que isso. Uma oferenda que marcou a alta compreensão do valor e do destino desse arquivo, por parte da família Mário de Andrade.

Como você dimensiona isso? Em termos da variedade e quantidade, como é que fica o total?

O acervo de Mário de Andrade, um intelectual cultor da memória e documentalista de si próprio, constitui uma rede sem remate, na qual as informações se correlacionam. Equivale a uma profusa e fragmentada autobiografia, cuja montagem se multiplica nos enfoques que documentos de vários tipos e natureza proporcionam. Correspondência, manuscritos da criação nas áreas do polígrafo, manuscritos de outros escritores e de músicos, programas musicais, discos, fotografias, matéria extraída de periódicos, cardápios, papéis de teor  pessoal e burocrático, a biblioteca com mais 17 mil volumes e extensa marginália, a pintura, os desenhos e as gravuras, as peças de extração popular, enfim, um prodigioso número de registros guarda uma precisa cronologia que vai dos últimos anos século 19 até fevereiro de 1945, quando Mário de Andrade morre, as 51 anos.

Sou ruim de números, mas há no ABC do IEB, uma bela publicação organizada pela professora Anna Lanna, em 2010, o total dos documentos existentes no arquivo, na biblioteca e na coleção de artes visuais do Acervo Mário de Andrade. Fui curadora do arquivo até 2008 e coordenei a classificação das séries. Um banco de dados, preparado por Fred Camargo nestes três últimos anos, alarga o alcance dos documentos em todas as séries. Entre 2006 e 20011, o projeto temático Fapesp, sob minha responsabilidade, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras, no qual tive, como coordenadores associados, os professores Marcos Antonio de Moraes e Flávia Toni, classificou um total de 130 títulos de manuscritos. O projeto visou um “catalogue raisonné”, exemplificado na nossa revista Marioscriptor. Os dois números dessa revista eletrônica do projeto temático estão no site do IEB-USP.

Não tem nada de similar no Brasil? Em porte?

Talvez não. O que existe neste arquivo, em termos de séries, é importantíssimo. Como eu disse, há os manuscritos, as fotografias, matérias de periódicos, os chamados recortes, uma riqueza inesgotável em termos de documentos e possibilidades de pesquisa, de exploração. Os manuscritos de Mário de Andrade não se restringem à série que os organiza fisicamente; estão também nos recortes de textos do escritor na imprensa, rasurados como exemplares de trabalho; estão na marginália, na qual se flagra poemas e artigos esboçados e se localiza a possível primeira versão fragmentada de Macunaíma. Estão ainda na especialíssima série Manuscritos de outros escritores, na qual, dialogando com poetas e prosadores nas margens dos textos enviados para sua leitura e análise, Mário aparece como coautor, em suas sugestões. “Aconselho-te a dormir sobre o livro – REFLEXÃO”, ele observou, por exemplo, na margem do manuscrito de Cocktails, do poeta Luís Aranha, em 1922, e, aliás, deixou um projeto para a capa do livro. Márcia Jaschke Machado, minha orientanda, preparou um bonito catálogo analítico, anotadíssimo, dos manuscritos brasileiros nessa série.

Até que ponto vai a organização do próprio Mário? Quando você fala em manuscritos de outros escritores, por exemplo, é uma organização sua ou de Mário?

É uma classificação que propus decalcada numa divisão original, considerando a particularidade do arquivo. A classificação que coordenei no IEB, apoiada na arquivística, partiu da análise do arquivo. Concretizamos essa organização, eu e os pesquisadores que comigo trabalharam na equipe Mário de Andrade do IEB. Mário de Andrade era organizado: os manuscritos de outros escritores, na casa dele, ficavam juntos em uma estante, no hall do andar superior. Não havia, contudo, uma listagem ou uma ordenação. A identificação vinha dos próprios autores, em autógrafo ou datilografia. Desenvolvi metodologia para classificar manuscritos, à luz da arquivística, da codicologia e da crítica genética, procurando compreender o processo criativo para ordenar os documentos nos dossiês. Esse é o aporte teórico novo que marcou a classificação dessa série e dos Manuscritos Mário de Andrade.

E ainda há a correspondência passiva, oito mil cartas que ele recebeu.

A correspondência existente no Arquivo Mário de Andrade foi integralmente processada; o catálogo eletrônico, concluído em 2003, com respaldo financeiro da Vitae, está em um CD-ROM e no site do IEB. As 8 mil cartas significam o conjunto: a correspondência passiva, a ativa, que reúne cartas não remetidas, cópias guardadas, bem como originais doados pelos destinatários ou suas famílias, e a correspondência de terceiros, preservada por Mário. O professor Marcos Antonio de Moraes vem trabalhando incansavelmente para obter a correspondência ativa completa de Mário e publicá-la, na ligação com a passiva. É um projeto vinculado ao CNPq.

Mas você não chegou a mencionar o que tinha no arquivo.

A correspondência estava em pastas lacradas; havia uma organização inicial, discutível, que não conservamos, mas registramos. Esse registro nos auxiliou, pois, no caso de carta sem data, contígua a outra, datada, podia-se inferir o ano, o mês etc. Outros conjuntos ou séries do arquivo estavam fisicamente separados, mas não havia um inventário, uma listagem, uma organização precisa.

Estavam em caixas ou em outro tipo de ordem?

