As mãos dos EUA sobre a América Latina

O ciclo

Por Mark Weisbrot, da Folha de São Paulo, via Viomundo

Tradução de Clara Allain

Acontecimentos recentes indicam que a administração Obama intensificou sua estratégia de “mudança de regime” contra os governos latino-americanos à esquerda do centro, promovendo conflito de maneiras que não eram vistas desde o golpe militar apoiado pelos EUA na Venezuela em 2002.

O exemplo mais destacado é o da própria Venezuela na última semana. No momento em que este artigo está sendo impresso, Washington está mais e mais isolada em seus esforços para desestabilizar o governo recém-eleito de Nicolás Maduro.

Mas a Venezuela não é o único país vitimado pelos esforços de Washington para reverter os resultados eleitorais dos últimos 15 anos na América Latina.

Está claro agora que o afastamento do presidente paraguaio Fernando Lugo, no ano passado, também teve a aprovação e o apoio do governo dos Estados Unidos.

Num trabalho investigativo brilhante para a agência Pública, a jornalista Natalia Viana mostrou que a administração Obama financiou os principais atores do chamado “golpe parlamentar” contra Lugo. Em seguida, Washington ajudou a organizar apoio internacional ao golpe.

O papel exercido pelos EUA no Paraguai é semelhante ao seu papel na derrubada militar, em 2009, do presidente democraticamente eleito de Honduras, Manuel Zelaya, caso no qual Washington dominou a Organização de Estados Americanos e a utilizou para combater os esforços de governos sul-americanos que visavam restaurar a democracia.

Na Venezuela, na semana passada, Washington não pôde dominar a OEA, mas apenas seu secretário-geral, José Miguel Insulza, que reiterou a reivindicação da Casa Branca (e da oposição venezuelana) de uma recontagem de 100% dos votos.

Mas Insulza teve de recuar, como teve de fazer a Espanha, única aliada importante dos EUA nessa empreitada nefanda, por falta de apoio.

A exigência de uma recontagem na Venezuela é absurda, já que foi feita uma recontagem das cédulas de papel de uma amostra aleatória de 54% do sistema eletrônico. O total obtido nas máquinas foi comparado à contagem manual das cédulas de papel na presença de testemunhas de todos os lados.

Estatisticamente falando, não existe diferença prática entre essa auditoria enorme já realizada e a recontagem.

Jimmy Carter descreveu o sistema eleitoral da Venezuela como “o melhor do mundo”, e não há dúvida quanto à exatidão da contagem.

É bom ver Lula denunciando os EUA por sua ingerência, e Dilma juntando sua voz ao resto da América do Sul para defender o direito da Venezuela a eleições livres.

Mas não apenas a Venezuela e as democracias mais fracas que estão ameaçadas pelos EUA.

Conforme relatado nas páginas deste jornal, em 2005 os EUA financiaram e organizaram esforços para mudar a legislação brasileira com vistas a enfraquecer o PT. Essa informação foi descoberta em documentos do governo americano obtidos graças à lei americana de liberdade de informação. É provável que Washington tenha feito no Brasil muito mais e siga em segredo.

Está claro que os EUA não viram o levemente reformista Fernando Lugo como um elemento ameaçador ou radical. O problema era apenas sua proximidade excessiva com os outros governos de esquerda.

Como a administração Bush, a administração Obama não aceita que a região mudou. Seu objetivo é afastar os governos de esquerda, em parte porque tendem a ser mais independentes de Washington. Também o Brasil precisa se manter vigilante diante dessa ameaça à região.

Mark Weisbrot é codiretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy.

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“Na América Latina, monopólios midiáticos substituem partidos de direita” / Entrevista com Atilio Boron

Por Fernando Arellano Ortiz, no CronicÓn, via Brasil de Fato / Tradução: Adital

“Não há erro: os meios de comunicação simplesmente são grandes conglomerados empresariais que têm interesses econômicos e políticos. Na América Latina, os monopólios midiáticos têm um poder fenomenal que vêm cumprindo na função de substituir os partidos políticos de direita que caíram em descrédito e que não têm capacidade de chamar a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade”. Assim o politólogo e cientista social argentino Atilio Boron caracteriza a denominada canalha midiática.

Nesse sentido, explica, “cumpre-se o que muito bem profetizou Gramsci há quase um século, quando disse que diante da ausência de organizações da direita política, os meios de comunicação, os grandes diários, assumem a representação de seus interesses; e isso está acontecendo na América Latina”. Em praticamente todos os países da região, os conglomerados midiáticos converteram-se em “operadores políticos”.

A Crise do Capitalismo e o triunfo de Chávez

Boron, que dispensa apresentação por ser um importante referente da teoria política e das ciências sociais em Iberoamérica, foi um dos expositores principais do VI Encontro Internacional de Economia Política e Direitos Humanos, organizado pela Universidad Popular Madres de la Plaza de Mayo, que aconteceu em Buenos Aires, entre os dias 4 e 6 de outubro.

Tópicos como a crise estrutural do capitalismo, o fenômeno da manipulação dos monopólios midiáticos e o que significa para a América Latina o triunfo de Hugo Chávez foram tratados com profundidade por esse destacado politólogo, sociólogo e investigador social, doutorado em Ciências políticas pela Universidade de Harvard e, atualmente, diretor do Programa Latino-americano de Educação a Distância em Ciências Sociais do Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini, na capital argentina.

Para aprofundar sobre alguns desses temas, o Observatorio Sociopolítico Latinoamericano (www.cronico.net) teve a oportunidade de entrevistá-lo no final de sua participação em dito fórum acadêmico internacional.

