Oswald de Andrade: a última entrevista

Caderno ENSAiOS publica a entrevista de Oswald de Andrade, concedida na semana que antecedeu a sua morte, em outubro de 1954.

Por Marcos Rey

Oswald de Andrade

Oswald não sorriu, mas ficou satisfeito. Ergueu-se um pouco na cadeira da qual se levantava com dores e problemas. Talvez quisesse provar-se que ainda lhe restavam energia e agressividade. O que o plano exigia, para pegar, era um Oswald irônico, destruidor e com muito recheio, igual ao dos primeiros retratos. Balançou a cabeça, aprovando. A oportunidade de escrever mais um livro, sem muito esforço, entusiasmava-o. Bastaria respondendo às perguntas. Em sua portátil, eu funcionaria como repórter e secretário. Mas logo a princípio, tornou-se evidente que a longa reportagem não poderia obedecer a um esquema rígido. Nada de ordem cronológica. Oswald não lembrava mais datas e nomes. Às perguntas mais complexas, ficava mudo ou mandava as crianças se calarem. Como andava nervoso e quase sem nenhuma capacidade de concentração! E esperava ansiosamente por telefonemas de seu filho mais velho. Problemas de dinheiro, com toda certeza. Falei do plano com mais detalhes: três entrevistas por semana, no período da manhã. Duas horas no máximo. Se se sentisse indisposto, não precisaria responder nada. Um projeto de livro sob medida para um homem que ia morrer. Dias antes eu fizera uma longa com Oswald, publicada no suplemento literário do jornal “O Tempo”. Essa e mais outra, que apareceu simultaneamente no jornal “Quincas Borba”, foram as últimas que concederia. Mas ele queria falar mais. Podia, ainda, mas era necessário que lhe arrancassem as palavras. Sua esposa Maria Antonieta D’Alckmin, sempre ao lado, naqueles dias, ajudaria a fazer as perguntas e ainda mais a formular as respostas. Era a sua memória, além de tudo. Muita coisa que Oswald contou ou respondeu, nada tinha de inédito. Já estava em outras entrevistas e também no “Um Homem Sem Profissão”, sua autobiografia inacabada. Inclusive este, um verdadeiro coquetel Molotov:

Oswald de Andrade: Conhece Antoninho de Alcântara Machado? Eu que o inventei. Nós precisávamos de ídolos. Como um movimento artístico ou político pode vingar sem nomes de proa? Saquei um artigo elogioso, exagerado. Até a família de Antoninho estranhou. Um parente dele me procurou espantado: “Mas o garoto é bom mesmo? A gente não sabia disso”. Depois de meu artigo, os outros críticos continuaram a bater palmas e o moço virou gênio.

Aquela manhã deixei a rua Caravelas quase com a certeza de que iniciaria um livro que não chegaria ao fim, pois seu único personagem tinha os dias contados. Lamentava ter começado tão tarde. Já cogitara dele ao conhecer Oswald, alguns anos antes, quando pesava vinte quilos a mais e estava sempre na linha da polêmica. Naquela ocasião, eu publicara meu primeiro romance, “Um Ato no Triângulo”, pulverizado por um crítico azedo de “O Estado de São Paulo”, e Oswald ficou furioso. Conversamos algumas horas e fizemos uma grande amizade. A estrela de autor de “O Rei da Vela” já se apagava. Caía num esquecimento atroz. A bem da verdade, apenas Helena Silveira levava seu nome às colunas dos jornais. Para a minha geração, era um homem liquidado, modernoso e quase inofensivo. Pouca gente ria de suas pilhérias, e dizia-se com frequência que era inclusive inculto. Certamente, a ofensa que mais o irritava.

Oswald de Andrade: Nasci para professor. Quero ensinar até o que não sei.

Fazia-lhe perguntas sobre suas preferências literárias, mas ele gostava mais de falar de sua própria vida. Tínhamos diante dos olhos um exemplar de “Um Homem Sem Profissão” e um rascunho do segundo volume de suas memórias, “O Salão e as Selvas”, ainda inédito.

— Não vai continuar “O Salão e as Selvas”?

Oswald de Andrade: Acho que não terei tempo. Não faz mal, pois sempre fiz autobiografia. Minha vida está contada nos meus livros, embora misturada com um pouco de ficção.

A conversa tinha sempre a Semana de Arte Moderna como ponto de saída ou de chegada. Para ele, o grande nome havia sido mesmo Mário de Andrade.

Oswald de Andrade: Somente Mário fez coisa realmente boa, Machado, Euclides e Mário foram os melhores. Até hoje me arrependo da briga que tivemos. Fui o culpado. Fiz uma piada cruel: “razões morais de andrade”. Mário não me perdoou. E hoje eu também não me perdoo.

Não havia nada de formal nessa confissão. Sentimento puro, grande mágoa e vergonha que chegou a me encabular.

Oswald de Andrade: Éramos uns ignorantes. Apenas Mário de Andrade sabia de alguma coisa. Eu era capaz de discutir, mas ele sabia criar. Enquanto experimentávamos, Mário fazia livros definitivos.

— Sim, Mário foi grande, está certo. Mas ele já está descoberto. E você? 

Oswald de Andrade: O que quer dizer?

— Acho que não está descoberto.

Oswald de Andrade: Que besteira é essa?

— Sua poesia, por exemplo, é inédita. Isto é, foi lida em 1922, mas posta de lado. Um dia surge um crítico e diz: “Oswald é um grande poeta, um dos maiores da fase modernista”. E então os outros vão concordar.

Oswald de Andrade: Isso que você está me dizendo me interessa. No fundo também me acho bom poeta. Está falando a sério? Na acha que ela tem piada demais?

— Bem, é o que penso. Prefiro ler os versos de Oswald de Andrade a ler os da geração de 1945.

Oswald de Andrade: Acredite que são poucos que me consideram poeta. Antônio Cândido gosta de meus versos. Os outros nunca leram e não gostam deles. Vingam-se de mim, com minhas próprias piadas.

— O que me diz dos novos, dos novos poetas?

Oswald de Andrade: São uns chatões. Parnasianos às avessas. Estão enterrando a Revolução Modernista. Apegam-se à forma como a turma do Bilac. Você é capaz de lembrar algum verso deles? É?

— Não.

Oswald de Andrade: Então.

— E sobre os romancistas? 

Nesse ponto, Oswald fez umas críticas virulentas contra um escritor que ele chamava de “burro blanco”. Mas confessou que sua admiração por José Lins do Rego, que julgava o maior. Fazia restrições a Jorge Amado, embora o apreciasse, e negava quase totalmente o valor de Graciliano Ramos.

Oswald de Andrade: Graciliano é muito limitado. A crítica confunde pobreza com poder de síntese.

— Mas, e o “Vidas Secas”?  

Oswald de Andrade: Nosso “tabaco road”. Ele leu Caldwell.

Era um meio de mostrar-se vivo, de sentir a vida: atacar. Mas, evidentemente, havia sempre antipatias pessoais misturadas às suas críticas. Sua aversão à poesia de Cecília Meireles era prova disso. Num artigo já dissera: “Não vou nem com a cara nem com a poesia dessa senhora”. Porém se fosse mais coerente e equilibrado não seria o Oswald de Andrade que foi e revive hoje.

Oswald de Andrade: Vou lhe dar um presente. Só tenho dois exemplares, mas um será seu. Leia e diga-me depois o que pensa.

Era “A Morta” e “O Rei da Vela”, numa edição José Olympio de 1937. Li e reli as duas peças, inclinando-me logo para “O Rei da Vela”. Lá estava Oswald quase de corpo inteiro, num de seus momentos de maior autenticidade e lucidez. Ele era mesmo um intelectual de pequenos trabalhos (não de pequeno fôlego). Saía-se melhor na poesia, no teatro, nos artigos e na prosa miúda das memórias. Não tinha a fibra nem a paciência para a ficção de longo curso. Na próxima entrevista passei a manhã na sua casa e almoçamos juntos. Maria Antonieta D’Alckmin insistia para que se alimentasse bem, mas ele engolia a comida com má vontade. Só depois do almoço, com uma espécie de timidez, indagou:

Oswald de Andrade: O que achou do meu teatro?