O material do arquivo estava originalmente em envelopes e pastas de cartolina, muitas delas reaproveitadas, isto é, portando títulos sobrepostos a indicações riscadas. Mário não usava caixas. A mudança do acervo para o IEB foi feita em caixas que conseguimos no supermercado vizinho. Foram preenchidas mantendo a sequência original das obras na biblioteca. Não se seguiu regra para o transporte e nem havia recursos financeiros para isso. Nem se pensava em seguro, com avaliação dos bens a serem deslocados. Hoje, felizmente, há regras, rigor. Hoje, com o que se conhece e se obedece, nossa cabeça não nos permitiria fazer algo semelhante. A Nossa Senhora da Glória, da coleção de imagens religiosas do Mário, veio para a USP embrulhada em um cobertor, viajando no meu colo, no banco de trás do Morris do professor Castello. Tivemos muita sorte, nos nossos cuidados; nada se perdeu, nada foi danificado. Enfim, o acervo de Mário foi recebido com emoção, no IEB, bem me lembro. Dona Brasilina, funcionária da copa, creditou a sorte aos santos barrocos, pois temia Exu e Xangô que também vieram. Todo esse panteão sincrético está organizado seguindo as formas mais atuais de conservação e figura no catálogo preparado por Marta Rossetti Batista, um livro notável. No IEB, a biblioteca ficou inicialmente tempo na ordem original e as bibliotecárias apenas conferiam, ajustavam. Depois começaram a organizar.

Esse foi o seu primeiro projeto coletivo?

De certo modo sim, embora não se tivesse traçado um plano geral. Eu pedi que constasse, das fichas de catalogação, a participação das obras na marginalia e isso foi feito. A biblioteca foi organizada ao mesmo tempo que a coleção de artes visuais, esta sob a coordenação de Marta Rossetti Batista, e o arquivo, por mim com a colaboração da Equipe Mário de Andrade voltada para a formação de pesquisadores. Prestei concurso no IEB em agosto de 1968 e o primeiro trabalho foi recuperar, fichando e microfilmando, a produção de Mário de Andrade na coleção dele do Diário Nacional (1927-1932). Crítica de literatura, artes plásticas e música; crônicas, poesia e ficção. Ali descobri o cronista da coluna Táxi. Em 1972, ocorreu a primeira grande exploração do acervo de Mário, aliás de todo o acervo do IEB, para a exposição comemorativa dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Marta, Yone Soares de Lima e eu, com ajuda de José Miguel Wisnik e Carlos Augusto Calil fizemos a exposição Brasil: 1° Tempo modernista: 1917-1929. Os documentos que levantamos renderam-nos o volume de título homônimo, na elegante diagramação moderna criada pela Marta Rossetti Batista, em 1973. Fomos convidadas para a inauguração da mostra, em Paris, promoção do Itamarati. Recusamos o convite, nesse tempo da ditadora, e preparamos uma jovem escolhida fora da universidade. Desavisada, ela insistia em dizer CEdras, em vez de Cendrars.

O material de recortes era de autoria de Mário ou variava?

É todo um conjunto ou a série Matérias extraídas de periódicos que guarda uma parte da produção jornalística de Mário, contendo até rasuras a lápis e a tinta, uma parcela da crítica sobre ele e um grande número de textos de e sobre literatura brasileira, estrangeira; sobre folclore, geografia, história, música, artes visuais, tudo. Mário de Andrade era atualizadíssimo; recebia de amigos recortes de jornais e revistas da Europa e da América Latina.

E como foi o primeiro projeto coletivo que você montou? Contou com ajuda de Castello? Depois que você fez doutoramento começou a ter orientandos e a dirigir pesquisas dos outros, certo?

O professor Castello, que foi diretor do IEB durante  catorze anos, e eu conversávamos bem sobre os projetos que envolveram o arquivo e a biblioteca de Mário de Andrade. Depois do meu doutoramento, tendo me tornado também docente da área de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, em 1972, passei a conjugar minhas atividades lá com o meu trabalho no IEB. Para organizar o arquivo de Mário, montei projetos coletivos que se ligaram a bolsas e verbas da Fapesp e do CNPQ. Para o arquivo, inventei uma caixa de armazenar documentos, na qual a tampa superior, uma vez aberta, pode conter os fólios já consultados, impedindo a dispersão deles, na mesa. As primeiras caixas foram executadas por presidiários e era muito triste vê-las chegar, sob guarda armada. As atuais foram fabricadas, conforme o modelo, pela Adriana Belarmino, uma expert. São azul cobalto, coisa fina. Como orientadora, procurei duplicar, para o IEB, documentos que perfaziam o corpus de mestrados e doutoramentos fora dos estudos sobre Mário de Andrade.

E qual foi o primeiro?

Minha primeira mestranda, Yoshie Sakyiama Barreirinhas, que reuniu o jornalismo de Menotti Del Picchia vinculado à propaganda do modernismo de 1920-1922, organizou paralelamente, para o Setor de Arquivos do IEB, fac-similes dos textos que levantou. De sua dissertação, O Gedeão do Modernismo: Menotti del Picchia no Correio Paulistano: 1920-1922, tirou ainda a coletânea de título homônimo, publicada pela Civilização Brasileira, em 1982. Nesses dois últimos anos, o elenco dos textos embasou o projeto de pós-doutoramento de Ana Paola de Andrade, que supervisionei. Anna Paola, bolsista da Fapesp, estudou particularmente os reflexos do futurismo na propaganda modernista em Menotti. Fez um livro e palestras na Universidade de Roma e na de Milão, em 2012. Minha primeira doutoranda e também minha primeira bolsista da Fapesp, foi Carmem Lydia Souza Dias. Para sua tese, Paixão de Raiz: o Regionalismo de Valdomiro Silveira, defendida em 1989, conseguimos, emprestados gentilmente pela família, os manuscritos, as primeiras edições de obras e os textos na imprensa. Carmen Lydia, ao lado do ensaio que escreveu, realizou a transcrição de contos inéditos, que depositou no IEB.