Rumo a um projeto pós-capitalista

No desenvolvimento de sua exposição no encontro da Universidad Popular de Madres de la Plaza de Mayo, Boron analisou o contexto da crise capitalista.

“Hoje em dia é impossível referir-se à crise e à saída da mesma sem falar do petróleo, da água e das questões meio ambientais. Essa é uma crise estrutural e não produto de uma má administração dos bancos das hipotecas subprime”.

Recordou que, recentemente, foram apresentadas propostas por parte dos Prêmios Nobel de Economia para tornar mais suave a débâcle capitalista. Uma, a esboçada por Paul Krugman, que propõe revitalizar o gasto público. O problema é que os Estados Unidos estão quebrados e o nível de endividamento das famílias nos Estados Unidos equivale a 150% dos ingressos anuais. “Krugman propõe dar crédito ao Estado para que estimule a economia. Porém, os Estados Unidos não têm dinheiro porque decidiram salvar os bancos”.

A outra proposta é de Amartya Sem, que analisa a situação do capitalismo como uma crise de confiança e é muito difícil restabelecê-la entre os poupadores e os banqueiros devido aos antecedentes desses últimos. Por isso, essas não deixam de ser “pseudo explicações que não levam à questão de fundo. Não explicam porque caem os índices do PIB e sobem as bolsas. Ambos índices estariam desvinculados e as bolsas crescem porque os governos injetaram moeda ao sistema financeiro”.

A crise capitalista serviu para acumular riqueza em poucas mãos, uma vez que “o que os democratas capitalistas fizeram no mundo desenvolvido foi salvar os banqueiros, não os endividados, ou seja, as vítimas”.

Exemplificou com as seguintes cifras: enquanto o ingresso médio de uma família nos Estados Unidos é de 50.000 dólares ao ano, o daqueles de origem latina é de 37.000 e o de uma família negra é de 32.000, o diretor executivo do Bank of America, resgatado, cobrou um salário de 29 milhões de dólares.

Então, é evidente que cada vez mais há uma tendência mais regressiva de acumular riqueza em poucas mãos. Em trinta anos, o ingresso dos assalariados foi incrementado em 18% e o dos mais ricos cresceu 238%.

“No capitalismo desenvolvido houve uma mutação e os governos democráticos transformaram-se em plutocracias, governos ricos”. Porém, além disso, “o capitalismo se baseia na apropriação seletiva dos recursos”.

Por isso, citando o economista egípcio Samir Amin, Boron afirma sem medo que “não há saída dentro do capitalismo”.

Como alternativa, Boron sustenta que “hoje, pode-se pensar em um salto para o modelo pós-capitalista. Há algo que pode ser feito até que apareçam os sujeitos sociais que darão o ‘tiro de misericórdia’ no capitalismo. O que se pode fazer é desmercantilizar tudo o que o capitalismo mercantilizou: a saúde, a economia, a educação. Assim, estaremos em condições de ver o amanhecer de um mundo mais justo e mais humano”.

A reeleição na Venezuela

Sobre a matriz de opinião que os monopólios midiáticos da direita têm tentado impor no sentido de que a reeleição do presidente Chávez é um sintoma de que ele quer se perpetuar no poder, a análise de Boron foi contundente:

“Há um grau de hipocrisia enorme nesse tema, porque os mesmos que se preocupam com o fato de Chávez estar por 20 anos no governo, aplaudiam fervorosamente a Helmut Kohl, que permaneceu no poder por 18 anos, na Alemanha; ou Felipe González, por 14 anos, na Espanha; ou Margaret Thatcher, por 12 anos, na Inglaterra”.

“Há um argumento racista que diz que somos uma raça de corruptos e imbecis; que não podemos deixar que as pessoas mantenham-se muito tempo no poder; ou há uma conveniência política, que é o que acontece ao tentarem limar as perspectivas de poder de líderes políticos que não são de seu agrado. Agora, se Chávez instaurasse uma dinastia onde seu filho e seu neto herdassem o poder, eu estaria em desacordo. Porém, o que Chávez faz é dizer ao povo que eleja; e, em âmbito nacional, por um período de 13 anos, convocou o povo venezuelano para 15 eleições, das quais ganhou 14 e perdeu uma por menos de um ponto; e, rapidamente, reconheceu sua derrota. Então, não está dito em nenhum lugar sério da teoria democrática que tem que haver alternância de lideranças, na medida que essa liderança seja ratificada em eleições limpas e pela soberania popular”.

Confira a entrevista:

A canalha midiática assume a representação de interesses da direita

Hoje, no debate da teoria política, fala-se de “pós-democracia”, para significar o esgotamento dos partidos políticos, a irrupção dos movimentos sociais e a incidência dos meios de comunicação na opinião pública. Que alcance você dá a esse novo conceito?

Eu analiso como uma expressão da capitulação do pensamento burguês que, em uma determinada fase do desenvolvimento histórico do capitalismo, fundamentalmente a partir do final da I Guerra Mundial, apropriou-se de uma bandeira – que era a da democracia – e a assumiu. De alguma maneira, alguns setores da esquerda consentiram nisso. Por quê? Bom, porque estávamos um pouco na defensiva e, além disso, o capitalismo havia feito uma série de mudanças muito importantes. Por isso, a ideia de democracia ficou como se fosse uma ideia própria da tradição liberal burguesa, apesar de que nunca houve um pensador dessa corrente política que fizesse uma apologia do regime democrático. Estudavam sobre isso, possivelmente, a partir de Thorbecke ou de John Stuart Mill; porém, nunca propunham um regime democrático; isso vem da tradição socialista e marxista. No entanto, apropriaram-se dessa ideia; passaram todo o século XX atualizando-a. Agora, dadas as novas contradições do capitalismo e ao fato de que as grandes empresas assumiram a concepção democrática, a corromperam e a desvirtuaram até o ponto de torná-la irreconhecível, perceberam que não tem sentido continuar falando de democracia. Então, utilizam o discurso resignado que diz que o melhor da vida democrática já passou; um pouco a análise de Colin Crouch: o que resta agora é o aborrecimento, a resignação, o domínio a cargo das grandes transnacionais; os mercados sequestraram a democracia e, portanto, temos que nos acostumar a viver em um mundo pós-democrático. Nós, como socialistas, e, mais, como marxistas jamais podemos aceitar essa ideia. Creio que a democracia é a culminação de um projeto socialista, da socialização da riqueza, da cultura e do poder. Porém, para o pensamento burguês, a democracia é uma conveniência ocasional que durou uns 80 ou 90 anos; depois, decidiram livrar-se dela.

