O Poeta do Castelo

Versos de Manuel Bandeira, recitados pelo poeta, acompanham e transfiguram os gestos banais de sua rotina em seu pequeno apartamento no centro do Rio; a modéstia do seu lar, a solidão, o encontro provocado por um telefonema, o passeio matinal pelas ruas de seu bairro.

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

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No meio do caminho

Drummond, auto-caricaturaDa série Pequenos apontamentos noturnos.

Por Theotonio de Paiva

Em meio aos meus trabalhos acadêmicos, releio Dante e sua comédia divina, segundo Boccaccio. Da minha janela, acompanho uma primavera que se liquefaz como um outono, cujo frio ambiciona sequestrar a alegria da alma dos cariocas.

Desde há muito tempo, o primeiro verso da obra do florentino desnorteia leitores e críticos ao provocar grandes e profundas angústias. No meio do caminho de sua existência, provavelmente revolvendo-se numa crise aguda, alegoricamente numa selva escura, Dante havia perdido o seu senso, a sua via reta.

Ora, a descida ao inferno daquele poeta na meia idade, impregnada pela necessidade de conhecer o lugar limitado que o homem ocuparia no universo, criado, circunscrito e dominado completamente por Deus, nos associa, e não há nisso nenhuma novidade, a uma outra queda, um outro meio do caminho: aquele em que havia uma pedra.

Artista emblemático do século passado, Drummond se qualifica como uma expressão do alto modernismo. Nele, há o pastiche, o tom paródico incontrolável. Conscientemente se contrapõe àquela austeridade da personagem-síntese do intelectual no medievo. Dono de uma profunda erudição em relação às culturas clássica e medieval, conhecedor profundo de filosofia, teologia, política, questões sociais e artísticas, no fundo, o homem seria para Dante um ser perdido. Daí a imagem de desesperança encontrada na porta do Inferno.

Mas voltemos ao Drummond. O poeta continua a nos incomodar com o seu claro enigma dos tempos ainda próximos de um olhar imaturo, belamente sem pudor. (Pois com 26 anos ainda se é muito jovem, apesar dos ternos fechados e dos penteados da época se prontificarem a desmentir isso com veemência.)

Impressiona o flagelo imputado ao poeta, quando o poema foi lançado, lá pelos idos de 1928, na Revista de Antropofagia. Na ocasião, os críticos desancavam, numa sanha violenta, contra o autor desses versos. E havia nisso um certo prazer. Irônicos, diziam, naquela empáfia dos que não conseguem cruzar o muro do seu próprio quintal, que aquilo não era poesia. Decerto, ignoravam integralmente o tempo que mudava sobre os seus próprios pés.

Muitos anos mais tarde, Antonio Candido sintetizaria aquela experiência modernista como o “dilaceramento da consciência estética”. Provavelmente, com uma certa benevolência, podemos imaginar que aqueles críticos talvez só reafirmassem uma outra consciência, a histórica. Incapazes de atuarem distantes daquilo que se compreende como senso comum, talvez por interesses inconfessáveis, não conseguiriam exercer uma percepção mais afinada sobre os desdobramentos que arte e a literatura viviam naquela época.

O tropeço na pedra. Cru e desbaratinador como ser gauche na vida. É isso o que finalmente interessa. O grande avesso da dor, descarnada de qualquer transcendência. A queda física lança mais uma vez o homem frente à escolha de um caminho que, em algum momento, se bifurcara lá atrás, como o jardim do famoso conto.

FLAP! – Literatura em cena

Nestes tempos difíceis, em que determinados temas parecem reinvidicar uma excluisividade terível, pois  o contrário significa calar uma dor ainda mais grave, encaminhei um poema, Nasci numa cidade solar, para ser publicado no blog do FLAP! – Literatura em cena.

Escrito há cerca de vinte anos, tem uma dinâmica que ainda me agrada. Quem quiser dar uma olhada, será bem-vindo.

Curiosamente, o meu texto vai junto com o de uma menina de 13 anos, Lívia Lopes Marangoni.  A prosa poética dela é linda. Vale a pena conferir.

 

Os senhores do não

por Theotonio de Paiva

1.
Estranho país aquele que não tem dono.

Mirado de um recanto

lembra estacas ao vento

emplumadas para o nada

2.
Afugentado

Todas as dores seculares

Todos os traumas inconfessos

Todos os requintes de escárnio e usurpação

Entornaram a muito custo

A medula espinhal

E um excesso de altivez que os despossuídos insistem em deitar por terra como um sintoma histórico de não precisão.

3.
Varrido para todos os cantos

como coisa nenhuma

a nação não se firma como causa pétrea: é a pátria daqueles que se juntaram ao acaso e duramente insistem em desvelar um velho acerto

– Tenham certeza, senhores, sob o nosso teto reina a mais profunda harmonia e misericórdia entre os homens.

4.
Os interesses veladamente encobertos

As duras certezas distribuídas como quinhões

As misérias profundas como consequência de uma lógica divina

A embaralhar pesares e sermões

A confundir os traumas

A bestificar os homens frente às portas do paraíso e do inferno

5.
Duramente calcinada

a pátria

sem dominu sequer

(esquecida que fora a clemência divina do homem no próprio homem)

se esgarça num desfazer trôpego

sem sinais

como crustáceos emparedados nos arrecifes

6.
Ausente o verbo

o país submisso a todos os cânones

a todas as reservas morais

em nome do deus

sacramenta as mais tortuosas e incompreensíveis chagas

– forma pleonástica de narrar sempre o prenúncio do fim.

Silenciosamente aceitaria se deixar levar?

7.
Banquetes faustos traduzem

o indizível temor a coisa nenhuma

à mais perversa lógica

ao mais profundo trauma

distante de qualquer anseio de libertação

8.
Provavelmente não saiba

se sentar à mesa