Quanto à exploração do acervo de Mário, em 1980, houve o mestrado de Neusa Quirino Simões, uma freirinha muito simpática que auxiliava D. Paulo Evaristo Arns. Seu título é Estudando a Marginália: Mário de Andrade e a Ficção Brasileira. Antes disso, numa espécie de aquecimento ou iniciação à pesquisa, ela coligiu as dedicatórias a Mário de Andrade de poetas e ficcionistas brasileiros, em obras na biblioteca dele. Esse trabalho foi parcialmente revisto, no final da década de 1990, por Marjorie Hummel e agora, neste ano, Leandro Raniero Fernandes, pesquisador da nossa equipe, finalizou a revisão, fez cópias fac-similadas de tudo e está concluindo um belo livro. As dedicatórias que, nas bibliotecas dos escritores marcam fortemente a vida literária, no caso de Mário, põem em cena, especialmente, seu ofício de crítico em jornais e revistas, os diálogos com seus pares poetas e prosadores e a atuação do mentor dos moços. Mostram também presentes como este importantíssimo presente de aniversário, recebido pelo escritor em 9 de outubro de 1925, das mãos de Luís Aranha, amigo no grupo modernista de São Paulo. É um exemplar da edição de 1914 de Rã-txa-hu-ni-ku-i: Gramática, textos e vocabulário caxinauás, obra magna de Capistrano de Abreu. Na dedicatória, que simplesmente reitera a amizade, eu encontro a presença indelével de Paulo Prado, discípulo de Capistrano, alimentando o interesse etnográfico daquele buscava um sentido nacional para nossa literatura e que logo estaria esboçando seu Macunaíma nas margens do lendário indígena recolhido pelo etnólogo Koch-Gruenberg. Analisei o valor dessa dedicatória em uma disciplina de pós-graduação sobre os vestígios da criação de Macunaíma, na biblioteca de Mário de Andrade.

Quais os projetos mais importantes que você coordenou? E as teses, os livros que saíram desse trabalho?

Quando a gente está orientando, todos os projetos são muito importantes… entusiasmantes! E, na minha caminhada de orientadora e supervisora, tenho contado, a maioria das vezes, com o apoio da Fapesp, do CNPq e da Capes.

Os trabalhos relativos a Mário deixam-me acrescentada. Acompanhei o mestrado de Raúl Antelo, hoje um crítico renomado. Sua dissertação mestrado, Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade Lê os Hispano-Americanos, está publicado. Estive ao lado de Marcos Antonio de Moraes, na pesquisa para sua dissertação, Diálogo Epistolar Mário de Andrade/Manuel Bandeira, ganhador do Prêmio Jabuti e primeiro degrau na trajetória deste grande especialista nos estudos sobre o gênero epistolar. Com Angela Teodoro Grillo surpreendi-me com o estudo inédito sobre o negro, no âmbito da literatura oral, objeto de seu mestrado; empolguei-me com o mestrado de Raimunda de Brito Batista, que editou a Vida do Cantador, outro inédito, e o de Márcia Jaschke Machado sobre os manuscritos de outros escritores, de que já falamos. E com os doutoramentos de Lilian Escorel sobre a leitura impregnante da revista L’ Esprit Nouveau, ao qual já me referi, e o de Tatiana Longo Figueiredo, Café: o trajeto da criação de um romance inacabado de Mário de Andrade, tese que desenvolveu a reflexão teórica a respeito da natureza de um texto nessas condições e a análise do manuscrito. O de Rosângela Asche de Paula, O Expressionismo na Biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação, gratifica-me particularmente: concretizou um sonho meu.

Foram-me instigantes os doutoramentos de Raúl Antelo, Modernismo em Revista, e de Roselis Oliveira de Napoli, 1922-1972: A Semana Permanece; os de Rosse Marye Bernardi, Dalton Trevisan: a trajetória de um escritor que se revê, e de Rita de Cássia Barbosa, O Cotidiano e as Máscaras: a crônica de Carlos Drummond de Andrade. Igualmente as teses de Édison José da Costa, Quarup: Tronco e Narrativa, que mereceu a atenção de Antonio Callado, durante a pesquisa; a de Marta Moraes da Costa, Teatro em Papel Jornal, centrada no Paraná. E devo citar os mestrados de Roberta Sampaio, Edição Fac-similar Anotada e Estudo dos Arquivos Implacáveis de João Condé, e o de Ana Cândida Franceschini, Artistas Gráficos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo: 1956-1967, que também materializaram sonhos meus.

Como supervisora de pós-doutoramentos, dialogo atualmente com Francisco José Lima Rocha, em sua edição de um romance inacabado de Osman Lins, A Cabeça Levada em Triunfo; com Tatiana Longo Figueiredo, em seu mergulho em Mário de Andrade, leitor e crítico, parcela do Fichário analítico, manuscrito estreitamente ligado à marginália. E acabo de assistir a nova edição de O Banquete, obra de Mário da maior importância. Lilian Escorel a preparou.

Mas é outra edição, fora aquela de Jorge Coli e Luiz Dantas?

Esta é bem completa. O livro, que sairá pela Nova Fronteira, contará também com um ensaio do Jorge Coli, convidado. Quando ele e Luiz Dantas fizeram a primeira edição, em 1979, não se conhecia o manuscrito integral de O Banquete.

Esse livro feito sob sua orientação é o Música Final, do Jorge?

Jorge Coli é um amigo fraterno; compartilhamos nossas interrogações e descobertas. Música Final foi a tese de doutoramento dele, orientada pela professora Gilda de Mello e Souza, a grande mestra nos estudos sobre Mário de Andrade.

Tem, por exemplo, o mestrado livro Vida do Cantador, de Raimunda de Brito Batista. E o mestrado, sob sua orientação com o material do arquivo, do que consta?

O mestrado de Raimunda foi a edição da Vida do Cantador, precedida de um pequeno estudo trabalhando o gênero. Pedi que ela investigasse aquela questão das lições, que é matéria da Igreja Católica. ligada à hagiografia. E o Mário constituiu o santo dele, um ser de exceção – seu personagem Chico Antônio.

Para Vida do Cantador tinha o quê? Fichas, recortes?

Não havia fichas. O manuscrito é o que classificamos como exemplar de trabalho. Neste caso, é o texto resultante da junção do texto impresso, recortado da Folha da Manhã, com as rasuras apostas pelo escritor.

Você aumentou em muito a obra completa de Mário de Andrade. Quais foram os livros que você acrescentou à obra, entre os seus e os de seus orientandos? Os que ele tinha em recortes, manuscritos, fichas etc., e acabaram por virar livro?