Mesmo em uma situação anômala mundial e levando-se em conta que a propriedade dos grandes meios de comunicação está concentrada em uns poucos monopólios do grande capital, como você analisa o fenômeno da canalha midiática na América Latina? Parece que, paulatinamente, vão perdendo a credibilidade…?

O que bem qualificas como canalha midiática tem um poder fenomenal, que vem substituindo os partidos políticos da direita que caíram no descrédito e que não têm capacidade de prender a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade. Nesse sentido, cumpre-se o que, Gramsci muito bem profetizou há quase um século, quando disse que diante da ausência de organizações da direita política, os meios de comunicação, os grandes diários, assumem a representação de seus interesses e isso está acontecendo na América Latina. Em alguns países, a direita conserva certa capacidade de expressão orgânica, creio que é o caso da Colômbia; porém, na Argentina, não, porque nesse país não existem dois partidos, como o Liberal e o Conservador colombianos; e o mesmo acontece no Uruguai e no Brasil. O caso colombiano revela a sobrevivência de organizações clássicas do século XIX da direita que se mantiveram incólumes ao longo de 150 anos. É parte do anacronismo da vida política colombiana que se expressa através de duas formações políticas decimonônicas [do século XIX], quando a sociedade colombiana está muito mais evoluída. É uma sociedade que tem uma capacidade de expressão através de diferentes organizações, mobilizações e iniciativas populares que não encontram eco no caráter absolutamente arcaico do sistema de partidos legais na Colômbia.

Com essa descrição que encaixa perfeitamente na realidade política colombiana, o que poderíamos falar, então, de seus meios de comunicação…

Os meios de comunicação naqueles países em que os partidos desapareceram ou debilitaram-se são o substituto funcional dos setores de direita.

O que significa para a América Latina o triunfo do presidente venezuelano Hugo Chávez?

Significa continuar em uma senda que se iniciou há 13 anos, um caminho que, progressivamente, ocasionado algumas derrotas muito significativas ao imperialismo norte-americano na região, entre elas, a mais importante, a derrota do projeto da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que era a atualização da Doutrina Monroe para o século XXI e isso foi varrido basicamente pela enorme capacidade de Chávez de formar uma coalizão com presidentes que, não sendo propriamente de esquerda, eram sensíveis a um projeto progressista, como poderia ser o caso de Lula, no Brasil e de Néstor Kirchner, na Argentina. Ou seja, de alguma maneira, Chávez foi o marechal de campo na batalha contra o imperialismo; é um homem que tem a visão geopolítica estratégica continental que ninguém mais tem na América do Sul. O outro que tem essa mesma visão é Fidel Castro; porém, ele já não é chefe de Estado, apesar de que eu sempre digo que o líder cubano é o grande estrategista da luta pela segunda e definitiva independência, enquanto que Hugo Chávez é o que leva as grandes ideias aos campos de batalha, e, com isso, avançamos muito. Inclusive, agora, com a entrada da Venezuela ao Mercosul, conseguiu-se criar uma espécie de blindagem contra tentativas de golpe de Estado. Caso a Venezuela permanecesse isolada, considerado um Estado paria, teria sido presa muito mais fácil da direita desse país e do império norte-americano. Agora, não será tão fácil.

Você vê algumas nuvens cinzentas no horizonte do processo revolucionário da Venezuela?

Creio que sim, porque a direita é muito poderosa na América Latina e tem capacidade de enganar as pessoas. E os grandes meios de comunicação têm a capacidade de manipular, enganar, deformar a opinião pública; vemos isso muito claramente na Colômbia. Boa parte dos colombianos compraram o bilhete da Segurança Democrática com uma ingenuidade, como aqui na Argentina compramos o bilhete de ganhar a Guerra das Malvinas. Portanto, temos que levar em consideração que, sim, existem nuvens no horizonte porque o imperialismo não ficará de braços cruzados e tentará fazer algo como, por exemplo, impulsionar uma tentativa de sublevação popular, tentar desestabilizar o governo de Chávez e derrubá-lo.

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Resistencia, capital da leitura

Por Eric Nepomuceno, via Carta Capital

Uma vez mais – a quarta nos últimos sete anos – os ventos da vida me trouxeram a Resistencia, capital da província do Chaco, nordeste da Argentina, onde acontece o 16º Fórum Internacional para o Fomento do Livro e da Leitura. Por trás desse nome extenso e pomposo se esconde um dos eventos literários mais interessantes da América Latina. São três dias de emoção para os participantes, e de descoberta para o público.

