“Na América Latina, monopólios midiáticos substituem partidos de direita” / Entrevista com Atilio Boron

Por Fernando Arellano Ortiz, no CronicÓn, via Brasil de Fato / Tradução: Adital

“Não há erro: os meios de comunicação simplesmente são grandes conglomerados empresariais que têm interesses econômicos e políticos. Na América Latina, os monopólios midiáticos têm um poder fenomenal que vêm cumprindo na função de substituir os partidos políticos de direita que caíram em descrédito e que não têm capacidade de chamar a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade”. Assim o politólogo e cientista social argentino Atilio Boron caracteriza a denominada canalha midiática.

Nesse sentido, explica, “cumpre-se o que muito bem profetizou Gramsci há quase um século, quando disse que diante da ausência de organizações da direita política, os meios de comunicação, os grandes diários, assumem a representação de seus interesses; e isso está acontecendo na América Latina”. Em praticamente todos os países da região, os conglomerados midiáticos converteram-se em “operadores políticos”.

A Crise do Capitalismo e o triunfo de Chávez

Boron, que dispensa apresentação por ser um importante referente da teoria política e das ciências sociais em Iberoamérica, foi um dos expositores principais do VI Encontro Internacional de Economia Política e Direitos Humanos, organizado pela Universidad Popular Madres de la Plaza de Mayo, que aconteceu em Buenos Aires, entre os dias 4 e 6 de outubro.

Tópicos como a crise estrutural do capitalismo, o fenômeno da manipulação dos monopólios midiáticos e o que significa para a América Latina o triunfo de Hugo Chávez foram tratados com profundidade por esse destacado politólogo, sociólogo e investigador social, doutorado em Ciências políticas pela Universidade de Harvard e, atualmente, diretor do Programa Latino-americano de Educação a Distância em Ciências Sociais do Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini, na capital argentina.

Para aprofundar sobre alguns desses temas, o Observatorio Sociopolítico Latinoamericano (www.cronico.net) teve a oportunidade de entrevistá-lo no final de sua participação em dito fórum acadêmico internacional.

Rumo a um projeto pós-capitalista

No desenvolvimento de sua exposição no encontro da Universidad Popular de Madres de la Plaza de Mayo, Boron analisou o contexto da crise capitalista.

“Hoje em dia é impossível referir-se à crise e à saída da mesma sem falar do petróleo, da água e das questões meio ambientais. Essa é uma crise estrutural e não produto de uma má administração dos bancos das hipotecas subprime”.

Recordou que, recentemente, foram apresentadas propostas por parte dos Prêmios Nobel de Economia para tornar mais suave a débâcle capitalista. Uma, a esboçada por Paul Krugman, que propõe revitalizar o gasto público. O problema é que os Estados Unidos estão quebrados e o nível de endividamento das famílias nos Estados Unidos equivale a 150% dos ingressos anuais. “Krugman propõe dar crédito ao Estado para que estimule a economia. Porém, os Estados Unidos não têm dinheiro porque decidiram salvar os bancos”.

A outra proposta é de Amartya Sem, que analisa a situação do capitalismo como uma crise de confiança e é muito difícil restabelecê-la entre os poupadores e os banqueiros devido aos antecedentes desses últimos. Por isso, essas não deixam de ser “pseudo explicações que não levam à questão de fundo. Não explicam porque caem os índices do PIB e sobem as bolsas. Ambos índices estariam desvinculados e as bolsas crescem porque os governos injetaram moeda ao sistema financeiro”.

A crise capitalista serviu para acumular riqueza em poucas mãos, uma vez que “o que os democratas capitalistas fizeram no mundo desenvolvido foi salvar os banqueiros, não os endividados, ou seja, as vítimas”.

Exemplificou com as seguintes cifras: enquanto o ingresso médio de uma família nos Estados Unidos é de 50.000 dólares ao ano, o daqueles de origem latina é de 37.000 e o de uma família negra é de 32.000, o diretor executivo do Bank of America, resgatado, cobrou um salário de 29 milhões de dólares.

Então, é evidente que cada vez mais há uma tendência mais regressiva de acumular riqueza em poucas mãos. Em trinta anos, o ingresso dos assalariados foi incrementado em 18% e o dos mais ricos cresceu 238%.