Fizemos vários títulos, meus orientandos e eu. Lembro o romance inédito Quatro Pessoas, na edição preparada por Maria Zélia Galvão de Almeida, e a edição que fiz de Balança, Trombeta e Battleship, uma novelinha que o Mário começou a escrever na Amazônia, em 1927. Saiu pelo Instituto Moreira Salles, em 1993, no centenário, e agora, no projeto De mão em mão, conduzido por Carlos Augusto Calil, na Secretaria Municipal de Cultura. Também editei O Turista Aprendiz, e cuidei de três edições críticas do Macunaíma. Em 2007 fiquei encarregada da coordenação das edições de texto fiel de obras de Mário de Andrade, no protocolo que une as editoras Agir/Nova Fronteira e o IEB-USP. Os textos são estabelecidos com base nos manuscritos e edições em vida; trazem uma apresentação, estudo crítico e dossiê de documentos concernentes à criação. Preparadores e críticos são convidados e, a cada título, documentos do arquivo de Mário são reproduzidos em fac-símile. Até agora saíram: Macunaíma, Amar, Verbo Intransitivo, Os Contos de Belazarte, Obra Imatura e Padre Jesuíno do Monte Carmelo. Foi entregue à editora e está nas últimas provas, Poesias Completas, trabalho de Tatiana Longo Figueiredo e meu que oferece as obras publicadas, assim como poemas dispersos e inéditos.

O que há sobre o Macunaíma nesse arquivo? O que tem do processo de criação propriamente dito?

No acervo, de fato. O processo criativo de Macunaíma começa, pelo que hoje se conhece, no esboço de capítulos que o lápis de Mário de Andrade depôs nas margens do segundo volume de Vom Roroima zum Orinoco, consagrado à reunião dos mitos e lendas dos índios daquela região, que é Brasil e Venezuela. Esse volume foi editado na Alemanha, em 1924 e chegou à biblioteca de Mário no ano seguinte ou em 1926. Nessa primeira versão fragmentada do romance, na marginália, percebe-se que o escritor leitor frequentava também Barbosa Rodrigues e outros estudiosos.

Em seguida, vem o que chamei “relíquias do texto”, na minha edição-crítica de 1978, no cinquentenário da obra. São as folhas em autógrafo a lápis preto, remanescentes daquelas versões concretizadas nas férias na “chacra” de um primo, em Araraquara. Mostram o princípio do capítulo 1 na versão feita em “seis dias ininterruptos de rede, cigarros e cigarras”, de 16 a 23 de dezembro de 1926, e na versão subsequente, finalizada no Ano Novo. Juntam-se a dois índices e a dois prefácios, acompanhados de notas para eles. Esse manuscrito representa uma seleção montada possivelmente em 1937, quando sai a segunda edição de Macunaíma, pela Livraria José Olympio. A primeira fora em 1928. Mário, que costumava destruir os originais dos livros seus que via publicados, separou essas páginas para presentear seu amigo Luiz Saia, companheiro de trabalho no Departamento de Cultura. Saia tornou o IEB herdeiro do presente que recebeu. O arquiteto José Saia trouxe os documentos, após a morte do pai.

Pois bem: do processo de criação restaram também, no arquivo, notas de trabalho referentes a termos da flora, da fauna, da topografia do Brasil todo; poucas notas que sobreviveram, a maioria com a indicação “usado”. Na apropriação plasmada na rapsódia que subverteu os padrões do gênero romance, as notas devem ter sido uma infinidade. Talvez houvesse também esboços de capítulos, ao lado delas, quando Mário se pôs a escrever, em Araraquara. Na “Carta pras icamiabas”, capítulo 9 do livro, ele deixa uma pista sobre o início do trabalho, após a leitura do lendário, que tanto o impressionara, conforme se vê em sua correspondência com Drummond, Bandeira e Alceu Amoroso Lima. A pista é a data da “Carta pras icamiabas”: 30 de maio de 1926.

Em 1927 e 1928, Macunaíma teve outras versões, até entrar no prelo de Eugenio Cupolo para a primeira edição que chegou às livrarias no inverno de 1928. Nenhuma foi conservada. Mas, nos arquivos criação, isto é, em documentos fora do manuscrito no dossiê específico, além das declarações em diversas cartas aos amigos, há parcelas que demarcam na viagem de Mário de Andrade à Amazônia, como Turista Aprendiz, entre maio e o princípio de agosto, em 1927, o trabalho em Macunaíma. No verso de um desenho, feito em Marajó, estão termos e situações recolhidos para “Mac” e que foram realmente aproveitados ali. Em O Turista Aprendiz, o diário da viagem que ficou inédito, testemunha-se, com frequência, o entrelaçamento do texto com o da rapsódia, com o romance em elaboração. Nesse diário sobressai o deslumbramento do viajante diante da constelação da Ursa Maior, guia de navegantes, brilhando no céu da Amazônia, terra de Macunaíma que Mário de Andrade elegerá como sede do ócio criador, da preguiça elevada. Essa descoberta muda o desfecho previsto no primeiro traçar dos índices. “Ursa Maior” substitui “Torre Eiffel”, título que me leva a duas hipóteses sobre um capítulo sem texto: o grande final, em Paris ou, uma festa de intensas cores, bem filha de Vei, a Sol, como o Carnaval em Madureira de Tarsila do Amaral. Onde se fixaria também uma enorme réplica da Torre Eiffel, como aquela de precária construção no subúrbio carioca, que domina essa tela pintada em 1924.

Mas, chega de viajar… No arquivo de Mário há ainda os exemplares de trabalho das três edições em vida, de 1928, 1937 e 1944. As rasuras a tinta, no texto da primeira edição, tanto corrigem gralhas, como instituem uma nova versão, obedecida em quase tudo pela de 1937, que deu base à última. Nesse exemplar, o escritor apenas declara, na capa, que desejava rever o texto para novas edições. Faleceu antes, em 25 de fevereiro de 1945. Realizei três edições críticas de Macunaíma e, em 2007, preparei com Tatiana Longo Figueiredo uma edição de texto apurado, acrescida de dossiê de documentos ligados à criação. Temos pronta mais uma, esta com exemplos da crítica quando das edições em vida, e na atualidade.