Longe das lantejoulas e do frenesi de eventos sociais disfarçados de festivais literários, ou de feiras que são muito mais de negócios que de literatura, Resistencia, uma cidade amena, com laranjeiras e esculturas plantadas nas calçadas, recebeu, ao longo dos últimos 16 anos, mais de 500 escritores, editores, jornalistas, professores, bibliotecários e especialistas em programas de difusão da leitura vindos de duas dúzias de países. Já passaram por aqui nomes de primeira linha da literatura latino-americana contemporânea, e agora mesmo fazem rodízio, entre oficinas literárias, mesas-redondas, conferências e sessões de leitura, escritores de prestígio consolidado no âmbito do continente, como o cubano Eduardo Heras León, o peruano Alonso Cueto ou as argentinas Cláudia Piñeiro, Samanta Schweblin e Graciela Bialet. A portuguesa Rosário Alçada Araujo, festejada autora infantil em seu país, veio ver de perto o que acontece aqui. José Castilho Marques Neto, que até há pouco dirigiu o Plano Nacional de Leitura brasileiro, fez a conferência de abertura.

Na platéia chamam a atenção batalhões de professoras de origem muito simples, de alunos de áreas de carência total, que pela primeira vez na vida ouvem (e fazem perguntas) a escritores, ilustradores, jornalistas. Não há glamour algum: o que há é, nos olhos do público, o lampejo do descobrimento.

Quem organiza o evento é Mempo Giardinelli, um dos mais conhecidos autores latino-americanos da sua geração, autor de um livro memorável chamado ‘Luna Caliente’ e ganhador do prêmio Rômulo Gallegos com ‘O santo ofício da memória’. O que diferencia tanto este Foro, realizado pela Fundação Mempo Giardinelli, da infinidade de eventos dedicados ao livro e à leitura no continente? Bem, talvez o fato de não ser um evento isolado, mas que integra uma incansável linha de ação levada adiante por Mempo e seu pequeno batalhão de Brancaleone. E também ao fato de ser realmente dedicado à leitura.

O Chaco é uma das províncias mais pobres e exploradas da Argentina. Foi riquíssima, até que seus bosques imensos foram sumariamente varridos do mapa e transformados primeiro em carvão, e depois em planícies cobertas de soja. O desemprego é enorme, comparável à miséria e à destruição do meio-ambiente.

Pois nesse cenário de quase desolação Mempo Giardinelli criou sua fundação e passou a dedicar esforços a incentivar a leitura. ‘Nós somos o que lemos e o que deixamos de ler’, diz ele com razão. Para mudar a realidade e tomar consciência da necessidade dessa mudança, ele inventou de incentivar as crianças em primeiro lugar, e os jovens e adultos depois, a ler. Grupos de senhoras aposentadas, todas elas de vida dura e escassos recursos, se transformaram em ‘avós conta-contos’: vão às escolas públicas contar histórias para as crianças. De escolas, a missão se estendeu a hospitais, centros comunitários, refeitórios de grupos de assistência social. E, ao mesmo tempo, a Fundação passou a realizar seminários de altos estudos literários e de incentivo à leitura, trazendo para esta província pobre e atrasada luminares de universidades do mundo inteiro. Resultado: muitas das ações levadas adiante, contra vento e maré, aqui em Resistencia passaram a ser adotadas em outras províncias argentinas.

É verdade que o cenário social do Chaco não mudou. Mas em suas escolas de pobres as crianças lêem, em seus colégios públicos os alunos lêem. E descobrem, através dos livros, que existe, sim, uma outra realidade possível, e que o desafio de todos é chegar até ela.

A mídia se partidarizou

O Caderno ENSAiOS reproduz entrevista com Marcos Dantas, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, especialista em Economia Política da Comunicação e doutor em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ.

Publicada originalmente na edição desse mês do Jornal da UFRJ, as reflexões foram prestadas ao repórter Coryntho Baldez, e versam sobre quatro grandes temas: os esforços das grandes mídias em seu projeto partidário, a nova dimensão geopolítica do país e a consequente construção de um espaço sul-americano, a convergência das mídias,  e a democratização dos meios de comunicação.

Dessa maneira, o blog procura novamente dar conta de um dos seus principais objetivos: articular o pensamento da academia com a grande rede. Boa leitura.

Marcos Dantas

Marcos Dantas

Os grandes conglomerados da mídia não mediram esforços para fabricar fatos e influir no roteiro político das eleições presidenciais de 2010. No papel de oposição declarada, chegaram às fronteiras do obscurantismo ao estimular preconceitos de ordem religiosa para tornar bem-sucedido o programa político que consideravam o mais conveniente aos seus interesses.

Na avaliação de Marcos Dantas, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, não é exatamente uma novidade histórica o alinhamento da mídia brasileira a projetos conservadores que, em algumas ocasiões, desaguaram em golpes de Estado, como ocorreu em 1964. “O que diferencia o momento atual é que não dá mais para contar com um golpe militar e, por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento”, salienta o especialista em Economia Política da Comunicação e doutor em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. Estudioso das novas tecnologias digitais, Marcos Dantas acredita que as mídias sociais vêm rompendo, em muitos casos, a pauta de debates imposta pelos meios tradicionais. “Na Internet, não se pode controlar a produção de conteúdo. O conglomerado que controla o setor de comunicação no Brasil tem consciência de que as novas mídias são uma ameaça aos seus negócios”, avalia o professor.

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, Dantas defende uma “re-regulamentação” das comunicações voltada para a convergência das mídias e o fortalecimento da produção de conteúdo nacional. No entanto, adverte que a efetiva democratização dos meios de comunicação é muito difícil em uma sociedade movida pelo poder do mercado.

Por Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: Nesta última eleição presidencial, como o senhor avalia o papel da mídia tradicional? A mídia, de fato, se partidarizou?