“No capitalismo desenvolvido houve uma mutação e os governos democráticos transformaram-se em plutocracias, governos ricos”. Porém, além disso, “o capitalismo se baseia na apropriação seletiva dos recursos”.

Por isso, citando o economista egípcio Samir Amin, Boron afirma sem medo que “não há saída dentro do capitalismo”.

Como alternativa, Boron sustenta que “hoje, pode-se pensar em um salto para o modelo pós-capitalista. Há algo que pode ser feito até que apareçam os sujeitos sociais que darão o ‘tiro de misericórdia’ no capitalismo. O que se pode fazer é desmercantilizar tudo o que o capitalismo mercantilizou: a saúde, a economia, a educação. Assim, estaremos em condições de ver o amanhecer de um mundo mais justo e mais humano”.

A reeleição na Venezuela

Sobre a matriz de opinião que os monopólios midiáticos da direita têm tentado impor no sentido de que a reeleição do presidente Chávez é um sintoma de que ele quer se perpetuar no poder, a análise de Boron foi contundente:

“Há um grau de hipocrisia enorme nesse tema, porque os mesmos que se preocupam com o fato de Chávez estar por 20 anos no governo, aplaudiam fervorosamente a Helmut Kohl, que permaneceu no poder por 18 anos, na Alemanha; ou Felipe González, por 14 anos, na Espanha; ou Margaret Thatcher, por 12 anos, na Inglaterra”.

“Há um argumento racista que diz que somos uma raça de corruptos e imbecis; que não podemos deixar que as pessoas mantenham-se muito tempo no poder; ou há uma conveniência política, que é o que acontece ao tentarem limar as perspectivas de poder de líderes políticos que não são de seu agrado. Agora, se Chávez instaurasse uma dinastia onde seu filho e seu neto herdassem o poder, eu estaria em desacordo. Porém, o que Chávez faz é dizer ao povo que eleja; e, em âmbito nacional, por um período de 13 anos, convocou o povo venezuelano para 15 eleições, das quais ganhou 14 e perdeu uma por menos de um ponto; e, rapidamente, reconheceu sua derrota. Então, não está dito em nenhum lugar sério da teoria democrática que tem que haver alternância de lideranças, na medida que essa liderança seja ratificada em eleições limpas e pela soberania popular”.

Confira a entrevista:

A canalha midiática assume a representação de interesses da direita

Hoje, no debate da teoria política, fala-se de “pós-democracia”, para significar o esgotamento dos partidos políticos, a irrupção dos movimentos sociais e a incidência dos meios de comunicação na opinião pública. Que alcance você dá a esse novo conceito?

Eu analiso como uma expressão da capitulação do pensamento burguês que, em uma determinada fase do desenvolvimento histórico do capitalismo, fundamentalmente a partir do final da I Guerra Mundial, apropriou-se de uma bandeira – que era a da democracia – e a assumiu. De alguma maneira, alguns setores da esquerda consentiram nisso. Por quê? Bom, porque estávamos um pouco na defensiva e, além disso, o capitalismo havia feito uma série de mudanças muito importantes. Por isso, a ideia de democracia ficou como se fosse uma ideia própria da tradição liberal burguesa, apesar de que nunca houve um pensador dessa corrente política que fizesse uma apologia do regime democrático. Estudavam sobre isso, possivelmente, a partir de Thorbecke ou de John Stuart Mill; porém, nunca propunham um regime democrático; isso vem da tradição socialista e marxista. No entanto, apropriaram-se dessa ideia; passaram todo o século XX atualizando-a. Agora, dadas as novas contradições do capitalismo e ao fato de que as grandes empresas assumiram a concepção democrática, a corromperam e a desvirtuaram até o ponto de torná-la irreconhecível, perceberam que não tem sentido continuar falando de democracia. Então, utilizam o discurso resignado que diz que o melhor da vida democrática já passou; um pouco a análise de Colin Crouch: o que resta agora é o aborrecimento, a resignação, o domínio a cargo das grandes transnacionais; os mercados sequestraram a democracia e, portanto, temos que nos acostumar a viver em um mundo pós-democrático. Nós, como socialistas, e, mais, como marxistas jamais podemos aceitar essa ideia. Creio que a democracia é a culminação de um projeto socialista, da socialização da riqueza, da cultura e do poder. Porém, para o pensamento burguês, a democracia é uma conveniência ocasional que durou uns 80 ou 90 anos; depois, decidiram livrar-se dela.