O manuscrito de Macunaíma foi classificado no projeto temático e teve seu percurso genético exposto no Catálogo analítico dos manuscritos literários de Mário de Andrade, que foi o mestrado de Aline Nogueira Marques, orientado pelo professor Marcos Antonio de Moraes em 2010. Fui co-orientadora desse projeto e orientei o doutoramento de José de Paula Ramos Júnior, que é a análise e a interpretação da crítica sobre Macunaíma, no ano da primeira publicação, agora um belíssimo livro que muito me honra na dedicatória. De Paula recorreu as textos reunidos professora Dilea Zanotto Manfio, da Unesp de Assis, uma pesquisa fantástica que contempla a crítica de Mário polígrafo.

E esse projeto temático Fapesp, levou quanto tempo?

De 2006 a 2011. Seus resultados foram compensadores, bons pra valer! Classificou a tese Manuscritos Mário de Andrade, formou pesquisadores no âmbito da iniciação científica, do mestrado e do doutoramento; acolheu projetos de pós-doutoramento; teve tese publicada e obras de Mário de Andrade, a revista Marioscriptor, disciplinas de pós-graduação sob a responsabilidade do professor Marcos e sob a minha. Foi reportado em palestras e comunicações em reuniões científicas, no Brasil e no exterior. Dialogou com o Institut des Textes et Manuscrits Modernes, no CNRS de Paris (Item), especialmente com a professora Almuth Grésillon.

Você poderia dizer algo sobre o projeto da Correspondência?

A organização da Correspondência de Mário de Andrade estende-se de 1989 a 2003 em vários projetos, financiados pela Fapesp, pela Vitae e pelo próprio IEB. Muitos estagiários deles participaram. Nosso trabalho dialogou com o Item. A organização antecede a abertura da parcela lacrada por 50 anos, devido à disposição testamentária do escritor. Começamos em 1989 a classificar o que não estava interdito. Nesse ano, estava, entre os pesquisadores estagiários, Marcos Antonio de Moraes, meu ex-aluno nas Letras. Para comemorar os 100 anos de Mário, em 1992, Marcos fez seu primeiro livro, dedicado a textos e imagens de postais na correspondência passiva, e a reflexões sobre correspondências. Esse foi o primeiro passo de quem hoje é um especialista em epistolografia e coordena sua própria equipe.

Sua maior descoberta, nesse campo. O Marcos aproveitou o trabalho dele e editou a Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira; dos dois lados.

Fui a orientadora do Marcos nesse mestrado, na verdade um trabalho fraterno. Sua dissertação tornou-se o primeiro livro na Coleção Correspondência de Mário de Andrade, projeto de edições anotadas do IEB com a Edusp, traçado por nós dois. O livro de Marcos ganhou o Prêmio Jabuti. Continuamos cuidando dessa coleção que acaba de mostrar o diálogo epistolar Mário de Andrade & Sérgio Buarque de Holanda, uma edição primorosa, da lavra de Pedro Meira Monteiro. E apresentou a interlocução importante do escritor paulistano com a pintora Tarsila do Amaral, e com a poeta Henriqueta Lisboa, organizadas por Aracy Amaral e Eneida Maria de Souza, respectivamente. A Coleção espera publicar, em 2013, a correspondência com os escritores e artistas plásticos argentinos, com, Luís Camillo de Oliveira Netto, Murilo Miranda, Prudente de Moraes, neto, Anita Malfatti e Ribeiro Couto. Mário & Sérgio Milliet está em andamento. Todos os livros passam pelo confronto dos originais, entregues pelos preparadores, com os manuscritos, na revisão especializada feita por Tatiana Longo Figueiredo.

Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH-USP

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Veja também no Caderno ENSAiOS:

Oswald de Andrade: a última entrevista

O Poeta do Castelo

Hexecontalito

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Oswald de Andrade: a última entrevista

Caderno ENSAiOS publica a entrevista de Oswald de Andrade, concedida na semana que antecedeu a sua morte, em outubro de 1954.

Por Marcos Rey

Oswald de Andrade

Oswald não sorriu, mas ficou satisfeito. Ergueu-se um pouco na cadeira da qual se levantava com dores e problemas. Talvez quisesse provar-se que ainda lhe restavam energia e agressividade. O que o plano exigia, para pegar, era um Oswald irônico, destruidor e com muito recheio, igual ao dos primeiros retratos. Balançou a cabeça, aprovando. A oportunidade de escrever mais um livro, sem muito esforço, entusiasmava-o. Bastaria respondendo às perguntas. Em sua portátil, eu funcionaria como repórter e secretário. Mas logo a princípio, tornou-se evidente que a longa reportagem não poderia obedecer a um esquema rígido. Nada de ordem cronológica. Oswald não lembrava mais datas e nomes. Às perguntas mais complexas, ficava mudo ou mandava as crianças se calarem. Como andava nervoso e quase sem nenhuma capacidade de concentração! E esperava ansiosamente por telefonemas de seu filho mais velho. Problemas de dinheiro, com toda certeza. Falei do plano com mais detalhes: três entrevistas por semana, no período da manhã. Duas horas no máximo. Se se sentisse indisposto, não precisaria responder nada. Um projeto de livro sob medida para um homem que ia morrer. Dias antes eu fizera uma longa com Oswald, publicada no suplemento literário do jornal “O Tempo”. Essa e mais outra, que apareceu simultaneamente no jornal “Quincas Borba”, foram as últimas que concederia. Mas ele queria falar mais. Podia, ainda, mas era necessário que lhe arrancassem as palavras. Sua esposa Maria Antonieta D’Alckmin, sempre ao lado, naqueles dias, ajudaria a fazer as perguntas e ainda mais a formular as respostas. Era a sua memória, além de tudo. Muita coisa que Oswald contou ou respondeu, nada tinha de inédito. Já estava em outras entrevistas e também no “Um Homem Sem Profissão”, sua autobiografia inacabada. Inclusive este, um verdadeiro coquetel Molotov:

Oswald de Andrade: Conhece Antoninho de Alcântara Machado? Eu que o inventei. Nós precisávamos de ídolos. Como um movimento artístico ou político pode vingar sem nomes de proa? Saquei um artigo elogioso, exagerado. Até a família de Antoninho estranhou. Um parente dele me procurou espantado: “Mas o garoto é bom mesmo? A gente não sabia disso”. Depois de meu artigo, os outros críticos continuaram a bater palmas e o moço virou gênio.