— “O Rei da Vela” é uma de suas melhores coisas.

Oswald de Andrade: Mas não é para ser representado, não?

— Não conheço teatro, mas creio que é perfeitamente representável. Nem entendo como ainda não foi encenada nesses 23 anos.

Oswald de Andrade: Não foi e não será nunca. Nossos homens de teatro são muito primários. Dizem-se intelectuais, mas na verdade gostam mesmo é de espetáculo. Só aceitam o que é bom quando a peça traz o atestado de sucesso de outros países. Todos eles têm o meu “O Rei da Vela” nas estantes, mas não o leram, e se o leram não entenderam e se entenderam não gostaram. Para todos, é mais uma brincadeira do Oswald. Só compreendem o social, o político, quando o cenário é um cortiço. Ainda não encontrei um deles que se entusiasmasse com a encenação de minhas peças

Oswald andava amargurado. Condenava-se por deixar uma obra de proporções reduzidas, mas sentia-se recompensado por ter sido o relações públicas da Revolução Modernista. Certa manhã, Oswald sentiu-se enclausurado. Queria sair, apesar do seu mau estado. Fomos passear em seu Fiat, dirigido por Maria Antonieta. Com que interesse e avidez olhava pela janela do carro! Quase não falou a viagem toda. Queria ver apenas. Pude observá-lo e mais uma vez tive a certeza de que sua morte estava próxima. Na volta, largou-se numa poltrona e continuou por um largo espaço no mais completo silêncio. Seus filhos menores brincavam ao seu redor, e às vezes ele os olhava como se fossem estranhos. Custou a retomar contato com minha presença.

Volto outro dia, disse-lhe. Não, vamos continuar — pediu. E repetiu fatos e opiniões que eu ouvira no mesmo dia. Tudo já se baralhava em sua mente e as dores pelo corpo aumentavam — fui muito extravagante — confessou — e estou pagando agora.

— Amanhã estará melhor.

Oswald de Andrade: Estou no fim.

Não morreria ainda. Rudá Abramo, se não me engano, levou-o a um programa de televisão onde Oswald foi entrevistado envolto numa pesada manta. Esta entrevista lhe fez um bem imenso. Ainda se lembravam dele, no dia seguinte encontrei-o mais animado e disposto a falar. Havia uma luz nova nos seus olhos e o sinal de sua melhora estava nas críticas que tornou a fazer.

Oswald de Andrade: Erra quem diz que o Brasil já possui uma grande literatura. Temos, quando muito, valores isolados. José Lins do Rego, Jorge Amado e poucos outros. Alguns tinham sido, mas não foram. Rachel de Queiroz apagou-se inteiramente, Armando Fontes não fez mais nada, e os outros felizmente não escreveram mais.

— Mas há Cornélio Pena.

Oswald de Andrade: Você lembrou bem. É outro que só será redescoberto daqui a algumas décadas. Guarde o que estou dizendo. Mário de Andrade foi dos poucos que tomaram conhecimento dele, apesar dos reparos que lhe fez.

Perguntei-lhe sobre Guimarães Rosa, que começava a ser falado. A resposta foi demorada. Tive que repetir a pergunta.

Oswald de Andrade: O problema não é enriquecer o idioma, é enriquecer o Brasil. Não é mais tempo para ficarmos brincando com a sintaxe, inventando palavras, dormindo no estilo. Isso é beletrismo, é trabalho para diletante. Em suma, não me apaixona mais. Depois, a de Guimarães não é a língua brasileira, é uma invenção sua. Talentosa sim, mas sem raízes, e  que redunda numa lamentável perda de tempo.

— Que conselho daria a um poeta e a um escritor jovem?

Oswald de Andrade: Ao poeta diria que não fizesse mais poesia. Essa poesia tipo ação entre amigos não interessa mais. Mesmo a nossa poesia participante não participa mais. É hermética, pretensiosa, incomunicável. O povo poeta teria de falar a linguagem da revolução e esquecer definitivamente as escolas, panelas e modismos artísticos. Alguém como Vinícius, se Vinícius fosse capaz de sentir a grande miséria nacional.

— E Drummond?

Oswald de Andrade: É grande, imenso, mas apenas para as elites. Não se pode esperar mais nada dele.

— Mas, a mensagem ao escritor.

Oswald de Andrade: Gostaria de crer na nova geração, mas não acredito. Todos resolveram fazer da literatura um divã de psicanalista. Voltaram-se para dentro, e infelizmente o único que se exterioriza é o “burro blanco”. A minha geração tinha ao menos o que combater, o que destruir. Esta encontrou o terreno aplainado e não consegue construir nada. Todos bem comportadinhos, uns garotões precoces, querendo ganhar prêmios. É difícil dizer entre eles o que escreve mais corretinho. Mas vá remexer no fundo, vá procurar ideias, vá auscultar as inquietações. O críticos, por sua vez, limitaram-se às observações estilísticas. E julgam também que a literatura nada tem a ver com o país onde é produzida. Como todo povo subdesenvolvido, temos a mania de ser requintados. Ninguém se conforma em não ter nascido em Paris. Provavelmente teremos também literatura requintada, mas estranha a nós, inexpressiva, fria, reacionária. Mensagem aos jovens? Besteira! Não lerão minha mensagem. É muito mais cômodo romancear os complexos e fazer estilo. Isso dá prêmio, dá crítica e até emprego público.

Na entrevista seguinte, voltou à recordações. Sempre Mário de Andrade, mas o homem que o artista. Devia ter procurado Mário na hora da morte. Arrependia-se. Mas não só disso como de outras coisas. De não ter concluído o “Marco Zero”, por exemplo. Mas não se arrependia de ter vivido. Na penúltima entrevista, falou muito das mulheres que tivera. Amara a todas igualmente, e com a mesma volubilidade. Capítulos preciosos de sua vida. Com cada uma delas aprendera alguma coisa. Na última entrevista, fui encontrá-lo totalmente arrasado. Quis retirar-me imediatamente. Mas Oswald reconheceu-me e fez sinal para que ficasse. Fiquei, porém sem fazer perguntas. Algumas visitas entravam e saiam. Velhos conhecidos iam ver o doente. Escritores, poucos. A certa altura, num intervalo das visitas Oswald perguntou-me como se chamaria o livro.

— Que livro?

Oswald de Andrade: O livro de nossas entrevistas.

— Mas está ainda no começo.

Oswald de Andrade: Sim, está no começo.

Oswald tentou sorrir.

Oswald de Andrade: Mais um livro meu que não chega ao fim.

Voltou a ficar em silêncio. Maria Antonieta D’Alckmin pediu às crianças que não fizessem barulho. Deram-lhe um remédio que tomou com má vontade.

Um antropófago de cadillac

Ele lançara a antropofagia após os dias agitados da semana, no vale-tudo para impor ideias novas. Naquela época, tinha um cadillac verde. Gordo, lustroso e cheirando loções, vivera rodeado de amigos e inimigos. Dele sempre se esperava o máximo. Sua personalidade extravagante e única preenchera toda uma época de nossas artes. Fora o autêntico Papa do Modernismo. O rotundo espadachim de 1922. As últimas palavras que me dirigiu naquela manhã demonstravam a certeza de sua perenidade. Não acreditava que pudesse ser lembrado alguns anos mais tarde. E tinha a franqueza e a sinceridade de confessá-lo.

Oswald de Andrade: Tudo que eu fiz será esquecido logo. A não ser em alguém se lembre de falar em mim de vez em quando.

— Seus livros serão mais lidos amanhã do que quando foram publicados, profetizei para confortá-lo.

Oswald de Andrade: Você é camarada.