Mesmo em uma situação anômala mundial e levando-se em conta que a propriedade dos grandes meios de comunicação está concentrada em uns poucos monopólios do grande capital, como você analisa o fenômeno da canalha midiática na América Latina? Parece que, paulatinamente, vão perdendo a credibilidade…?

O que bem qualificas como canalha midiática tem um poder fenomenal, que vem substituindo os partidos políticos da direita que caíram no descrédito e que não têm capacidade de prender a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade. Nesse sentido, cumpre-se o que, Gramsci muito bem profetizou há quase um século, quando disse que diante da ausência de organizações da direita política, os meios de comunicação, os grandes diários, assumem a representação de seus interesses e isso está acontecendo na América Latina. Em alguns países, a direita conserva certa capacidade de expressão orgânica, creio que é o caso da Colômbia; porém, na Argentina, não, porque nesse país não existem dois partidos, como o Liberal e o Conservador colombianos; e o mesmo acontece no Uruguai e no Brasil. O caso colombiano revela a sobrevivência de organizações clássicas do século XIX da direita que se mantiveram incólumes ao longo de 150 anos. É parte do anacronismo da vida política colombiana que se expressa através de duas formações políticas decimonônicas [do século XIX], quando a sociedade colombiana está muito mais evoluída. É uma sociedade que tem uma capacidade de expressão através de diferentes organizações, mobilizações e iniciativas populares que não encontram eco no caráter absolutamente arcaico do sistema de partidos legais na Colômbia.

Com essa descrição que encaixa perfeitamente na realidade política colombiana, o que poderíamos falar, então, de seus meios de comunicação…

Os meios de comunicação naqueles países em que os partidos desapareceram ou debilitaram-se são o substituto funcional dos setores de direita.

O que significa para a América Latina o triunfo do presidente venezuelano Hugo Chávez?

Significa continuar em uma senda que se iniciou há 13 anos, um caminho que, progressivamente, ocasionado algumas derrotas muito significativas ao imperialismo norte-americano na região, entre elas, a mais importante, a derrota do projeto da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que era a atualização da Doutrina Monroe para o século XXI e isso foi varrido basicamente pela enorme capacidade de Chávez de formar uma coalizão com presidentes que, não sendo propriamente de esquerda, eram sensíveis a um projeto progressista, como poderia ser o caso de Lula, no Brasil e de Néstor Kirchner, na Argentina. Ou seja, de alguma maneira, Chávez foi o marechal de campo na batalha contra o imperialismo; é um homem que tem a visão geopolítica estratégica continental que ninguém mais tem na América do Sul. O outro que tem essa mesma visão é Fidel Castro; porém, ele já não é chefe de Estado, apesar de que eu sempre digo que o líder cubano é o grande estrategista da luta pela segunda e definitiva independência, enquanto que Hugo Chávez é o que leva as grandes ideias aos campos de batalha, e, com isso, avançamos muito. Inclusive, agora, com a entrada da Venezuela ao Mercosul, conseguiu-se criar uma espécie de blindagem contra tentativas de golpe de Estado. Caso a Venezuela permanecesse isolada, considerado um Estado paria, teria sido presa muito mais fácil da direita desse país e do império norte-americano. Agora, não será tão fácil.

Você vê algumas nuvens cinzentas no horizonte do processo revolucionário da Venezuela?

Creio que sim, porque a direita é muito poderosa na América Latina e tem capacidade de enganar as pessoas. E os grandes meios de comunicação têm a capacidade de manipular, enganar, deformar a opinião pública; vemos isso muito claramente na Colômbia. Boa parte dos colombianos compraram o bilhete da Segurança Democrática com uma ingenuidade, como aqui na Argentina compramos o bilhete de ganhar a Guerra das Malvinas. Portanto, temos que levar em consideração que, sim, existem nuvens no horizonte porque o imperialismo não ficará de braços cruzados e tentará fazer algo como, por exemplo, impulsionar uma tentativa de sublevação popular, tentar desestabilizar o governo de Chávez e derrubá-lo.

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No Anti-Édipo, uma trilha para enxergar “novo” capitalismo

Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos, via Outras Mídias


Resenha de
 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. ed. 34. 2010 [1972].