Aquela manhã deixei a rua Caravelas quase com a certeza de que iniciaria um livro que não chegaria ao fim, pois seu único personagem tinha os dias contados. Lamentava ter começado tão tarde. Já cogitara dele ao conhecer Oswald, alguns anos antes, quando pesava vinte quilos a mais e estava sempre na linha da polêmica. Naquela ocasião, eu publicara meu primeiro romance, “Um Ato no Triângulo”, pulverizado por um crítico azedo de “O Estado de São Paulo”, e Oswald ficou furioso. Conversamos algumas horas e fizemos uma grande amizade. A estrela de autor de “O Rei da Vela” já se apagava. Caía num esquecimento atroz. A bem da verdade, apenas Helena Silveira levava seu nome às colunas dos jornais. Para a minha geração, era um homem liquidado, modernoso e quase inofensivo. Pouca gente ria de suas pilhérias, e dizia-se com frequência que era inclusive inculto. Certamente, a ofensa que mais o irritava.

Oswald de Andrade: Nasci para professor. Quero ensinar até o que não sei.

Fazia-lhe perguntas sobre suas preferências literárias, mas ele gostava mais de falar de sua própria vida. Tínhamos diante dos olhos um exemplar de “Um Homem Sem Profissão” e um rascunho do segundo volume de suas memórias, “O Salão e as Selvas”, ainda inédito.

— Não vai continuar “O Salão e as Selvas”?

Oswald de Andrade: Acho que não terei tempo. Não faz mal, pois sempre fiz autobiografia. Minha vida está contada nos meus livros, embora misturada com um pouco de ficção.

A conversa tinha sempre a Semana de Arte Moderna como ponto de saída ou de chegada. Para ele, o grande nome havia sido mesmo Mário de Andrade.

Oswald de Andrade: Somente Mário fez coisa realmente boa, Machado, Euclides e Mário foram os melhores. Até hoje me arrependo da briga que tivemos. Fui o culpado. Fiz uma piada cruel: “razões morais de andrade”. Mário não me perdoou. E hoje eu também não me perdoo.

Não havia nada de formal nessa confissão. Sentimento puro, grande mágoa e vergonha que chegou a me encabular.

Oswald de Andrade: Éramos uns ignorantes. Apenas Mário de Andrade sabia de alguma coisa. Eu era capaz de discutir, mas ele sabia criar. Enquanto experimentávamos, Mário fazia livros definitivos.

— Sim, Mário foi grande, está certo. Mas ele já está descoberto. E você? 

Oswald de Andrade: O que quer dizer?

— Acho que não está descoberto.

Oswald de Andrade: Que besteira é essa?

— Sua poesia, por exemplo, é inédita. Isto é, foi lida em 1922, mas posta de lado. Um dia surge um crítico e diz: “Oswald é um grande poeta, um dos maiores da fase modernista”. E então os outros vão concordar.

Oswald de Andrade: Isso que você está me dizendo me interessa. No fundo também me acho bom poeta. Está falando a sério? Na acha que ela tem piada demais?

— Bem, é o que penso. Prefiro ler os versos de Oswald de Andrade a ler os da geração de 1945.

Oswald de Andrade: Acredite que são poucos que me consideram poeta. Antônio Cândido gosta de meus versos. Os outros nunca leram e não gostam deles. Vingam-se de mim, com minhas próprias piadas.

— O que me diz dos novos, dos novos poetas?

Oswald de Andrade: São uns chatões. Parnasianos às avessas. Estão enterrando a Revolução Modernista. Apegam-se à forma como a turma do Bilac. Você é capaz de lembrar algum verso deles? É?

— Não.

Oswald de Andrade: Então.

— E sobre os romancistas? 

Nesse ponto, Oswald fez umas críticas virulentas contra um escritor que ele chamava de “burro blanco”. Mas confessou que sua admiração por José Lins do Rego, que julgava o maior. Fazia restrições a Jorge Amado, embora o apreciasse, e negava quase totalmente o valor de Graciliano Ramos.

Oswald de Andrade: Graciliano é muito limitado. A crítica confunde pobreza com poder de síntese.

— Mas, e o “Vidas Secas”?  

Oswald de Andrade: Nosso “tabaco road”. Ele leu Caldwell.

Era um meio de mostrar-se vivo, de sentir a vida: atacar. Mas, evidentemente, havia sempre antipatias pessoais misturadas às suas críticas. Sua aversão à poesia de Cecília Meireles era prova disso. Num artigo já dissera: “Não vou nem com a cara nem com a poesia dessa senhora”. Porém se fosse mais coerente e equilibrado não seria o Oswald de Andrade que foi e revive hoje.

Oswald de Andrade: Vou lhe dar um presente. Só tenho dois exemplares, mas um será seu. Leia e diga-me depois o que pensa.

Era “A Morta” e “O Rei da Vela”, numa edição José Olympio de 1937. Li e reli as duas peças, inclinando-me logo para “O Rei da Vela”. Lá estava Oswald quase de corpo inteiro, num de seus momentos de maior autenticidade e lucidez. Ele era mesmo um intelectual de pequenos trabalhos (não de pequeno fôlego). Saía-se melhor na poesia, no teatro, nos artigos e na prosa miúda das memórias. Não tinha a fibra nem a paciência para a ficção de longo curso. Na próxima entrevista passei a manhã na sua casa e almoçamos juntos. Maria Antonieta D’Alckmin insistia para que se alimentasse bem, mas ele engolia a comida com má vontade. Só depois do almoço, com uma espécie de timidez, indagou:

Oswald de Andrade: O que achou do meu teatro?