— Os novos o seguirão.

Oswald de Andrade: Onde estão eles?

Não disse mais nada, ofegante.

— Voltarei depois de amanhã, disse. Oswald sabia e eu também que aquela era a última entrevista. No dia seguinte, à noite, eu voltava à casa de Oswald para vê-lo morto. Lembro-me de Antonio Candido, Edgard Cavalheiro, Antônio Olavo, Mário Donato, que já estavam presentes. Maria Antonieta D’Alckmin, inconsolável, falava nervosamente. Outros amigos foram chegando. O corpo foi levado para a Biblioteca Pública Municipal, naquela noite. Tarsila do Amaral aproximou-se lentamente do caixão. Ficou a olhar o cadáver com olhar sereno, amigo e prolongado. Um mudo e profundo adeus.

No dia seguinte, uma enorme fila de automóveis acompanhou-o ao cemitério. Por notável coincidência, o túmulo, ao lado do seu, todo preto, é de um tal Serafim Del Ponte Grande. Isso chamou a atenção de todos. Menotti Del Picchia falou no último momento, comovido e comovendo.

Meses mais tarde, a União Brasileira de Escritores publicava o primeiro número de uma revista toda dedicada a Amadeu Amaral. O segundo número seria sobre Oswald de Andrade. Reuni minhas entrevistas para inserir na revista. Mas foi outra iniciativa da União que morreu no nascedouro. O que fizemos foi um caderno quase completo sobre Oswald de Andrade, no  Suplemento Literário de “O Tempo”, assinado por diversos colaboradores. Parte das entrevistas entreguei a Mario da Silva Brito, que escreve a “História do Modernismo”, e que talvez encontre nessas confissões alguma informação útil. Esta não havia sido publicada até hoje. Publico-a aqui, dosada com alguma recordação.  

Publicada originalmente no “Jornal da Senzala”, em fevereiro de 1968. Republicada no Jornal a “Voz do Escritor”, em 1992.

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Veja também no Caderno ENSAiOS:

“Nenhum país passa por mais de 300 anos de escravidão impunemente” / Entrevista com Eduardo de Assis Duarte

“Precisamos democratizar o elitismo” / Entrevista com Sérgio Augusto

“A indústria cultural nunca será inteligente” / Entrevista com Silviano Santiago

A última entrevista de Guimarães Rosa

“A indústria cultural nunca será inteligente” / Entrevista com Silviano Santiago

Por João Pombo Barile, do Suplemento Literário de Minas Gerais, edição especial “Reflexões sobre o jornalismo cultural”, via Observatório da Imprensa

Nascido em 1936, o mineiro Silviano Santiago é um dos mais refinados intelectuais brasileiros. Autor de diversos livros nos mais variados gêneros – poesia, romance, conto –, é na forma do ensaio que ele se tornou uma importante referência na vida cultural e acadêmica do país, ganhando ressonância até mesmo no exterior. Recebeu em 2010, pelo conjunto da obra, o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura. Sua capacidade crítica, presente em livros como Nas malhas da letra (1989) e O Cosmopolitismo do Pobre: Crítica Literária e Crítica Cultural (2004), também pode serconferida nesta entrevista.

Quais as causas da desimportância atual dos rodapés literários no Brasil? A ideia da cultura como entretenimento tem ganhado mais e mais adeptos nas redações de jornal? O que resulta do embate do escritor com o computador? Qual a relação entre narrador pós-moderno e jornalista celebridade? Qual a importância de Jacques Derrida? A cada pergunta, Silviano responde com uma reflexão iluminada e iluminadora, mostrando ao leitor faces por vezes ocultas dessas questões.

Quando é que os rodapés literários pararam de ter importância no Brasil? É possível precisar uma data? E por que isto aconteceu?

Silviano Santiago –Tudo indica que podemos datar a perda de prestígio do rodapé. A partir da década de 1950, uma geração de críticos poderosos, formada pelas ideias modernistas, e os textos produzidos por eles e publicados em suplemento literário ou em revista, perdem gradativamente a importância nacional. Álvaro Lins serve de exemplo. Seu Jornal de crítica tem a primeira série de rodapés publicada em livro pela José Olympio no ano de 1941 e a sexta no ano de 1951. Saltam-se dez anos. A última e sétima coleção de rodapés escritos por ele e reunidos também em livro, volume ainda intitulado Jornal de crítica, sai então pelas Edições O Cruzeiro, no ano de 1963. O primeiro conjunto de textos, 1941, é dedicado a Paulo Bettencourt e ao jornal que ele dirige, Correio da Manhã. Lins agradece ao diretor e ao jornal por o volume de crônicas ter-se formado, “com a categoria de sua crítica literária oficial, numa colaboração de todas as semanas”. Havia, portanto, relação estreita entre coluna e jornal, entre coluna e linha editorial, entre colaboração e periodicidade. O sistema do rodapé era prestigioso, influente e orgânico. A relação está óbvia no próprio título das coleções de rodapés: jornal de crítica.

Outro exemplo, Brito Broca. Em prefácio a reunião de rodapés (ou de crônicas) de Brito Broca, datada de 1981, Antonio Candido esclarece: “Talvez os escritos de Brito Broca não satisfaçam aos que limitam a crítica à análise sistemática e altamente técnica dos textos”. Em leitura dos diários críticos de Sérgio Milliet, o mesmo Candido recomenda a vasta obra porque ela “pode ajudar muito a restaurar o que se poderia chamar o ato crítico, meio sufocado pelo aparato teórico contemporâneo. O ato crítico é a disposição de empenhar a personalidade, por meio da inteligência e da sensibilidade, através da interpretação das obras, vistas sobretudo como mensagem de homem a homem”.

Não é, pois, difícil detectar a causa para a perda de prestígio do rodapé. A apreciação de Candido, formado por professores brasileiros e franceses na USP, aponta, de um lado, para a ausência na produção jornalística de fundamento propiciado por conhecimento técnico (teórico?) da arte literária e, do outro lado, para a limitação no ato de julgamento pelos que rechaçam o jornal e são geradores de valores teóricos no processo de análise da arte. A atitude de Candido pode ser reforçada pelos escritos raivosos dos anos 1960 de Afrânio Coutinho, logo depois de um período de estudos nos Estados Unidos, em que se entregou à leitura do new criticism. Os escritos de Afrânio, contundentes pelo tom de desprezo pelos jornalistas culturais, foram reunidos no volume No hospital das letras (1963), onde é espezinhada a figura de Álvaro Lins e o gênero de trabalho crítico a que se dedica. Não passava de um mero crítico impressionista.

No bate-boca entre os colunistas de jornal, formados pelo saber modernista sobre as artes, e seus dois (então jovens) leitores, formados pela pós-graduação universitária, está o conflito que marca a passagem de uma postura impressionista à outra, dita técnica. Uma se sobrepõe à outra no correr da década de 1960 e a leva de vencida na década de 1970. O centro da apreciação crítica é deslocado do papel-jornal semanário para o ensaio ou a tese universitária, de circulação restrita e bem modesta. As famosas panelinhas literárias perdem o espaço buliçoso e alvissareiro dos bares e restaurantes do centro da cidade para ganhar a austeridade e a linguagem especializada do campus. Talvez haja ganho em qualidade crítica na tarefa; talvez o grande público perca o acesso às ideias abstratas expostas pelos rodapés. O crítico amador, cuja formação tinha sido feita no contato com os tratados sobre filosofia e estética e com os livros dos grandes autores de literatura, perde o prestígio e é substituído pelo especialista em literatura, que aprecia o romance e a poesia nos detalhes (close reading), a partir de rigorosos pressupostos metodológicos, tomados a uma das correntes críticas colocadas à disposição do estudioso nos bancos acadêmicos. O colunista “oficial” (a palavra é de Lins na dedicatória do livro ao Correio da Manhã e seu diretor) do suplemento literário é substituído pelo professor titular no Departamento de Letras, emérito autor de história da literatura brasileira e responsável pelos cursos de pós-graduação, onde os alunos, por sua vez, produzem trabalhos de estágio e teses de mestrado e de doutorado.