Marcos Dantas: Podemos afirmar que a mídia se partidarizou por uma razão muito simples. A presidente da Associação Nacional de Jornais, Edith Frias, do grupo Folha, deu uma declaração pública dizendo que quando a oposição é débil a mídia deve assumir esse papel. É algo oficial, não uma análise feita de fora. A mídia assumiu oficialmente uma posição partidária e não sou eu que vou contradizê-la.

Jornal da UFRJ: Pode-se dizer que é algo que não acontece com tanta intensidade desde as eleições de 1989?

Marcos Dantas: Não sei. Mas esse comportamento é recorrente. Muito provavelmente os mais velhos lembrarão a crítica implacável dos meios de comunicação ao segundo mandato de Getúlio Vargas. A derrocada do Jango foi outro momento de união da mídia em torno de forças retrógradas. No golpe militar, os editoriais e as reportagens da maioria absoluta dos grandes jornais foram todos amplamente favoráveis aos militares. Do ponto de vista histórico, essa unanimidade da imprensa em torno de determinadas posições políticas é tradicional e aconteceu também na eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989. Agora, a história se repetiu nesta eleição presidencial de 2010. É uma trajetória que mostra muita coesão da mídia em momentos cruciais de nossa história.

Jornal da UFRJ: Seria exagero identificar um comportamento golpista da mídia, como alguns chegaram a apontar?

Marcos Dantas: Não diria que é exagero se levarmos em conta o que aconteceu, por exemplo, na Venezuela. Sem dúvida alguma, houve uma tentativa de derrubada do governo constitucional de Chavez, em 2002, com a ajuda decisiva da televisão e dos jornais. E quase conseguiram seu intento. Também há o exemplo do apoio da mídia brasileira ao golpe de 1964. O que diferencia os momentos é que, agora, não dá mais para contar com um golpe militar. Por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento e de construção de consensos, que levem a população a dar consequência a um projeto golpista através, por exemplo, de um impeachment. Aparentemente, houve sim um esforço de fabricação de consenso para levar a uma mudança do rumo político e histórico do momento.

Jornal da UFRJ: A chamada grande imprensa, no processo eleitoral, deu curso a debates retrógrados que vinculavam temas como o aborto, a opção sexual e visões religiosas. Instalou-se no país quase um clima de inquisição e perseguição religiosa. Como o senhor avalia isso?

Marcos Dantas: Olha, estamos muito perto dos acontecimentos para poder avaliar com segurança esses aspectos. Na minha condição de acadêmico, é preciso certa prudência. Quando digo que há um processo de fabricação de consensos por parte dos meios de comunicação, é porque existem estudos que comprovam isso. O momento que vivemos merece investigação mais aprofundada para que possamos compreendê-lo melhor. O que posso dizer é que essas questões que você levanta me causam estupefação.

Jornal da UFRJ: Por quê?

Marcos Dantas: Porque hoje existe, ou deveria existir, um consenso em torno da defesa de um Estado laico e republicano. Um consenso em torno da defesa de um projeto de raízes iluministas. E os dois candidatos que participaram do pleito presidencial no segundo turno são pessoas que possuem essa  raiz, mesmo com suas diferenças. Então é muito difícil entender que, de repente, os meios de comunicação venham a suscitar um debate fundamentalista no Brasil. Um debate obscurantista e absolutamente reacionário. Isso deveria ter sido alvo de combate por parte de todos os candidatos. Eles não deveriam aceitar, em hipótese alguma, a interferência do obscurantismo religioso nas discussões políticas, que significa abrir espaço para a construção no Brasil de uma República teocrática. Não vamos imaginar que esse fenômeno seja exclusivamente muçulmano. Nada impede que seja cristão também. E hoje existe uma parte grande da nossa população que está sendo arrebanhada por um projeto teocrático. Esse é outro fenômeno que merece discussão. Eu não consigo encontrar uma explicação de como se suscitou tal debate numa campanha presidencial, a não ser por uma espécie de golpismo superficial.

Jornal da UFRJ: Foi depois da realização da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em abril de 2009, que a grande mídia intensificou a estratégia de oposição ao governo com a intenção de resguardar os próprios interesses?

Marcos Dantas: A Confecom pode ter contribuído, mas penso que a mídia está expressando questões mais profundas relacionadas à sociedade brasileira. Os seus interesses se articulam com um conjunto amplo de outros interesses, nacionais e internacionais. O que estava em jogo nessas últimas eleições era o novo papel internacional do Brasil. Um papel que pode ser reforçado ou não, dependendo da orientação que se dê ao pré-sal, por exemplo, que criou uma nova dimensão geopolítica para o país. O que estava em jogo era um projeto de construção de um espaço sul-americano para os sul-americanos. Além disso, houve a incorporação ao consumo de cerca de 30 milhões de brasileiros. É preciso, claro, que também tenham acesso à educação, à cultura. Trata-se de um processo que não pode parar. Existem mudanças em curso e mais quatro ou oito anos do mesmo projeto podem torná-las irreversíveis. Os meios de comunicação, articulados com outros interesses, tentam cumprir um papel de impedir que esse projeto prossiga.

Jornal da UFRJ: Nesse processo, qual a sua avaliação do fenômeno dos novos meios de comunicação, especialmente das redes sociais na Internet?

Marcos Dantas: Essa questão requer responsabilidade acadêmica para tentarmos compreender o fenômeno. Ainda não temos muitos elementos. Há 15 anos, a televisão aberta tinha quase o monopólio da audiência, no mundo e no Brasil. Nesses últimos anos, esse monopólio foi quebrado praticamente no mundo inteiro pela penetração da TV por assinatura e da Internet. Mas no Brasil isso ainda não aconteceu. Hoje, nos principais países capitalistas, a população tem à sua disposição centenas de canais de televisão. Assim, nenhum país pode dizer que tem 50%, 40% ou 30% de audiência.