— “O Rei da Vela” é uma de suas melhores coisas.

Oswald de Andrade: Mas não é para ser representado, não?

— Não conheço teatro, mas creio que é perfeitamente representável. Nem entendo como ainda não foi encenada nesses 23 anos.

Oswald de Andrade: Não foi e não será nunca. Nossos homens de teatro são muito primários. Dizem-se intelectuais, mas na verdade gostam mesmo é de espetáculo. Só aceitam o que é bom quando a peça traz o atestado de sucesso de outros países. Todos eles têm o meu “O Rei da Vela” nas estantes, mas não o leram, e se o leram não entenderam e se entenderam não gostaram. Para todos, é mais uma brincadeira do Oswald. Só compreendem o social, o político, quando o cenário é um cortiço. Ainda não encontrei um deles que se entusiasmasse com a encenação de minhas peças

Oswald andava amargurado. Condenava-se por deixar uma obra de proporções reduzidas, mas sentia-se recompensado por ter sido o relações públicas da Revolução Modernista. Certa manhã, Oswald sentiu-se enclausurado. Queria sair, apesar do seu mau estado. Fomos passear em seu Fiat, dirigido por Maria Antonieta. Com que interesse e avidez olhava pela janela do carro! Quase não falou a viagem toda. Queria ver apenas. Pude observá-lo e mais uma vez tive a certeza de que sua morte estava próxima. Na volta, largou-se numa poltrona e continuou por um largo espaço no mais completo silêncio. Seus filhos menores brincavam ao seu redor, e às vezes ele os olhava como se fossem estranhos. Custou a retomar contato com minha presença.

Volto outro dia, disse-lhe. Não, vamos continuar — pediu. E repetiu fatos e opiniões que eu ouvira no mesmo dia. Tudo já se baralhava em sua mente e as dores pelo corpo aumentavam — fui muito extravagante — confessou — e estou pagando agora.

— Amanhã estará melhor.

Oswald de Andrade: Estou no fim.

Não morreria ainda. Rudá Abramo, se não me engano, levou-o a um programa de televisão onde Oswald foi entrevistado envolto numa pesada manta. Esta entrevista lhe fez um bem imenso. Ainda se lembravam dele, no dia seguinte encontrei-o mais animado e disposto a falar. Havia uma luz nova nos seus olhos e o sinal de sua melhora estava nas críticas que tornou a fazer.

Oswald de Andrade: Erra quem diz que o Brasil já possui uma grande literatura. Temos, quando muito, valores isolados. José Lins do Rego, Jorge Amado e poucos outros. Alguns tinham sido, mas não foram. Rachel de Queiroz apagou-se inteiramente, Armando Fontes não fez mais nada, e os outros felizmente não escreveram mais.

— Mas há Cornélio Pena.

Oswald de Andrade: Você lembrou bem. É outro que só será redescoberto daqui a algumas décadas. Guarde o que estou dizendo. Mário de Andrade foi dos poucos que tomaram conhecimento dele, apesar dos reparos que lhe fez.

Perguntei-lhe sobre Guimarães Rosa, que começava a ser falado. A resposta foi demorada. Tive que repetir a pergunta.

Oswald de Andrade: O problema não é enriquecer o idioma, é enriquecer o Brasil. Não é mais tempo para ficarmos brincando com a sintaxe, inventando palavras, dormindo no estilo. Isso é beletrismo, é trabalho para diletante. Em suma, não me apaixona mais. Depois, a de Guimarães não é a língua brasileira, é uma invenção sua. Talentosa sim, mas sem raízes, e  que redunda numa lamentável perda de tempo.

— Que conselho daria a um poeta e a um escritor jovem?

Oswald de Andrade: Ao poeta diria que não fizesse mais poesia. Essa poesia tipo ação entre amigos não interessa mais. Mesmo a nossa poesia participante não participa mais. É hermética, pretensiosa, incomunicável. O povo poeta teria de falar a linguagem da revolução e esquecer definitivamente as escolas, panelas e modismos artísticos. Alguém como Vinícius, se Vinícius fosse capaz de sentir a grande miséria nacional.

— E Drummond?

Oswald de Andrade: É grande, imenso, mas apenas para as elites. Não se pode esperar mais nada dele.

— Mas, a mensagem ao escritor.

Oswald de Andrade: Gostaria de crer na nova geração, mas não acredito. Todos resolveram fazer da literatura um divã de psicanalista. Voltaram-se para dentro, e infelizmente o único que se exterioriza é o “burro blanco”. A minha geração tinha ao menos o que combater, o que destruir. Esta encontrou o terreno aplainado e não consegue construir nada. Todos bem comportadinhos, uns garotões precoces, querendo ganhar prêmios. É difícil dizer entre eles o que escreve mais corretinho. Mas vá remexer no fundo, vá procurar ideias, vá auscultar as inquietações. O críticos, por sua vez, limitaram-se às observações estilísticas. E julgam também que a literatura nada tem a ver com o país onde é produzida. Como todo povo subdesenvolvido, temos a mania de ser requintados. Ninguém se conforma em não ter nascido em Paris. Provavelmente teremos também literatura requintada, mas estranha a nós, inexpressiva, fria, reacionária. Mensagem aos jovens? Besteira! Não lerão minha mensagem. É muito mais cômodo romancear os complexos e fazer estilo. Isso dá prêmio, dá crítica e até emprego público.

Na entrevista seguinte, voltou à recordações. Sempre Mário de Andrade, mas o homem que o artista. Devia ter procurado Mário na hora da morte. Arrependia-se. Mas não só disso como de outras coisas. De não ter concluído o “Marco Zero”, por exemplo. Mas não se arrependia de ter vivido. Na penúltima entrevista, falou muito das mulheres que tivera. Amara a todas igualmente, e com a mesma volubilidade. Capítulos preciosos de sua vida. Com cada uma delas aprendera alguma coisa. Na última entrevista, fui encontrá-lo totalmente arrasado. Quis retirar-me imediatamente. Mas Oswald reconheceu-me e fez sinal para que ficasse. Fiquei, porém sem fazer perguntas. Algumas visitas entravam e saiam. Velhos conhecidos iam ver o doente. Escritores, poucos. A certa altura, num intervalo das visitas Oswald perguntou-me como se chamaria o livro.

