Da série Pequenos apontamentos noturnos.
Por Theotonio de Paiva
Em meio aos meus trabalhos acadêmicos, releio Dante e sua comédia divina, segundo Boccaccio. Da minha janela, acompanho uma primavera que se liquefaz como um outono, cujo frio ambiciona sequestrar a alegria da alma dos cariocas.
Desde há muito tempo, o primeiro verso da obra do florentino desnorteia leitores e críticos ao provocar grandes e profundas angústias. No meio do caminho de sua existência, provavelmente revolvendo-se numa crise aguda, alegoricamente numa selva escura, Dante havia perdido o seu senso, a sua via reta.
Ora, a descida ao inferno daquele poeta na meia idade, impregnada pela necessidade de conhecer o lugar limitado que o homem ocuparia no universo, criado, circunscrito e dominado completamente por Deus, nos associa, e não há nisso nenhuma novidade, a uma outra queda, um outro meio do caminho: aquele em que havia uma pedra.
Artista emblemático do século passado, Drummond se qualifica como uma expressão do alto modernismo. Nele, há o pastiche, o tom paródico incontrolável. Conscientemente se contrapõe àquela austeridade da personagem-síntese do intelectual no medievo. Dono de uma profunda erudição em relação às culturas clássica e medieval, conhecedor profundo de filosofia, teologia, política, questões sociais e artísticas, no fundo, o homem seria para Dante um ser perdido. Daí a imagem de desesperança encontrada na porta do Inferno.
Mas voltemos ao Drummond. O poeta continua a nos incomodar com o seu claro enigma dos tempos ainda próximos de um olhar imaturo, belamente sem pudor. (Pois com 26 anos ainda se é muito jovem, apesar dos ternos fechados e dos penteados da época se prontificarem a desmentir isso com veemência.)
Impressiona o flagelo imputado ao poeta, quando o poema foi lançado, lá pelos idos de 1928, na Revista de Antropofagia. Na ocasião, os críticos desancavam, numa sanha violenta, contra o autor desses versos. E havia nisso um certo prazer. Irônicos, diziam, naquela empáfia dos que não conseguem cruzar o muro do seu próprio quintal, que aquilo não era poesia. Decerto, ignoravam integralmente o tempo que mudava sobre os seus próprios pés.
Muitos anos mais tarde, Antonio Candido sintetizaria aquela experiência modernista como o “dilaceramento da consciência estética”. Provavelmente, com uma certa benevolência, podemos imaginar que aqueles críticos talvez só reafirmassem uma outra consciência, a histórica. Incapazes de atuarem distantes daquilo que se compreende como senso comum, talvez por interesses inconfessáveis, não conseguiriam exercer uma percepção mais afinada sobre os desdobramentos que arte e a literatura viviam naquela época.
O tropeço na pedra. Cru e desbaratinador como ser gauche na vida. É isso o que finalmente interessa. O grande avesso da dor, descarnada de qualquer transcendência. A queda física lança mais uma vez o homem frente à escolha de um caminho que, em algum momento, se bifurcara lá atrás, como o jardim do famoso conto.