Quando se pensa no Maio de 68 europeu, logo vêm à mente alguns livros. Geralmente, lembramos de Eros e civilização (1955), de Marcuse, ou A sociedade do espetáculo (1967), de Debordàs vezes de Os condenados da Terra (1961), de Fanon; ou talvez A arte de viver para as novas gerações (1967), de Raoul Vaneigem. Cânones de seu tempo, foram livros que ficaram registrados como inspiradores da geração, frequentemente citados em retrospectivas, documentários e memórias. O anti-Édipo veio depois da grande turbulência, em 1972. O primeiro da série de livros resultado das núpcias intelectuais entre um filósofo e um médico, daí por diante amados e odiados pelo binômio Deleuze-Guattari.

No começo da década de 1970, a onda já tinha quebrado na cabeça de muitos militantes daquele ciclo. Tempos de frustração, nuvens carregadas, revisionismo. Nada disso deprimiu os autores, que escreveram uma obra sem qualquer compromisso com fardos históricos. Em vez de sentar no sofá e se ressentir, fizeram um livro que age. Que articula novas armas para novos desafios. Não dá pra ler O Anti-Édipo sem dar uns pulinhos de vez em quando. Nele, você passeia por um mundo barroco de jogos, armadilhas, provocações, labirintos, boutades, sacanagens, palavrões, astúcias, gracejos, sacadas, imposturas e impudicícias. Uma experiência tão sexy quanto um livro de filosofia pode proporcionar. E sem a menor vergonha. Um livro-vadia que dá a pensar, que alucina, no meio do que algo se passa e está sempre se passando. Não é para sedentários. É pra ler viajando, ainda que sem sair do lugar. Um livro que jamais apetecerá velhas Guermantes.

Erra feio quem, por desconhecimento ou ódio, atribui a Deleuze-Guattari a aura do pós-modernismo radical chic. Esta espécie de anemia que conjuga bem com o liberalismo fim-de-século, “antitotalitário”, antimilitante e multicultural. Nada menos justo. O livro não prega o respeito às diferenças, mas a agressividade como constitutiva delas. Não propõe vias ecléticas ou conciliadoras, mas a revolução. Nada aquém do que a desordem de uma revolução. Em nenhum momento, se pretende tolerante: o livro ofende sem parar o próximo e confessa o amor pelo distante. E sem deixar que se aproxime muito, pois a relação à distância mesma é que produz. Está atravessado por uma leitura intensiva e ao mesmo tempo distanciada de Marx e Freud, mas também Nietzsche, Spinoza, Kant, Artaud, para citar alguns. Possui uma teoria do estado, uma teoria da moeda, uma teoria do poder constituinte, uma psiquiatria materialista, uma filosofia da imanência, o projeto da esquizoanálise, e muito mais.

O maior protagonista do Anti-Édipo é o desejo. Sem estragar o conceito com antropocentrismos. O humano não deseja propriamente falando, como se fosse o sujeito do desejo. O desejo é que acontece nele, e o faz ser o que ele é — ou não. O desejo em mim é o mesmo desejo no lobo, na samambaia, nas rochas, na Lua, numa poesia de Pessoa ou numa canção de rock. O desejo ativa forças impessoais, não-figurativas, não-simbólicas, forças conspiratórias do Ser. Ele gera o real. Toda a realidade se cria no desejo e pelo desejo, num movimento para dentro e para fora, que se diferencia inclusive em si mesmo, uma vastidão intensiva. Por sermos tocados pelo desejo, sempre há algo em nós que nos convoca para além do que somos. O desejo nos chama de um nome estranho e nós respondemos — outros. Ele é primeiro e doa (ou rouba) tudo, sem contrapartida nem equivalência. Por isso, nenhuma pessoa, nenhuma coisa, nada basta em si próprio. Sempre se pode ativar um excedente, uma carga delirante que desborda e embaralha. Aqui, nenhum vitalismo à vista: tem desejo de vida e tem desejo de morte. Do contrário, as pessoas nunca se suicidariam.