Jornal da UFRJ: E isso ainda acontece no Brasil?

Marcos Dantas: Sim, a Globo não tem mais uma audiência de 60% porque a Record emparelhou com ela em alguns horários, mas ainda detém índices médios de 30% a 40%. Mas em qualquer lugar do mundo hoje, grandes redes, mesmo a BBC inglesa, têm cerca de 10% de audiência e ficam felizes com esse percentual. E existem centenas de canais com 1% ou 2%, que mostram uma diversidade de oferta e segmentação do mercado que são imensas. A reconstrução da estratégia de audiência mudou completamente a maneira de fazer negócios em vários países.

Jornal da UFRJ: Mas as chamadas mídias sociais conseguem confrontar a mídia tradicional em termos de informação, escapando à lógica de produção monopolizada da notícia?

Marcos Dantas: Sim, conseguem. Na Internet não se pode controlar a produção de conteúdo. De repente, um cara lá na Austrália, como aconteceu recentemente, coloca na rede documentos secretos sobre ações de militares norte-americanos no Afeganistão e muda a pauta. Um dos elementos mais importantes da estratégia de produção de consenso é exatamente o controle do agendamento. Quando se tem um conjunto pequeno de corporações controlando a  informação, esse grupo diz o que pode ou não ser notícia. Mas quando se tem uma diversidade grande de produtores de informação essa pauta controlada começa a ser quebrada. O conglomerado que controla o setor de comunicação no Brasil há cerca de 50 anos tem perfeita consciência de que o fenômeno das novas mídias é uma ameaça aos seus negócios.

Jornal da UFRJ: E como esses grupos ligados à mídia tradicional estão se preparando para enfrentar essa mudança?

Marcos Dantas: Bem, eles sabem que a transição vem. E raciocinam da mesma maneira que D. João VI ao aconselhar o filho D. Pedro a respeito da Independência do Brasil em relação a Portugal. Se ela é inevitável, “antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para alguns desses aventureiros”. Ou seja, eles estão tentando controlar a transição. Com o atual processo de mudança política, econômica e social no Brasil, inclusive com a realização da Confecom, temem perder o controle do ritmo e do rumo dessa transição que acontece em seu próprio negócio. Daí também a ferocidade com que tentam barrar tal processo.

Jornal da UFRJ: E daí também a dificuldade de regular o oligopólio no setor de comunicações, como acontece em qualquer país do mundo?

Marcos Dantas: Temos um dispositivo constitucional de 1988 que nunca foi aplicado. Esse é o exemplo mais óbvio de como o sistema consegue controlar o ritmo da mudança e tem o poder até mesmo de barrá-la. Mas é possível que agora  se consiga abrir o debate porque existem novos atores envolvidos, como ficou claro na Confecom. A sociedade está querendo discutir e influir nos rumos dessa discussão.

Jornal da UFRJ: No Rio de Janeiro, um mesmo grupo empresarial controla a TV aberta, as tevês pagas e a rádio AM de maior audiência, além dos dois jornais mais lidos. Há exemplo disso no mundo?

Marcos Dantas: Não. Mas a questão do oligopólio tem que ser vista de modo mais complexo. É um conceito econômico que indica que há um pequeno grupo  de  empresas de determinado setor controlando o mercado. Por esse estrito viés econômico, seria possível dizer que não há monopólio no Brasil. Existem centenas de emissoras de rádio, dezenas de jornais. Ao todo no Brasil existem, se não me engano, 470 emissoras de televisão pertencentes a grupos empresariais diferentes. Mas não se pode olhar a questão pelo conceito estritamente econômico, não é um problema para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão que fiscaliza casos de abuso de poder econômico. Devemos analisar como funciona o setor das comunicações, do ponto de vista econômico, mas também entender os seus elos com a política e com a cultura.

Jornal da UFRJ: Há modelo no mundo parecido com o brasileiro?

Marcos Dantas: O modelo norte-americano é muito parecido com o brasileiro. Mas nos Estados Unidos existiam, não sei se ainda existem, mais de mil emissoras de televisão aberta espalhadas pelo país. E havia uma legislação que obrigava que 25% da programação dessas emissoras tivessem origem local. O restante da programação era da cabeça de rede. A estrutura de rede nacional é bem parecida com a que existe no Brasil

Jornal da UFRJ: Essa obrigatoriedade de programação local é uma das demandas da Confecom?

Marcos Dantas: É, mas quando falo nos Estados Unidos lembro, de imediato, de cerca de seis ou sete pólos econômicos distribuídos pelo país, como Nova Iorque, Miami, Seattle, Houston, São Francisco, Los Angeles, Chicago, Detroit. E quando falo de Brasil, lembro de São Paulo. Então, quando defendo a produção local sei que é preciso também um dinamismo  econômico local para  sustentá-la. Portanto, a questão do oligopólio da mídia vai além da lei e faz parte de um processo amplo de mudança.

Jornal da UFRJ: E é possível vislumbrar alguma mudança nessa direção?

Marcos Dantas: Recentemente participei de um seminário no Nordeste e fiquei admirado com o que ouvi. Está havendo hoje um crescente dinamismo econômico do interior e já existem cidades médias que são relativamente autossustentáveis do ponto de vista econômico.

Jornal da UFRJ: Isso já se reflete na produção de cultura?

Marcos Dantas: Eu não ousaria dizer que já se reflete, mas há uma clara expectativa de que esse processo reflita no plano da cultura. Se tivermos políticas públicas adequadas, é possível fazer com que o dinamismo econômico também estimule a produção local. Nesse caso, um dispositivo regulador que determine que a programação tenha 25% de produção local vai certamente acelerar esse processo.