Da perspectiva da implantação do Modernismo no Brasil, outra maneira de ver o tema do rodapé seria o da análise do movimento por gêneros literários. Década de 20: dominância da poesia. Década de 30: dominância da prosa. Década de 40: dominância da crítica. O final do rodapé coincidiria com o final da forte e definitiva influência das ideias modernistas na formação do jovem escritor.

Nesse tipo de discussão, há uma terceira via que é sempre esquecida. Desde os anos 1920, na época da vanguarda modernista, os próprios artistas buscavam espaço no jornal e se faziam de críticos literários e de arautos da própria obra. É o caso de Mário de Andrade e de Manuel Bandeira, principalmente. Nos anos 1950, época em que o crítico de rodapé perde influência nacional e o crítico universitário não a alcança, é a nova vanguarda, hoje tida como “experimental”, que passa a ocupar os jornais e os suplementos. O caso mais notável é o do suplemento do Jornal do Brasil (SJDB, lançado em junho de 1956), tomado de assalto pelos neoconcretos, liderados por Mário Faustino. Os irmãos Campos e Décio Pignatari atuam de maneira semelhante em São Paulo (suplemento de O Estado de S. Paulo) e nos suplementos cariocas, tendo recebido destaque na famosa Revista do Livro, do INL, no momento em que Alexandre Eulálio era redator-chefe. Em Minas Gerais, há que citar o caso do pessoal da revista Tendência (Affonso Ávila, poeta, e Rui Mourão, romancista) e da revista Complemento. Lembre-se, ainda, que uma nova geração de escritores surgirá neste suplemento literário.

Três detalhes a serem explorados.

1.Há uma importante fusão das artes a partir da época do experimentalismo. Cinema, artes plásticas, teatro e balé cortejam a literatura. O livro Alguns, de Júlio Bressane, é revelador nessa matéria. Diz ele lá que as palavras do poema “Cidadezinha qualquer”, de Carlos Drummond, pintam um quadro de Tarsila: “Casas entre bananeiras / mulheres entre laranjeiras / pomar amor cantar”. Ao filmar Vertigo, Alfred Hitchcock escreve um poema de Mallarmé. Já Mário Reis, o Braguinha, desenha Betty Boop, criada por Max Fleischer, ao compor a marchinha “Moreninha da praia”. O filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, escreve o romance de igual nome assinado por Graciliano Ramos.

2.Há também um jornalismo cultural que pode ser lido de maneira enviesada e que, por isso, beira o gosto pela anedota. Refiro-me à correspondência trocada entre grandes escritores. De maneira retrospectiva, ali se pode ler a história subterrânea e amistosa dos vários caminhos por que passa, por exemplo, o modernismo no processo de afirmação. De certa forma, ler as cartas trocadas por Mário com seus amigos equivale à leitura atual do jornal de crítica, de Álvaro Lins, ou do diário crítico, de Sérgio Milliet.

3.No novo milênio, o jornalismo cultural é feito por profissionais formados nas Escolas de Comunicação (e não mais nas Faculdades de Letras). Está para ser analisado o estilo que os comunicólogos devem imprimir aos textos e à crítica. Já é certo que a ideia de cultura como entretenimento ganha mais e mais adeptos nas redações de jornal.

A indústria cultural brasileira, pelo menos aparentemente, foi mais inteligente do que a atual (fiquemos apenas em dois nomes: Chico Buarque e Caetano Veloso). Passados 27 anos do fim da ditadura, como você vê a produção cultural do país? É possível comparar os dois períodos? [Aqui penso, sobretudo, no seu texto “Democratização no Brasil: 1979-1981 (Cultura versus Artes)” e, se possível, gostaria que você fizesse uma pequena reavaliação do texto. O que ainda vale? O que não?]

S.S. –A indústria cultural brasileira, ou a estrangeira, nunca foi e nunca será inteligente. Ela pode ser favorecida pelos fados da radicalidade dos governos, contrários à inteligência e à cultura, e ganhar, por interposto agente – por exemplo, regimes totalitários ou regimes ditatoriais −, importância e respeito, perdendo o caráter óbvio de mero entretenimento. É claro que, depois desse empurrão inicial e no caso de os artistas conseguirem se renovar, a indústria cultural, modificada nos seus alicerces, lhes proporcionará anos de bonança e de riqueza. O artista que lá põe o pé e consegue permanecer firme, de lá nunca se arredará. Tentará encontrar palavras e argumentos que justifiquem a sua permanência.

Esse é um paradoxo difícil de ser esboçado em poucas linhas. Ele surge no Brasil e na América Latina nos anos 1960 e nos anos seguintes. Valho-me dos nomes que você cita. Chico Buarque resumiu a ambivalência na canção “Apesar de você”. Apesar dos militares no poder, a MPB funciona às mil maravilhas e tem uma plateia privilegiada e imensa. A canção anuncia a felicidade geral do povo brasileiro no dia de amanhã: “Apesar de você / Amanhã há de ser outro dia / Eu pergunto a você onde vai se esconder / Da enorme euforia? / Como vai proibir / Quando o galo insistir em cantar”. Caetano, por sua vez, resumiu-a no hit “Soy loco por ti América”: “El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo quien sabe / Antes que o dia arrebente… / El nombre del hombre es pueblo”.

Dadas as circunstâncias da ditadura militar no país, o artista alimenta e é alimentado por vasto público. A ele se dirige em termos menos artísticos e mais conteudísticos. Trata-se da estética do “bom conselho”, como a apelidei em Uma literatura nos trópicos. Quando se avulta a insatisfação popular, o artista vai canalizá-la e emprestar-lhe sentido em mensagem de tom otimista, que acaba por ser apreciada por um número maior do que o dos happy few que amam a arte. Simplificadamente enuncio o paradoxo: quando o Estado nacional passa por crise aguda e insustentável, olhos e ouvidos do povo abrem-se para a mensagem artística, seja ela pessimista (crítica) seja ela otimista (utópica). A obra torna o artista figura carismática. É ele que, enquanto intelectual (e não como artista, capaz de refletir sobre as insuficiências e os limites do próprio trabalho artístico), sustenta o próprio nome e a obra. Aliás, a mensagem do intelectual (muitas vezes engajado) nega a reflexão do artista sobre o trabalho de arte. Ela minimiza a este para ser mais direta e convincente, mais sedutora. No caso dos anos de chumbo no Brasil, as chamadas artes da imagem e da oralidade (cinema, música popular, teatro, etc.) foram as privilegiadas. O analfabetismo, ou o pouco interesse do brasileiro pela letra impressa, sempre passa a perna na expressão propriamente literária. Passa a perna no livro.

No novo milênio e no contexto do saber e da cultura, a discussão sobre o fim da ditadura torna-se menos importante que a avaliação da importância crescente da fibra ótica. Os anos de chumbo já se tornaram objeto institucional, haja vista a importância de se criar uma comissão da verdade. No novo milênio, os vários avanços tecnológicos propiciados pelo uso inteligente da fibra ótica tomam de assalto o lugar privilegiado ocupado por Gutenberg para lançar o livro impresso. A forma de estocagem do saber objetivo e da produção de arte muda, assim como mudam os meios científicos e artísticos de sua transmissão. Fiquemos com a cultura. Ela nasce hoje para ser rotulada ou como reflexões minimalistas sobre o umbigo, independente do meio que a veicula (veja o caso da poesia), ou já se apresenta a priori como mercadoria no mercado industrial (o caso do entretenimento puro e simples). Por industrial entenda-se – com a ajuda de Walter Benjamin – a exigência de um grande público que sustente financeiramente a obra e abra para o artista a possibilidade de novas criações. Os happy few não pagam o custo de uma mercadoria cultural.