O desejo está em tudo e tudo está nele. Tudo se cria, respira, numa variação contínua. O desejo pulsa no interior das coisas, das relações, dos afetos, das impressões, do que existe e pode existir. Uma metonímia infinita, um continuum de matéria e espírito, a contiguidade última. Daí a coextensividade de que nos falam os autores, entre homem e natureza, entre cultura e universo, que os fluxos desejantes percorrem sem distinção real. Isto não significa que homem e natureza se unam nalguma pasta cósmica e indiferenciada. Mas, sim, que cultura e meio ambiente se dobram e redobram entre si, uma essência natural do homem, uma essência humana da natureza. A natureza funciona como processo de produção, enquanto a humanidade é soprada de todas as formas, figuras e máscaras do universo. Um pan-desejo essencialmente revolucionário, só por querer como, com efeito, ele quer: infinitamente.

Mas sucede também o desejo por fascismo. Isto é real. As pessoas não foram enganadas para apoiar ditaduras. Elas quiseram. E muitas pessoas efetivamente desejaram e desejam a mão que bate, explora, que faz sofrer o outro. O problema é menos de falsa consciência do que explicar porque a servidão voluntária pode acontecer. Portanto, não é questão de denunciar ideologias, mas compreender a materialidade do funcionamento do próprio desejo. Como podemos realmente desejar aquilo que nos reduz a potência de agir e existir? A pergunta de Deleuze-Guattari não é simplesmente por que, em face do intolerável, algumas pessoas se revoltam? Mas, por que não se revoltam todas o tempo todo? Eis um materialismo à altura de Marx. Embora o desejo seja infinito movimento e não tenha finalidade intrínseca, existem maneiras de recalcá-lo. Bloquear a sua potência revolucionária, usá-lo para oprimir e submeter. Toda uma maquinaria histórico-política, com suas forças de reprodução e repressão sociais, para esclerosar os fluxos produtivos, fazê-los voltar contra si mesmos, como na vontade de poder, do dinheiro, de ser amado, em toda essa abjeção de servo. No fascismo, apaixonamo-nos não só pelo poder, mas pelo poder em nosso eu-querido, nossa vaidade de pertencer àlguma raça de senhores.

Nesse sentido, Deleuze-Guattari se propõe a realizar uma crítica da economia política do desejo. Para isso, como o melhor Marx, o Marx dos Grundrisse, eles desbravam a formação do capitalismo. Três máquinas sociais, apropriadoras das forças desejantes, são descritas no capítulo 3. A máquina primitiva dos selvagens, a máquina despótica dos bárbaros e a máquina capitalista dos civilizados. A tarefa consiste em compreender como, na materialidade, operam essas maquinarias. Por meio de qual regime de funcionamento o desejo acaba sendo conduzido à servidão voluntária, como são organizados o social e o desejo? Com fôlego de maratonista, o capítulo aborda como o capitalismo — esse Inominável — pôde ter ocorrido, a partir das formas pré-capitalistas, na contingência dos encontros e acasos que nos levaram até ele. Mas também almeja encontrar, dentro e contra a máquina capitalista, as faíscas no vento, as faíscas que anseiam pelo barril de pólvora.

Segundo o Anti-Édipo, onde está a alteridade radical ao capitalismo?

Pode-se tomar a (enorme) liberdade de trocar a palavra”‘esquizofrenia”, presente desde o subtítulo, por “comunismo”. Também com Marx, o comunismo de Deleuze-Guattari, isto é, a esquizofrenia como libertação absoluta do desejo, aparece quando o capitalismo não consegue mais impor e interiorizar os limites com que governa. A esquizofrenia é o limite derradeiro, o bólide com velocidade de escape da órbita do capital. Os fluxos esquizos a todo momento se modificam em intensidade, contornam os limites, se redefinem e se recriam, processo que os autores chamam de “desterritorialização-reterritorialização”. A esquizofrenia é o modo de funcionamento do nômade. Em vez de uma deriva perpétua, o nômade migra de acampamento em acampamento, sempre mais ali, onde o poder ainda não está à espreita, onde ele não pode ser totalmente explorado e classificado. E não há no nômade nenhum Holandês Voador, a vagar pelos mares até o fim dos tempos. O comunista precisa da terra e do sentido da terra. A desterritorialização sem reterritorialização acaba produzindo o esquizofrênico hospitalizado, uma produção do capitalismo que impede a materialidade do comunismo.