Jornal da UFRJ: Por que é tão difícil no Brasil aprovar uma lei geral que regule o setor de comunicações?

Marcos Dantas: É um processo. No Brasil, existe uma estrutura que se organizou, há cerca de 50 anos, com o controle de determinadas corporações, e elas não vão querer “largar o osso”. Como disse, estão brigando para controlar o ritmo e a direção da mudança. Um exemplo de que isso já vem acontecendo é a “Lei do Cabo”. Houve um momento em que, espontaneamente, começaram a aparecer operadoras de TV a cabo. Quando isso aconteceu, a produção de conteúdo era um monopólio das emissoras de TV, inclusive regulado pela própria Constituição. Criou-se então um vazio legal. Encaminhou-se um projeto de lei, o tempo inteiro instrumentalizado pela Rede Globo, que gerou um mercado de televisão a cabo sob o seu controle. Foi uma lei feita sob medida. E alcançava apenas o cabo, deixando de fora a outra modalidade de TV por assinatura, por meio de satélite. Ali, a Globo fez uma negociação com o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações, dando algumas migalhas, como um canal comunitário, e aprovou uma lei que lhe permitiu criar a Net e dominar 60% do mercado. Com isso, o mercado parou de crescer no Brasil. Estacionou.

Jornal da UFRJ: Parou de crescer por causa da renda média dos brasileiros, já que os serviços monopolizados pela Net são caros?

Marcos Dantas: Sim, pela renda e também pelo tipo de conteúdo, que não interessava ao público. Enquanto isso, a Globo foi se preparando para a transição, construindo seus próprios canais para concorrer no mercado do cabo, como os telecines, o GNT, entre outros. Ela começou a testar esse tipo de mercado e a se transformar em uma grande produtora de conteúdo. E é exatamente o que ela é hoje. Diria até que a Rede Globo terá um grande futuro se assumir esse perfil para disputar, por exemplo, com os grupos Warner e Fox. Mas aí entra a cultura de emissora da TV Globo. Ela se pergunta: o que sei fazer? E responde: produzir e emitir. E não admite que lhe digam que, agora, não pode mais possuir um canal de VHF.

Jornal da UFRJ: A implantação do Conselho Nacional de Comunicação, que é uma das resoluções da Confecom, seria um instrumento importante para democratizar a mídia no Brasil?

Marcos Dantas: Vou tentar discutir melhor essa questão da democratização da mídia. Digo com clareza o seguinte: em uma sociedade de mercado, é muito difícil democratizar os meios de comunicação. Não vamos confundir mercado com democracia. Para alcançarmos a democratização da mídia é preciso democratizar a sociedade. Posso até afirmar, dialeticamente, que para  a democratização da sociedade um dos aspectos importantes é democratizar a mídia. São como dois pedais de uma bicicleta. Mas não vejo como a criação de um Conselho de Comunicação resolverá isso sozinha. É necessário um conjunto amplo de mecanismos para democratizar a sociedade e, com base nessa perspectiva, introduzir uma questão  importante nesta discussão.

Jornal da UFRJ: E qual é?

Marcos Dantas: É a própria visão dos meios de comunicação, que é funcionalista. Por essa visão, cuja referência mais distante é o liberalismo na acepção mais legítima, os meios de comunicação teriam uma função ligada à cultura, à democracia, à informação ampla. Acontece que, numa sociedade capitalista moderna, os meios de comunicação são empresas capitalistas voltadas para o lucro. Se quisermos adotar uma visão funcionalista, teríamos que dizer que a função deles é dar lucro e ponto final. O seu objetivo não é a democracia. São empresas que produzem para lucrar e têm no capitalismo uma dimensão cada vez mais importante. O conhecido economista John Kenneth Galbraith disse que é impossível pensar a sociedade industrial sem a televisão. Lamentavelmente, boa parte dos  economistas, inclusive os marxistas, não atentou para todas as consequências dessa conclusão. De fato, não se pode pensar o capitalismo contemporâneo sem compreender o lugar que os meios de comunicação ocupam nele, que é o de produção de consumo. Eles não estão nem aí para discutir ideias, para a democracia ou para a liberdade de expressão. Querem produzir consumo e é isso o que fazem.

Jornal da UFRJ: O negócio é mover a roda?

Marcos Dantas: Exatamente. Claro, as pessoas precisam de mais crédito e mais renda para consumirem. Mas apenas isso não é suficiente. É necessário criar uma mentalidade voltada para o consumo. Não apenas pela publicidade, que tem um foco direto, mas pelas ideias e valores que chegam às pessoas que assistem a uma novela, a um programa de auditório ou a um jogo de futebol. Todo esse ambiente está criando uma visão que associa a vida ao consumo. Quando a renda cresce, a primeira coisa que a pessoa faz, impulsivamente, é comprar. Por isso, numa economia de mercado, o máximo possível é expandir, criar e diversificar os canais competitivos de produção de consumo. A remodelação capitalista dos últimos 20 anos, apoiada pelas novas tecnologias, gerou tal efeito nos Estados Unidos, Europa e Japão. Os canais competitivos foram multiplicados, mas isso não é democratizar os meios de comunicação. É apenas ampliar a faixa de oferta de consumo. Quem gosta de futebol sintoniza em um canal específico e não precisa mais ficar esperando o domingo à tarde para ver uma partida. Da mesma  forma, não é mais preciso esperar o “Corujão” para ver um filme. Isso significa a diversificação de ofertas e a criação de outros valores sempre voltados para a produção de consumo.

Jornal da UFRJ: Que propostas da Confecom o senhor citaria como as mais importantes?