Passo por cima do óbvio em indústria cultural (o cinema, a televisão, o vídeo, o CD etc.) e entro no campo literário. O embate do escritor hoje é com o computador, seja para torná-lo meio de comunicação entre pares (as várias linguagens do umbigo, expressas nas redes sociais), seja para domá-lo – com o respaldo do editor de livros – como lugar popular e barato de recepção do seu texto (os vários sistemas de leitura do e-book). Mesmo o texto jornalístico de caráter artístico sai simultaneamente no papel e na internet, veja o caso do jornalismo cultural. A folha de papel impressa não dispensa a sua reprodução na telinha. O embate do escritor de literatura pode ser também com o cinema, a televisão e o vídeo (ele será autor de scripts), ou com o CD (será autor de canções). Neste caso, sua produção textual perde o caráter de expressão artística de uma subjetividade (voltamos ao tema do umbigo) para se adequar ao esforço de uma coletividade de artistas (ou seja, ele tem de buscar uma trama que seja compatível com o desejo da maioria da equipe a ser montada e devidamente remunerada). A indústria cultural exige o entrosamento. Bem que os franceses tentaram criar o cinema de autor.

A passagem do umbigo para a mercadoria pode ser atestada pela crescente importância da figura do agente literário no diálogo da obra (indiretamente do autor) com as editoras. O autor não recebe mais o tapinha nas costas do editor, que lhe era dispensado quando entrava na José Olympio. Tampouco o editor lhe sussurra: passe no caixa para receber um vale com o adiantamento dos direitos. As relações se estabelecem por contrato assinado pelas partes.

O legítimo criador literário pode dispensar tudo, menos a folha de papel, mas isso se dá e continua a se dar por decisão individual e íntima. Há artistas que apostam, não no dia seguinte ao da ditadura (Chico Buarque e Caetano, citados por você), não no último meio artístico em pauta (os poetas experimentais e seus suportes técnicos), mas no dia seguinte ao da realização de toda uma obra. Costumo chamá-los hoje de escritores póstumos, e o melhor exemplo de vitória póstuma na atualidade brasileira é Clarice Lispector, como no dia de ontem foi Machado de Assis e, de certa forma, Oswald de Andrade. Ela confiou sem desconfiança nos textos que escreveu, confiou na arte literária em que acreditava. Foi profissional, sendo amadora. Em vida, teve um público minguado e morreu à míngua. Apenas dois dos seus inúmeros títulos ganharam edição que não fosse a primeira. Trata-se de uma aposta e, como tal, pode levar o jogador ao buraco do silêncio eterno ou ao céu do sucesso póstumo. A obra literária se assemelha ao cavalo no jogo de xadrez, que se move pelas diagonais. No tabuleiro da arte, a graça do seu movimento nada tem a ver com a linearidade do peão. Além do mais, se estiver na casa preta pode mover-se para a branca, e vice-versa.

Gostaria que você comentasse, a partir do seu conceito de narrador pós-moderno que está presente em “Nas malhas da letra”, o estranho fenômeno que acabou acontecendo nos últimos anos no jornalismo: o jornalista celebridade. A lista seria infindável (e só da Globo preencheria várias laudas). Mas voltando a fraca fria: a partir deste tipo de jornalista e pensando no seu texto do narrador pós-moderno. Hoje o jornalista é, muitas vezes, apresentado como mais importante que a notícia. Concorda?

S.S. –Política e indústria cultural têm uma exigência prioritária. Têm menos a ver com o produto pelo qual são responsáveis e mais a ver com o nome próprio que o assina. O próprio do produto e o próprio do nome são raramente discutidos e debatidos. Nome próprio é nome próprio, e vende. Políticos e atores (no sentido amplo das categorias) são figuras carismáticas. A etimologia latina da palavra carisma diz tudo. São pessoas que recebem um dom da natureza, que são favorecidos pela graça divina, e se contentam em dar asas ao dom e à graça recebidos. Não se questiona quem são eles e o que fazem, a não ser pelo viés da maledicência, que, aliás, infesta a imprensa marrom. Os paparazzi fotografam os nomes próprios.

Se não me engano foi Edgar Morin quem, na segunda metade do século 20, pôs primeiro o dedo numa nova categoria de seres humanos que estava sendo criada pelos meios de comunicação de massa – a estrela (Les stars, 1957). Seu livro foi traduzido ao português com o título de As estrelas: mito e sedução no cinema. (Glosando sua constatação sobre o jornalista, sabemos de há muito que a estrela é mais importante que o filme.) Tomado ainda pela linguagem psicanalítica, Morin percebia na base do mito um processo de projeção/identificação do espectador/leitor, que se expressava pelo desejo não satisfeito, reprimido (as calcinhas que as moçoilas ainda recentemente jogavam no palco em que Wando se apresentava é uma espécie de link libidinoso. Por cima da diferença entre palco e plateia, entre ator e espectador, no meio da multidão, estabelece-se um diálogo íntimo e intransferível do sujeito com o objeto do desejo). Em romance, De cócoras, tentei cena semelhante, valendo-me de Rita Hayworth no filme Gilda.

No entanto, por ser grande conhecedor do cinema, haja vista o clássico Le cinéma, ou l’homme imaginaire, Morin saiu pela porta da psicanálise e entrou pela janela da teoria sobre as artes do espetáculo. O processo de projeção/identificação do espectador com a estrela é usado pela indústria cultural – ele constatou − que passa a transformá-la em mercadoria cada vez mais rentável. A estrela vende tudo o que leva o nome que lhe é o próprio, seja o produto propriamente artístico, seja ainda o produto industrial tout court (refrigerante, perfume, automóvel etc.). Tudo é mercadoria, tudo é consumo no universo da estrela. Haja Rodrigo Santoro e Ivete Sangalo! De vez em quando, surge uma voz indignada, que apenas acentua o peso da lei geral. Caetano não quis que o nome Tropicália fosse dado a um edifício em construção.

No entanto, há que se fazer um esclarecimento. Se a criação da estrela pela indústria cultural é passível de discussão e de crítica, não há dúvida de que os novos meios tecnológicos de comunicação são responsáveis por novas formas de linguagem, por novos tipos de narrativa que afetam a tradicional “retórica da ficção”, para retomar a expressão de Wayne Booth. A linguagem cinematográfica veio para se espraiar para as outras linguagens artísticas.

O pós-moderno, no texto a que você se refere, publicado em Nas malhas da letra, era definido pelo fato de que o jornalista, enquanto narrador, tinha sido desprezado por Walter Benjamin como superficial, mas estava sendo valorizado por alguns escritores na época em que a linguagem geral (a língua franca, por assim dizer) do drama era tomada de empréstimo a ele e ao meio. Quem atua (no real) é sempre observado por um espectador que, por sua vez, passa a atuar como narrador (no campo da arte).

Minha hipótese de trabalho era ampla: o autor pós-moderno narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante, embora acabe por o ser. Tentava, então, deslocar o fulcro da narrativa da figura da estrela (o ator, o atuante) para a figura do espectador (o leitor, caso ele fosse crítico do ator e da ação por ele praticada – no caso de Wando, interessava-me mais quem jogava a calcinha do que o artista que levava o espectador a jogá-la). Anunciava o fim da narrativa narcisista, feita pela estrela na primeira pessoa do singular, apanágio da grande literatura europeia, e mal sabia que estava dando trela a outro tipo de narcisismo, o do espectador/leitor enquanto narrador. Devo ter caído nas malhas do meu ídolo Jorge Luis Borges. Ou nas malhas da minha prosa libertária intitulada Em liberdade. A prisão vivenciada pelo meu personagem, Graciliano Ramos, era expressa através da forma-prisão, o pastiche, de que se valia o narrador para relatar a experiência real do outro. A estética recobria a ação para dar nascimento a uma escrita ética.