Como Marx, Deleuze e Guattari apontam no capitalismo uma contradição fundamental. Por um lado, o capital precisa fomentar a produção desejante, necessita do trabalho vivo, da produtividade geral do mundo, para continuar canalizando riqueza. Afinal, sem vampirizar a potência das pessoas, o capital — trabalho morto que é — resta improdutivo. Por outro lado, o capital não pode perder o controle das potências que explora, as mesmas que precisou fortalecer em primeiro lugar. É preciso governar o que se quer ingovernável, o desejo que quer sempre mais. É preciso inscrever os agentes de produção e as forças produtivas na maquinaria do capital, que então se atribui o mérito pela (limitada) produção de riqueza. Daí que a classe capitalista não pode deixar de impor limites, estabelecer medidas e métricas, regular os fluxos selvagens, conter o dilúvio de quereres. Esses limites podem ser tanto da ordem externa (a polícia, as leis, a propriedade, a burocracia), quanto interna (as identidades, a culpa, a interiorização da dívida). E não se acredite o capitalismo vá sucumbir às próprias contradições, como se houvesse um fim da história. Isso seria hegelianismo de esquerda. Nunca ninguém morreu de contradição. Pelo contrário, a máquina capitalista aprendeu a perseverar na crise, mediante um estado-crise que habitualmente se alimenta das contradições que provoca, das angústias e medos que suscita, das fomes e desastres que deixa acontecer.

No Anti-Édipo, não existe nenhuma proposta de contenção da produção, da circulação, do consumo. É o inverso: não há consumo suficiente! O mal do capitalismo não está em produzir demais, mas na antiprodução que dissemina. O capital é quem forja a escassez e a divisão do trabalho. O modo capitalista frustra o compartilhamento generalizado de tudo, negando a superabundância. O momento revolucionário está em extrapolar as contenções, em elevar a potência de existir até o ponto em que ela não possa mais ser axiomatizada e expropriada. Não se trata de sair do mercado mundial, de aspirar a um “fora” utópico da ordem capitalista, mas acelerar o processo. O capitalismo se conserva graças a uma infernal econometria de dívidas e cobranças, em que todos devemos mais do que podemos pagar. Ele pode ser tornado sempre mais insustentável. Esse comunismo desarranjado vive quando se desmontam os axiomas do mercado e do estado, do indivíduo e do coletivo, — tudo isso que recalca, confina, acumula, reproduz. O comunismo vive quando se rompe o que permite medir as coisas e as pessoas por seus valores, sob o critério da equivalência geral, quantificante e abstrata. Quando a máquina não suporta mais. Como um aneurisma, um mau funcionamento localizado, um excesso de todo inesperado, capaz de sobrecarregar o complexo sistema de fluxos e extração de fluxos e vazar o sangue dos poros. A revolução acontece quando os diques se rompem. Só o desejo, pensado e agido, pode orientar-nos nesse dilúvio.

De fato, é um livro marxista, militante e revolucionário.

Menos 20 é que é Mais

Por Spirito Santo*

Confesso que não curto muito esta onda de Rio +20.

Me lembro bem da euforia da Eco 92, aquela árvore de desejos em bilhetinhos tornados hipócritas pelo tempo que passou. Eu estava quase chegando de volta ao Brasil da espécie de exílio voluntário nas Oropa e nem de lá havia empolgado não. Aqueles tanques de guerra nas ruas me davam uma premonição bem ruim.

O ser humano é estúpido mesmo, sem jeito, já achava isto ali naquele tempo. Somos uma falha escrota natureza, um equívoco, uma doença, um câncer, uma praga destas aí que, mais cedo ou mais tarde nos leva para o buraco do “Deus me livre” ou os “Quintos do inferno”.

Me lembro que rolou na época a notícia chocante de um suposto estupro cometido por um líder indígena contra uma mocinha branca – adolescente ainda acho – com a ajuda da esposa do índio, um crime bárbaro e emblemático, já que a imagem do índio puro, amante da natureza, o índio ecologista era um símbolo caro aos ambientalistas em geral.

O ex-bom selvagem louco conspurcando a moça era uma imagem assustadora. Era o Macunaíma do mal, canibal real, seviciando, esculachando uma virgenzinha branca e pura, como mendigos ingratos barbarizando a Viridiana daquele filme do Luiz Buñuel.