— Que livro?

Oswald de Andrade: O livro de nossas entrevistas.

— Mas está ainda no começo.

Oswald de Andrade: Sim, está no começo.

Oswald tentou sorrir.

Oswald de Andrade: Mais um livro meu que não chega ao fim.

Voltou a ficar em silêncio. Maria Antonieta D’Alckmin pediu às crianças que não fizessem barulho. Deram-lhe um remédio que tomou com má vontade.

Um antropófago de cadillac

Ele lançara a antropofagia após os dias agitados da semana, no vale-tudo para impor ideias novas. Naquela época, tinha um cadillac verde. Gordo, lustroso e cheirando loções, vivera rodeado de amigos e inimigos. Dele sempre se esperava o máximo. Sua personalidade extravagante e única preenchera toda uma época de nossas artes. Fora o autêntico Papa do Modernismo. O rotundo espadachim de 1922. As últimas palavras que me dirigiu naquela manhã demonstravam a certeza de sua perenidade. Não acreditava que pudesse ser lembrado alguns anos mais tarde. E tinha a franqueza e a sinceridade de confessá-lo.

Oswald de Andrade: Tudo que eu fiz será esquecido logo. A não ser em alguém se lembre de falar em mim de vez em quando.

— Seus livros serão mais lidos amanhã do que quando foram publicados, profetizei para confortá-lo.

Oswald de Andrade: Você é camarada.

— Os novos o seguirão.

Oswald de Andrade: Onde estão eles?

Não disse mais nada, ofegante.

— Voltarei depois de amanhã, disse. Oswald sabia e eu também que aquela era a última entrevista. No dia seguinte, à noite, eu voltava à casa de Oswald para vê-lo morto. Lembro-me de Antonio Candido, Edgard Cavalheiro, Antônio Olavo, Mário Donato, que já estavam presentes. Maria Antonieta D’Alckmin, inconsolável, falava nervosamente. Outros amigos foram chegando. O corpo foi levado para a Biblioteca Pública Municipal, naquela noite. Tarsila do Amaral aproximou-se lentamente do caixão. Ficou a olhar o cadáver com olhar sereno, amigo e prolongado. Um mudo e profundo adeus.

No dia seguinte, uma enorme fila de automóveis acompanhou-o ao cemitério. Por notável coincidência, o túmulo, ao lado do seu, todo preto, é de um tal Serafim Del Ponte Grande. Isso chamou a atenção de todos. Menotti Del Picchia falou no último momento, comovido e comovendo.

Meses mais tarde, a União Brasileira de Escritores publicava o primeiro número de uma revista toda dedicada a Amadeu Amaral. O segundo número seria sobre Oswald de Andrade. Reuni minhas entrevistas para inserir na revista. Mas foi outra iniciativa da União que morreu no nascedouro. O que fizemos foi um caderno quase completo sobre Oswald de Andrade, no  Suplemento Literário de “O Tempo”, assinado por diversos colaboradores. Parte das entrevistas entreguei a Mario da Silva Brito, que escreve a “História do Modernismo”, e que talvez encontre nessas confissões alguma informação útil. Esta não havia sido publicada até hoje. Publico-a aqui, dosada com alguma recordação.  

Publicada originalmente no “Jornal da Senzala”, em fevereiro de 1968. Republicada no Jornal a “Voz do Escritor”, em 1992.

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Veja também no Caderno ENSAiOS:

“Nenhum país passa por mais de 300 anos de escravidão impunemente” / Entrevista com Eduardo de Assis Duarte

“Precisamos democratizar o elitismo” / Entrevista com Sérgio Augusto

“A indústria cultural nunca será inteligente” / Entrevista com Silviano Santiago

A última entrevista de Guimarães Rosa

Hexecontalito

Da série Pequenos apontamentos noturnos.

Por Theotonio de Paiva

Mário de Andrade anotou num exemplar do livro de poemas Le départ sous la pluie, escrito pelo poeta e crítico Sérgio Milliet, o significado de uma palavra rara e sonora: “Hexecontalito: pedra preciosa antiga hoje desconhecida, da qual se dizia que tinha sessenta cores”.

Na primeira folha em branco, Mário deixava uma impressão curiosa. Ao dar voltas naquele signo, como se estivesse plantado frente a um enigma, o escritor provocava o significante.

A partir daí, Antonio Candido, num belíssimo ensaio, O ato crítico, especula que essa anotação misteriosa é sugestiva. Assim, ao pensar sobre a obra do modernista, Candido sugere que o volteio crítico de Sérgio Milliet desnudaria um pensamento especialmente perplexo. Provocador, Millet surge como alguém que se apresentasse ensaiando sempre, expressão de um fluxo contínuo de peça inacabada, de obra cheia de incompletudes.

Às vezes, gerando a graciosa impressão de ser determinado, movido mesmo pela convicção de que a obra é um hexecontalito. As  sessenta cores não lhe cabe e é preciso de algum modo supor que se possa captar todas as sete mil faces do poema, as rubricas não escritas do drama, a metáfora insurgente do romance.

Num movimento singular, vê-se aquele leitor especialíssimo rodeando a escritura. E como um amante tímido, aceitando as suas contradições, recebe o  pedido lacônico para ficar na ante-sala, enquanto a conversa com o outro acontece mais dura. Sentado, se vê aflito, enquanto as tolas representações escorrem pelas frestas da porta e se permitem compreender insidiosamente.

Ao desconhecer o medo de se corrigir, como diz Candido, Milliet tracejava os planos de suas leituras, de suas criticas, como alguém que olha e refaz o próprio olhar sobre a obra e sobre si mesmo.