Em termos mais gerais, a linguagem – seja ela a artística, ou não – é uma ferramenta. Uma ferramenta semelhante ao fogo, que nos foi doado por Prometeu. A técnica é que encaminha, de uma maneira ou de outra, o funcionamento das mãos em contato com as possibilidades do fogo e da linguagem.

Caso o leitor (no caso o espectador da cena a ser a narrada, ou seja, o narrador não-atuante, a moça que joga a calcinha para Wando, o jornalista) deixe de ser crítico (de ser ético) na própria narrativa, o problema é menos dele do que da própria crítica atuante no nosso momento histórico. Se o jornalista é mais importante que a notícia, para te glosar, há algo de podre no reino das comunicações e algo de mais podre na crítica dos espetáculos.

O aumento do número de vagas no ensino superior, com critérios populistas e não técnicos, tem causado grave problema para muitas universidades espalhadas pelo país. À boca pequena (nos bastidores) já se fala até na possibilidade do curso de Letras “caminhar” de mãos dadas com o jornalismo (espécie assim de “fusão camuflada”). O que pensa disto? E do futuro dos nossos cursos de Letras?

S.S. –O aumento de vagas em qualquer dos níveis de ensino é sempre algo de positivo. Portanto, não há que se queixar do avião como meio de transporte se ele, por decisão do governo norte-americano, despejou bombas atômicas no Japão. Há sempre que se questionar o modo como as coisas são feitas, principalmente as que na verdade deveriam ser bem feitas. A importância das medidas tomadas por Jules Ferry, ministro da educação na França ao final do século 19, atestam até hoje a favor da escola pública, leiga e republicana para todos os cidadãos, indiscriminadamente.

Nos países do Novo Mundo, em virtude de o processo de colonização ter sido feito de fora para dentro, em virtude de o processo ter sido de responsabilidade de europeus e ter comportado o extermínio da raça indígena e a escravidão africana, há injustiças históricas em relação aos descendentes dessas duas etnias. Não há dúvida de que, no tocante à educação e a outras obrigações públicas, há no Brasil grupos de cidadãos privilegiados e grupos de cidadãos não privilegiados. Como estabelecer a justiça? Como trabalhar com vistas à igualdade? Como neutralizar os preconceitos inerentes ao status quo? Essas e muitas outras questões deveriam ter sido feitas pelos homens públicos que – corretamente – procuram um sistema de compensação para beneficiar na área da educação todos os que, no correr dos séculos, foram destituídos dos seus direitos.

Guardadas as diferenças, a decisão desses homens públicos é semelhante à decisão tomada pelo presidente Truman no fatídico dia 3 de agosto. O fim da guerra com as forças do Eixo e a educação pública para todos e em todos os níveis são uma necessidade. Se essa necessidade leva o governante a mandar jogar uma bomba atômica (metafórica ou não) no já pobre e desmantelado ensino público brasileiro, é um gasto horroroso de energia, uma tragédia calamitosa e uma perda irreparável de tempo. Já vê que o que seja “técnico” e o que seja “populista” nessas matérias em que o problema fundamental é o da justiça ou da ética, e não o da mera política, é discussão por demais delicada para poucas linhas.

Problema bem distinto é o segundo proposto pela pergunta. Os já tradicionais cursos de Letras se aproximam dos novos e expansíveis cursos de Comunicação – e provavelmente se fundirão. É inegável que o avanço da tecnologia em fibra ótica na área de produção, estocagem e transmissão do saber retira o livro do pedestal onde foi colocado por séculos (a biblioteca) e é, ao mesmo tempo, algo que veio para ficar. Acima disse algumas palavras sobre isso. A questão da aproximação e fusão dos cursos tem duas pontas que deveriam ser analisadas.

Numa ponta, está uma questão propriamente orçamentária e na outra uma questão relativa à melhor e mais completa formação do aluno. Não é interessante que os cursos se dupliquem (ou seja, tenham gastos inutilmente duplicados), oferecendo conteúdos praticamente similares, nem é interessante que o aluno interessado pela questão da linguagem (artística ou não) no século 21 tenha uma formação limitada por ter optado por Letras (linguagem fonética, livro) ou, caso paralelo, por Comunicação (linguagem dos meios de comunicação de massa, mídia eletrônica).

É inegável que os cursos de Letras terão o futuro que o livro tiver. Qualquer cálculo no dia de hoje é precipitado, como o foi nos anos 1960, após a publicação do livro A galáxia de Gutenberg. A partir das ideias desenvolvidas por McLuhan os poetas concretos chegaram a “dar por encerrado o ciclo do verso” (v. Plano piloto da poesia concreta). O verso continuou firme e forte na produção dos poetas marginais e até nas (notáveis) traduções feitas pelos próprios irmãos Campos. De novo, estamos diante de matéria delicada para algumas linhas.

Nos cadernos de cultura de hoje cultura é sinônimo de entretenimento. O que pensa disto?

S.S. –Sinal dos tempos seria boa resposta, comprometida com o atual estágio mercadológico por que passa a cultura nas nações do Primeiro Mundo, que influenciam, por sua vez, todo o planeta. Veja-se uma única figura, Michael Jackson, e perceba-se a quantidade enorme de coisas que giram em torno dele internacionalmente. Da reprodução ao pastiche e à paródia. Vivemos mundialmente num regime único de arte, impossível de ser recuperado ou de ser transformado, a não ser pelo trabalho de jovens que são logo assimilados pelo regime único.

Às vezes me assusto com o fato de que há obras de arte, muitas vezes secundárias, que têm o dom de horóscopo. Prognosticam o futuro com a graça e a desenvoltura de quem entendeu para que veio, para que viemos e para onde vamos. Refiro-me, por exemplo, ao filme musical Em busca de um sonho (“Gipsy”), de 1962. (As músicas para a peça em que o filme se baseia foram escritas pelo mago Sondheim, em 1959.) O personagem da filha (Nathalie Wood) em confronto com a mãe (Rosalind Russell), uma estrela decadente e controladora, diz o que se deve dizer (metaforicamente) sobre as figuras que dominam a arte do entretenimento: “Me with no education. Me with no talent. Maman, look at me now. I am a star. Look how I live. Look at my friends…” e assim por diante. A canção, que se tornou famosa na voz de Nina Hagen ou Chita Rivera, complementa: “Let me entertain you / Let me make you smile / Let me do a few tricks / Some old and some new tricks / I’m very versatile”.

Depois dessa lição de palco, de strip-tease, de sorriso, de truques e de versatilidade não há como duvidar que a cultura passe a segundo plano. Entretenimento na cabeça.

Gostaria de uma pequena palavra sua sobre a importância que teve o trabalho que você é o principal responsável de ter tornado a obra de Derrida conhecida no Brasil. Gosta da recepção que ela tem hoje entre nós?

S.S. –Sem dúvida, Jacques Derrida é um dos grandes filósofos do século 20, e não um mero professor de filosofia. Sua obra escapa, pois, aos parâmetros de uma entrevista. Sua presença, no entanto, pode ser delineada através de uma questão capital, a meu ver, para o bom entendimento da importância da literatura a que chamei de póstuma. Não há dúvida de que, nos dias de hoje e em relação à produção literária classificada como moderna, a filosofia é a melhor articuladora de problemas e propicia melhores leituras que as ciências sociais. Nessa matéria, e há que se tirar o chapéu para o filósofo, ele trabalhou todos os grandes pensadores que o antecederam. Pense em Heidegger leitor de Hölderlin, pense em Benjamin leitor da reprodutibilidade técnica da arte, pense em Nietzsche e os helenos, pense em Bataille, Blanchot e Foucault, eles lá estão bem estudados. E tantos outros. A desconstrução é uma chave que abre todas as portas do saber humano pelo viés da história (da história da filosofia) e pelo viés da atualidade (da leitura a contrapelo). O leitor de Derrida está e estará diante de um arquivo infindável.