O fato é que, à vera mesmo, de lá para cá o que fizemos foi fazer a roda do mundo andar para trás 20 anos. O planeta foi sendo carcomido por nós mesmos em dentadas e mordidas cada vez maiores e mais vorazes. Foi-nos entre devorando assim nestes… + 20 anos que chegamos até aqui, a bunda grande, mas o rosto fundo, cavado, cinzento, nesta situação deplorável, degradada pelas metástases daquele câncer diagnosticado lá atrás. Falsos gordos.

É óbvio que o que carcome o planeta é a insanidade do sistema. Nem era preciso um Karl Marx nos dizer. Quem nos consome é o capitalismo, que só existe a partir da lógica do mais e mais lucro, incessantemente, como uma máquina louca operada por um Rei Midas trágico, pirado que tocou na filha e transformou a pobre moça numa estátua morta de ouro.

Produz-se coisa não para nos dar bem estar, mas para nos obrigar a comprar mais e mais até que o vício nos mate. Claro que a saída não é encontrar novas formas de energia. Energia “limpa”, estes eufemísticos panos quentes recorrentes aí. Estamos viciados em energia. Piramos.

É por isto que sou do movimento do “Menos 20”.

Necessitar MENOS de energia, produzir MENOS, consumir MENOS, comprar e vender MENOS (principalmente, carros, estas coisas que existem energia combustível para funcionar). Crescer MENOS enfim é a única saída válida para nos livramos deste vício que está nos levando para o buraco sem fim.

Somos como qualquer crioulinho magricela destes aí da rua, com um saco preto gigante nas costas, catando latinhas na rua para vender um sacão a um real pra a comprar crack, fumar, cair numa sarjeta destas aí para, quando acordar catar mais latinhas, vender para comprar mais crack e daí, vender para comprar, vender para comprar, vender para… Assim até definhar e morrer, cair numa cova rasa destas aí, num buraco de esgoto aí qualquer, como um cachorro atropelado por uma Mac Laren de última geração.

Esta loucura pelo desenvolvimento industrial é predatória assim sim, porque cria esta necessidade absolutamente esquizofrênica de se produzir mais e mais energia, petróleo, álcool, calor, o que seja, produtos que se transformaram nesta espécie de crack aí no qual o planeta – que somos nós mesmos, lembram? – exaurido, está, talvez irremediavelmente dependente.

Estamos queimando os tacos e os móveis da casa para abastecer o fogo de churrasqueiras onde cozinhamos e comemos a nossa própria carne mal passada. Antropófagos suicidas.

É por isto que sou do movimento do “Menos 20”.

Menos… menos 20… devia ser o nosso refrão. Ao capitalismo devíamos dizer, definitivamente NÃO. Nem importa mais o que colocaríamos no lugar. Menos no nosso caso, seria Mais.

Antes que seja tarde demais.

* Spirito Santo é artista. Este texto pode ser encontrado em sua página no Facebook.

O fim da leitura?

Por Cássio Pantaleoni*, do 8Inverso, via Luis Nassif Online

Há um texto de Jorge Luis Borges, um de seus contos fantásticos, intitulado “Utopia de um homem que está cansado”, que julgo bastante apropriado para ilustrar algumas das engrenagens profundas que influenciam a nossa relação com a leitura. O conto relata o encontro inadvertido de um ancião com um homem que vive no além do futuro antevisto. Algumas das passagens do conto assombram pelo modo como profetizam o fim da leitura, naquele que é o sentido que pretendo abordar aqui.

A passagem do conto de Borges que vale o resgate diz respeito à interpretação que aquele homem do futuro efetua acerca do destino da leitura, especialmente aquela que se nutre do espírito niilista do nosso tempo (sobre isso, devo preparar em breve um artigo que se ocupará da interpretação do niilismo brasileiro). A personagem borgiana “relembra” um passado no qual “Tudo se lia para o esquecimento, porque em outras horas o apagariam outras trivialidades”.