Marcos Dantas: Bom, não quero brigar com meus amigos. É claro que, se tivermos que criar um conselho, vamos fazê-lo, até porque ele pode ser um espaço de debate interessante. Mas eu, contrariando boa parte de meus colegas, não acho a proposta do conselho a mais importante. As propostas mais importantes produzidas na Confecom são aquelas que focam numa regulamentação das comunicações brasileiras voltada para a convergência e para a produção de conteúdo. São aquelas que identificam a necessidade de se ter uma regulamentação que considere o conteúdo em seu conjunto, indiferentemente da plataforma tecnológica. Ou seja, não importa se assisto à televisão na telinha, na telona ou no computador. Em relação à plataforma, interessa apenas a possibilidade de se ter a oferta mais diversificada possível. Agora, do ponto de vista do conteúdo, é preciso uma política pública que fortaleça, primeiramente, a identidade nacional, que passa pelas identidades regionais e culturais existentes no país. Em segundo lugar, essa política deverá garantir espaço para a produção de conteúdo não comercial, ou seja, de natureza exclusivamente cultural, educacional, lúdica. As propostas da Confecom que fortalecem a ideia de produção de conteúdo nacional são, na minha avaliação, as mais importantes.

Jornal da UFRJ: Decorrido mais de um ano do término da Confecom, o que aconteceu com as propostas aprovadas e como anda a mobilização em torno delas? Pode haver avanço no próximo governo?

Marcos Dantas: O atual governo criou um grupo de trabalho e prometeu deixar pronto um projeto de regulamentação para o próximo ano. No próprio governo de Fernando Henrique Cardoso havia uma proposta elaborada de regulamentação para os meios de comunicação eletrônica, deixando de fora as chamadas telecomunicações, porque já existia a Lei Geral das Telecomunicações (LGT). É muito provável que, agora, depois de oito anos e todas essas mudanças, tenhamos um projeto de lei que trate das comunicações em um mesmo pacote, separando o que é infraestrutura e o que é conteúdo. É a proposta que defendo. Um modelo muito interessante é o do Projeto de Lei 29,  já aprovado na Câmara e que está tramitando no Senado.

Jornal da UFRJ: Qual a novidade desse projeto?

Marcos Dantas: Ele desagrega a cadeia produtiva, ou seja, identifica quem produz conteúdo, quem programa e quem transporta. A partir daí, para cada um desses atores, o projeto estabelece as regras adequadas. A proposta nasceu de um movimento feito pelas teles para comprar pequenas operadoras de TV a cabo. Isso gerou uma reação da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), dominada pelas organizações Globo, para impedir a iniciativa das teles. A alegação era a de que, pela LGT, as teles não poderiam ser proprietárias de operadoras de TV a cabo. Começa então uma guerra de projetos de lei no Congresso, com posições opostas.

Jornal da UFRJ: E o que aconteceu depois?

Marcos Dantas: Um desses projetos acabou nas mãos do deputado Jorge Bittar (PT/RJ), que foi o seu relator na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal. Ele teve a sensibilidade para reunir projetos capengas e propor uma grande regulamentação de TV por assinatura. Primeiro, trouxe para o PL 29 a TV por satélite, que não está na “Lei do Cabo”, e a chamada MMDS, outra tecnologia, mas que está em extinção. Isso significa criar um serviço de acesso condicionado, não importando a plataforma. E depois, propôs a discussão a respeito do conteúdo, até porque TV por assinatura, hoje, no Brasil, é sinônimo de programação estrangeira. Já na televisão aberta, por uma política de pressão da ditadura militar, existe forte presença de conteúdo nacional. E a população se habituou a ver a novela brasileira e o Jornalismo brasileiro. Pode-se achar bom ou ruim, mas a população se acostumou com o jeito brasileiro de fazer televisão. Então, começamos uma briga para que se colocasse um forte percentual de conteúdo nacional na TV por assinatura. Apesar dos lobbies e de alguns  recuos, o projeto manteve a ideia central de que qualquer pacote de TV por assinatura tem que ter 1/3 de canais brasileiros e pelo menos três horas e meia diárias de programação nacional qualificada.

Jornal da UFRJ: Explique melhor essa ideia.

Marcos Dantas: Fomos buscar na legislação europeia o conceito de espaço qualificado, que é definido por exclusão. Ou seja, programação qualificada é o que não é jogo de futebol, programa de auditório, noticiário. Por exclusão, sobram os documentários, filmes, seriados, enfim, esse tipo de programação. É um avanço e há uma possibilidade de aprovar esse projeto antes do fim do ano.

Jornal da UFRJ: Qual a sua opinião acerca do papel das escolas de Comunicação, atualmente?

Marcos Dantas: Não se pode deixar de dar ao jovem a formação necessária para que ele seja um bom profissional, mas acho que o papel de qualquer universidade é construir consciência crítica. E está cada vez mais difícil. Quando Karl Marx escreveu naquele velho manifesto que o capitalismo penetra em tudo, ele não imaginava a que níveis isso chegaria na sociedade atual. As pessoas com maior visão crítica optam, normalmente, pela carreira acadêmica. E aí há o risco de se ter uma produção acadêmica crítica, que fica fazendo discurso contra os meios, e a realidade do mercado é outra. É algo que não se sustenta porque, pela ordem natural das coisas, as novas gerações começarão a produzir na academia também para o mercado. Já existe, por exemplo, a Globo Universidade. Em outros setores da Ciência, como a Biologia, já há uma forte imbricação entre universidade e empresa. No campo das Ciências Humanas e Sociais, existe uma herança crítica, mas o fato é que a universidade não está fora da sociedade. Fica a pergunta: até que ponto essa herança vai resistir, a não ser que se comece a reconstruí-la na própria sociedade?