Daí a dificuldade em tomar assento na plateia de Derrida e em abrir a boca. Aliás, o próprio ato de proferir palavras oralmente tem pouco valor para ele (quem o conheceu pessoalmente sabe que ele nunca falava “de improviso”; suas aulas, palestras e conferências eram sempre “lidas”). De uma perspectiva populista e/ou demagógica, esse é o primeiro grande obstáculo que o leitor de Derrida tem de enfrentar. Enfrentar a linguagem como letra morta, ou seja, como letra que para poder existir enquanto tal teve de assassinar o pai (o locutor). O texto é como um filho assassino e bastardo, que caminha pelo mundo, de um lado para o outro, de uma época para a outra, à procura de quem possa lhe dar significado − o leitor.

Platão nos fez acreditar que a verdade seria expressa pelo locutor presente, junto à sua fala. Responsável por ela, ele seria sensível aos comentários do outro, ou seja, seria capaz de corrigir, ou de rasurar a própria fala no próprio momento em que se expressava. No entanto, é a verdade das ideias de Platão que está hoje impressa sob a forma de diálogo. O diálogo é apenas uma forma, uma forma fonocêntrica (defende a expressão oral) e etnocêntrica (defende a tradição ocidental) de saber, e não traduz a complexidade do processo de busca da verdade. Há que desconstruir o fonocentrismo que está na base do pensamento socrático, há que desconstruir o etnocentrismo que é fundamento do pensamento europeu. Descontruídos, chegamos à conclusão de que a verdade está sendo dada pela leitura de ocidentais e não-ocidentais, pela leitura do diálogo socrático, pela leitura do texto. Um lado do mar Mediterrâneo é europeu, mas o outro é africano.

É o próprio texto platônico, mostrou-nos Derrida em A farmácia de Platão, que se articula pelas ambivalências de sentido. Estas são apreendidas numa leitura cuidadosa dos rigorosos e frágeis esquemas linguísticos de que se serve o filósofo – e qualquer escritor para montar o texto que deverá nos levar ao conhecimento da verdade. Estamos sempre diante de diferenças. A diferença organiza o pensar, daí que Derrida desclassifique o tradicional conceito, para nos propor o pensamento a partir de palavras escritas, cujo sentido é indecidível (indécidable). O leitor, como figura, é um decisor, mas no seu texto de decisor, haverá também indecidíveis, que só serão apreendidos por outro e futuro decisor.

***

[João Pombo Barile é jornalista e diretor do SLMG]

Villa-Lobos

Por Theotonio de Paiva

A propósito dos 125 anos de nascimento do maestro e compositor Villa-Lobos, impressiona aquilo que parte importante da geração modernista, da qual ele fez parte ativa, conseguiu estabelecer novos parâmetros de brasilidade, de entendimento da alma nacional, daquele sentimento mesmo que o homem brasileiro da primeira metade do século carregava no bolso do paletó, ou sob a proteção da cabeça, debaixo de um chapéu de palha.

Em síntese, havia uma espécie de cortejar nominalmente aquilo que seria uma das mais significativas possibilidades que se avizinhava à época: conhecer o Brasil profundo. Uma nação enigmática, de difícil discernimento. Tanto assim que Mário de Andrade a denominará de “entidade nacional”.

Concretamente, naquela época, dá-se uma espécie de ruptura com a tradição. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, aqueles homens reelaboram essa mesma tradição em bases infinitamente diversas. Texturas muito mais sensíveis distanciam aqueles artistas e intelectuais dos predicados românticos e da salvaguarda do pensamento oficial. E isso obviamente teve um preço.

Embora para as gerações subsequentes seja um tanto difícil deslindar o esforço daquela empreitada – parte do que nos ocorre é essencialmente um exercício de imaginação – há naquele componente de ruptura um risco notável.

No caso do compositor Villa-Lobos, esse risco o predispôs a criar um novo estágio de consciência do ser brasileiro, na dialética do nacional e universal. Fica posto o embate, com rara dignidade, do que é realizar arte num país tão violentamente contraditório, e, ao mesmo tempo, pleno de possibilidades.

Há naquelas investidas, e em Villa isso é decisivo, a ideia da criação de um projeto cultural impactante, de grande esforço artístico e intelectual. Neste sentido, parece acenar com um gesto que poderíamos simbolizar como de uma espécie de rigor para com a obra de arte e, por conseguinte, em direção ao pensamento elaborado e forjado no seu tempo presente.

Lembro de uma máxima do mestre Antunes Filho que se aplica muitíssimo bem a uma evocação dessa ordem, ao procurar compreender, a propósito, a própria natureza subversiva da cultura, e o seu desprezo realizado pela maioria dos governantes. Nessa linha, o encenador paulista se reencontra na tese de que fazer “contracultura no Brasil é ser rigoroso, porque vivemos a estética da besteira no dia-a-dia. Portanto, a contracultura aqui é a cultura, o rigor, a disciplina”.

De certo modo, a produção musical de Villa-Lobos, os seus saltos para uma nova adequação da estética brasileira, e consequentemente do homem brasileiro, proporcionaram ao maestro uma aura especial. Inquestionavelmente, trata-se de um dos artistas que melhor soube decifrar aquela tensão posta pela nossa modernidade tardia, entre a tradição popular, os encantamentos da arte erudita e os desafios da vanguarda, a ponto de nos rendermos nessa homenagem. Viva Villa!

Este texto foi publicado, com pequenas diferenças, em 06.07.2009, no Portal Luis Nassif.

Pós-Walds

Oswald de Andrade (sentado no chão), foi um dos líderes da Semana de 22

Oswald de Andrade, sentado no chão, foi um dos líderes da Semana de 22

Em artigo publicado n’O Estado de São Paulo, o poeta Augusto de Campos revê a extraordinária herança cultural do escritor Oswald de Andrade, o homenageado deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty.

Por Augusto de Campos

Conheci “Oswáld” (não “Ôswald”) em 1949, na companhia de Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Eu tinha 18 anos, Décio, o mais velho, 22. Fomos apresentados a Oswald por Mário da Silva Brito, que nos levou ao apartamento do poeta. Estava ainda muito ativo, defendendo o Modernismo e combatendo a “geração de 45”, em conferências e desaforadas crônicas (Telefonemas), e às vezes aos risos e berros no Clube de Poesia, com o costumeiro sarcasmo e muitos trocadilhos.

Mesmo reconhecido como o último representante radical dos modernistas (Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo eram biacadêmicos), não era levado muito a sério nem pelos poetas dominantes nem pelos “chato-boys” da revista Clima, que chegou a botar fé no oposto da poesia oswaldiana, a oratória engajada de Rossine Camargo Guarnieri… Mas ele se dava com todos. Temido polemista, porém sociável e ridente, por certo contava que suas gozações públicas, de ferinas a ferozes, fossem perdoadas pelos inimigos com os quais facilmente se reconciliava sem propriamente se emendar.

Em memorável comunicação ao Congresso de Poesia, realizado em São Paulo, em 1948, tribuna da “geração de 45”, Patrícia Galvão, solidária com Oswald, o descreve “de facho em riste, bancando o Trotsky, em solilóquio com a revolução permanente”. Em 1982, eu trouxe à tona esse importante documento, desconhecido das novas gerações e de nós mesmos, no livro Pagu: Vida-Obra.