 Pensemos o mundo atual, essa dinâmica de relações superficiais com os objetos do mundo, incluindo-se ainda o outro, esse outro que também é tido como objeto. Usualmente, nós nos relacionamos temporariamente com os objetos. Cada circunstância relacional cumpre apenas o papel de nos distrair. Até que se prove o contrário, tudo é descartável. Que importa guardar, cuidar, manter? Que importa qualquer fato ou história quando a qualquer momento podemos acessar o Google ou a Wikipedia para saber mais a seu respeito? Os fatos, as pessoas, os objetos do mundo agora só possuem valia se podemos usá-lo de algum modo para os fins que nos interessam. Parece que, enfim, como dizia Schopenhauer, todas as ordenações que fazemos são de modo que o traço trágico e sem sentido da vida não seja sentido: “A vida comum é distração”.

Como isso afeta a nossa relação com a leitura? Ora, nós precisamos de uma distinção clara aqui. Nós desde sempre compreendemos leitura como interpretação. No entanto, a interpretação pode acontecer em diferentes níveis. Eu gosto de pensar nesses níveis categorizando-os no campo da semântica e da pragmática (no sentido linguístico). Interpretar um texto à luz da semântica significa ser capaz de compreender a relação dos sinais (palavras) com as coisas. Isso promove um nível de relacionamento fundamental com a leitura, na medida em que se pode captar o texto, ou seja, ser capaz de compreendê-lo enquanto tal, e até mesmo reproduzi-lo. Nesse caso, o objeto da leitura é apenas o texto em si. Já no caso da pragmática – que trata do uso da linguagem, tendo em conta a relação entre os interlocutores e a influência do contexto –, a leitura acontece para além do texto. Esse modo de leitura leva em conta o leitor, o escritor, a época em que o texto foi escrito, a época em que o texto é lido, o arranjo dos sinais promovidos pelo escritor, o conhecimento prévio do leitor diante das construções lógico-semânticas do texto, o valor semântico dos sinais etc. Nessa perspectiva, não somente podemos reproduzi-lo como podemos recriá-lo. Assimilar um texto, assim, é ser capaz de reinventá-lo continuamente. Admito, porém: ler desse modo parece exigir demais de uma sociedade que está ávida por se distrair.

Quando falo do fim da leitura, refiro-me à indisposição de nossa geração de leitores e escritores para praticar interpretações no nível pragmático (sempre no seu viés linguístico). Essa indisposição nos remete à mera leitura semântica. É raro que alguém, nos dias de hoje, se demore sobre um texto. Isso é uma pena, pois como a personagem de Borges nos ensina: “Não importa ler, senão reler”. É no hábito da releitura de um texto bem escrito que acontece a produção de sentido. A transformação que um texto pode promover no modo de percepção do mundo só acontece quando alguém lhe dedica tempo. E dedicar tempo não significa esperar encontrar construções semânticas já conhecidas. É preciso reconstruí-las, repensá-las em suas dimensões associativas e conectivas. Para tanto, não se deveria revigorar o apreço pelo trivial. Seria preciso rejeitá-lo.

Lamentavelmente, a sociedade do Século XXI parece-me indiferente a tudo isso. Observo essa tentativa desenfreada de alcançar a comunicação integral e imediata com o outro como uma gradual destruição da capacidade criativa de escritores e leitores. Há essa crença recalcitrante de que, para alcançar os jovens leitores, é preciso se aproximar da linguagem deles. Contudo, creio que há mais aí do que uma tentativa de salvação da leitura. Acho que a mediocridade estimula a mediocridade, pois como diz o Prof. e filósofo alemão Vittorio Hösle, “A mediocridade tem medo de tudo aquilo que é melhor do que ela”.

A minha pauta para o problema da leitura, enquanto editor, escritor e filósofo, movimenta-se na recuperação de algo que estamos perdendo: o compromisso com a obra. Em meus artigos, recorro insistentemente a esse tema por se tratar de um caminho que não pretende ser alternativo, mas concomitante e necessário. Eu não acredito em valor sem esforço. Essa tendência mórbida de se compor e oferecer textos fáceis de serem absorvidos é perniciosa. Os textos devem exigir esforço de todas as partes envolvidas. E há uma razão para crer nisso: a beleza habita na sutileza, mas ela só nos abre as portas quando descobrimos, nas entranhas do texto, a composição que inclui o leitor, o escritor, os sinais e a história. Somente ali, onde a leitura alcança a perspectiva pragmática, ocorre a produção de novos sentidos e, consequentemente, a liberdade.

* Cássio Pantaleoni é Diretor Geral e Fundador da Editora 8INVERSO, Mestre em filosofia e profissional da tecnologia da informação.