Contemporâneo do grupo de 45, porém marginalizado por sua paixão pelos modernistas, Mário da Silva Brito era amigo íntimo de Oswald. Nenhum de nós, os “novíssimos”, tinha livro publicado, mas as revistas e jornais literários já haviam estampado alguns dos nossos poemas. Oswald se entusiasmou tanto com a nossa visita que deu a cada um de nós, autografado, um volume dos poucos que ainda tinha de Poesias Reunidas O. Andrade (1945), edição especial de largo formato ilustrada por Tarsila, Segall e por ele (tiragem: 200 cópias). Mais adiante, presenteou-nos com um volume da esgotadíssima edição de Serafim Ponte Grande (1933) com a dedicatória: “aos Irmãos Campos (Haroldo e Augusto) – firma de poesia”. Guardo dele uma impressão de vulnerabilidade e solidão, sob a máscara galhofeira. Magoado com a ambígua amizade e o mal disfarçado desdém da intelectualidade da hora, apostava nos jovens. Depois nos encontramos várias vezes em reuniões em sua casa ou na de amigos comuns. Quando completou 60 anos, em 1950, época em que foram publicados O Auto do Possesso, de Haroldo, e O Carrossel, de Décio, saudamos Oswald em documento público, “Telefonema a Oswald de Andrade”, assinado por uns poucos escritores, no qual o poeta era apontado como “o mais jovem de todos nós”. Décio nos representou no famoso “banquete antropofágico” em homenagem ao poeta “sexappealgenário”, no Automóvel Clube.

Como que pressentindo que não o veria mais, Décio quis visitá-lo antes de partir em viagem para a Europa, marcada para 1954. Acompanhei-o nessa que foi a derradeira vez em que vi Oswald, já muito doente, em agosto de 1953. Recebeu-nos afundado numa poltrona, com a cabeça escalpelada encoberta por uma boina, e sempre assistido por sua amorosa esposa, Maria Antonieta d’Alkimin. Na ocasião, mostrei-lhe alguns dos poemas coloridos da série Poetamenos; Décio levou-lhe alguns textos inéditos. Revelou curiosidade e satisfação pelo nosso experimentalismo. Foi esse encontro que certamente inspirou a simpática menção que nos fez – “meninos que pesquisam” – na crônica Gente do Sul (que leva a rubrica dos seus “telefonemas”), estampada em 25 de agosto no Diário de S. Paulo. Em março de 1954, no convite impresso do espetáculo inaugural do Teatro de Cartilha, criado em Osasco por Décio Pignatari, este chegou a anunciar uma apresentação da peça O Rei da Vela (de que ninguém falava então), projeto interrompido pela sua viagem à Europa.

Oswald não sobreviveu para assistir à sua reabilitação pelos jovens em que apostara os escassos volumes de suas edições de minguada tiragem. Pouco se falava nele quando foi ressuscitado nos manifestos da poesia concreta, em 1956. Seus livros mofavam nos sebos. Numa entrevista que demos, Haroldo e eu, para o Jornal Popular, de São Paulo, em 22 de dezembro de 1956, proclamávamos: “Não é hábito, no Brasil, a obra de invenção. É verdade que, com o Modernismo, a literatura brasileira logrou atingir uma certa autonomia de voz, que, porém, acabou cedendo a toda sorte de apaziguamentos e diluições. Contra a reação sufocante, lutou quase sozinha a obra de Oswald de Andrade, que sofre, de há muito, um injusto e caviloso processo de olvido sob a pecha de ‘clownismo’ futurista. Na realidade, seus poemas (Poesias Reunidas O. Andrade), seus romances-invenções Serafim Ponte Grande e Memórias Sentimentais de João Miramar (de tiragens há muito esgotadas, para não falar de seus trabalhos esparsos ou inéditos), que ainda hoje, por sua inexorável ousadia, continuam a apavorar os editores, são uma raridade no desolado panorama artístico brasileiro. A violenta compressão a que Oswald submete o poema, atingindo sínteses diretas, propõe um problema de funcionalidade orgânica que causa espécie em confronto com o vício retórico nacional, a que não se furtaram, em derramamentos piegas, os próprios modernistas e que anula boa parte da obra de um Mário de Andrade, por exemplo.”

Hoje, como disse Décio Pignatari – o Oswald magro do Concretismo -, a Antropofagia “virou carne de vaca”… e a diluição e o consumo se encarregaram de banalizar o tema, que no entanto é mais sério do que parece. Terra de muitos estudantes e estudiosos de filosofia mas de poucos filósofos, o Brasil tem em Oswald um dos raros intelectuais a que esse termo, em sua acepção integral, pode ser aplicado sem constrangimento. Embora os seus escritos continuem a ser rejeitados pelo mundo acadêmico, evidenciam-no como um solitário pensador original. Suas provocações não ortodoxas, expressas em manifestos combativos, entrevistas e textos diversos, culminam com as de recorte mais normatizado, A Marcha das Utopias e A Crise da Filosofia Messiânica, tese com a qual se inscreveu em concurso para a cátedra de Filosofia da USP, em 1950, sem que lhe fosse dado assumi-la. Oswald não enrolava o pensamento em cipoais argumentativos. Era sintético e direto. Tinha o “defeito” literário de escrever bem. Mas não se apresentava como um meritório difusor ou questionador de doutrinas. Seu coquetel filosófico, temperado com novos fermentos dialéticos, continha ideias inovadoras. Também aqui não podia ser facilmente compreendido.

À medida que a sua obra, em parte ainda inédita, vai sendo republicada e até revelada, mais nos surpreende a atualidade de suas intervenções, apesar dos equívocos pontuais de que ninguém escapa. Oswald não era nenhum santo, nem queria ser canonizado. Fazia suas médias e às vezes decepcionava aos jovens “franciscanos” (apud Nelson Rodrigues) que éramos nós. O livro Estética e Política, organizado por Maria Eugenia Boaventura (Editora Globo, 1992), revelou-nos afinal o texto da conferência “Novas Dimensões da Poesia”, que o poeta proferiu em 19 de maio de 1949 no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ali Oswald repete o inaceitável elogio que vinha fazendo ao ex-adversário Cassiano Ricardo, que ele insistia agora em considerar “o maior poeta brasileiro”, tendo chegado em outros textos a compará-lo até a Fernando Pessoa. Em compensação exalta Gôngora e Mallarmé, em claro desafio ao preconceito da crítica literária que chamava de “sociográfica”. A certa altura tem esta bela colocação, que continua válida em nossa era “pós-utópica”: “A poesia de hoje balança entre o mistério restaurado da vida e as estrelas quietas, entre a face kierkegaardiana do desespero, o deliquial e o perplexo. E mostra esse neutro avesso da utopia a que o homem se habituou, depois da frustração dos seus messianismos. Mas a revolta não acabou. E ainda se pergunta: Como cantar com a boca cheia de areia?” Sem ter ouvido as palavras do poeta, eu as ecoaria com a “areia areia arena céu e areia” do meu poema O Rei Menos o Reino, publicado no caderno literário do Jornal de São Paulo em 9 de abril de 1950. Oswald ainda reflete sobre “o caminho percorrido”: “Fizemos até os primeiros passos na direção de uma geometria do verso.” E acentua: “poesia é tudo: jogo, raiva, geometria, assombro, maldição e pesadelo, mas nunca cartola, diploma e beca.” Menciona, por fim, Kierkegaard, Nietzsche, Joyce e Lautréamont. Conclui com estas palavras: “Mallarmé chamou de poema em prosa o maior esforço versificado do século XIX: Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard.”

Não basta Oswald ter “torcido o pescoço à eloquência” dos versos que nunca fez, criado não o poema-piada – como parecia à maioria dos seus contemporâneos -, mas o poema-palavra ou palavraprimal (amor/humor), arquitetado os seus romances-invenção, pensado, na síntese do matrianárquico “bárbaro-tecnizado”, a última utopia para a civilização ideal que imaginara, e lançado dois manifestos que ainda são a suma e o sumo do ideário poético da modernidade. Tudo isso que nos fez colocá-lo entre os nossos mentores. Sabemos agora que ele nos antecipou também na reavaliação do “lance de dados” mallarmaico, que seria tido por nós como o limiar da poesia do nosso tempo e era renegado na época até pela crítica francesa. E que ele, positivamente, nunca teve medo da palavra “geometria”.

Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor, entre outros, de Viva Vaia (Ateliê), Não e Despoesia (ambos publicados pela Perspectiva) e do recém-lançado Poemas, de E.E. Cummings (Editora da Unicamp).