Villa-Lobos

Por Theotonio de Paiva

A propósito dos 125 anos de nascimento do maestro e compositor Villa-Lobos, impressiona aquilo que parte importante da geração modernista, da qual ele fez parte ativa, conseguiu estabelecer novos parâmetros de brasilidade, de entendimento da alma nacional, daquele sentimento mesmo que o homem brasileiro da primeira metade do século carregava no bolso do paletó, ou sob a proteção da cabeça, debaixo de um chapéu de palha.

Em síntese, havia uma espécie de cortejar nominalmente aquilo que seria uma das mais significativas possibilidades que se avizinhava à época: conhecer o Brasil profundo. Uma nação enigmática, de difícil discernimento. Tanto assim que Mário de Andrade a denominará de “entidade nacional”.

Concretamente, naquela época, dá-se uma espécie de ruptura com a tradição. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, aqueles homens reelaboram essa mesma tradição em bases infinitamente diversas. Texturas muito mais sensíveis distanciam aqueles artistas e intelectuais dos predicados românticos e da salvaguarda do pensamento oficial. E isso obviamente teve um preço.

Embora para as gerações subsequentes seja um tanto difícil deslindar o esforço daquela empreitada – parte do que nos ocorre é essencialmente um exercício de imaginação – há naquele componente de ruptura um risco notável.

No caso do compositor Villa-Lobos, esse risco o predispôs a criar um novo estágio de consciência do ser brasileiro, na dialética do nacional e universal. Fica posto o embate, com rara dignidade, do que é realizar arte num país tão violentamente contraditório, e, ao mesmo tempo, pleno de possibilidades.

Há naquelas investidas, e em Villa isso é decisivo, a ideia da criação de um projeto cultural impactante, de grande esforço artístico e intelectual. Neste sentido, parece acenar com um gesto que poderíamos simbolizar como de uma espécie de rigor para com a obra de arte e, por conseguinte, em direção ao pensamento elaborado e forjado no seu tempo presente.

Lembro de uma máxima do mestre Antunes Filho que se aplica muitíssimo bem a uma evocação dessa ordem, ao procurar compreender, a propósito, a própria natureza subversiva da cultura, e o seu desprezo realizado pela maioria dos governantes. Nessa linha, o encenador paulista se reencontra na tese de que fazer “contracultura no Brasil é ser rigoroso, porque vivemos a estética da besteira no dia-a-dia. Portanto, a contracultura aqui é a cultura, o rigor, a disciplina”.

De certo modo, a produção musical de Villa-Lobos, os seus saltos para uma nova adequação da estética brasileira, e consequentemente do homem brasileiro, proporcionaram ao maestro uma aura especial. Inquestionavelmente, trata-se de um dos artistas que melhor soube decifrar aquela tensão posta pela nossa modernidade tardia, entre a tradição popular, os encantamentos da arte erudita e os desafios da vanguarda, a ponto de nos rendermos nessa homenagem. Viva Villa!

Este texto foi publicado, com pequenas diferenças, em 06.07.2009, no Portal Luis Nassif.

A falta da voz brasileira na Globo

Por Urariano Motta*, do Direto da Redação, via Luis Nassif Online

Recife (PE) – Mais de uma vez eu já havia notado que os apresentadores de telejornalismo têm uma língua diferente da falada no Brasil. Mas a coisa se tornou mais séria quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os apresentadores locais, de cada região, também falavam uma outra língua. O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo. Olhem Clique aqui

Na ocasião, o repórter, o apresentador, as chamadas, somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Ligo para a redação da Globo Nordeste. Um jornalista me atende. Falo, na minha forma errada de falar, como aprenderia depois:

– Amigo, por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de bibiribe?

– Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bebê.

– Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa?

– Não, senhor. O certo quem nos ensina é uma fonoaudióloga.

Ah, bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga como autoridade da língua portuguesa é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio. Ou seja, assim me falou a pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo… Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice-Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional: “sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade”.

Foi nesta época, que Beuttenmüller, começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria do Rio de Janeiro”. (Destaque meu.)

Mas isso é a morte da língua. É um extermínio das falas regionais, na voz dos repórteres e apresentadores. Os falares diversos, certos/errados aos quais Manuel Bandeira já se referia no verso “Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”,  ganha aqui um status de anulação da identidade, em que os apresentadores nativos se envergonham da própria fala. Assim, repórteres locais, “nativos”, se referem ao pequi do Ceará como “pê-qui”, enquanto os agricultores respondem com um piqui.

De um modo geral, as vogais abertas, uma característica do Nordeste, passaram a se pronunciar fechadas: nosso é, de “E”, virou ê. E defunto (difunto, em nossa fala “errada”) se transformou em dê-funto. Coração não é mais córa-ção, é côra-ção. Olinda, que o prefeito da cidade e todo olindense chamam de Ó-linda, nos telejornais virou Ô-linda. Diabo, falar Ó-linda é histórico, desde Duarte Coelho. Coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda, quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial,  que nem é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste. É uma outra coisa, um ridículo sem fim, tão risível quanto os nordestinos de telenovela, com os sotaques caricaturais em tipos de físicos europeus.

Esse ar “civilizado”de apresentadores regionais mereceria um Molière. Enunciam, sempre sob orientação do fonoaudiólogo, “mê-ninô”, “bô-necÔ”, enquanto o povo, na história viva da língua, continua com miní-nu e buneco.  O que antes era uma transformação do sotaque, pois na telinha da sala os apresentadores falariam o português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável ignorância, eles passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da região.

O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como Pêr-nambuco.  E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, amigos, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

*Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Ainda sobre os riscos da desindustrialização

Paulo Kliass, na Carta Maior, via Viomundo

Enquanto alguns preferem ficar comemorando as notícias de que PIB brasileiro poderia ter ultrapassado o da Inglaterra, acho que deveríamos todos é estar mais preocupados com a continuidade do processo de desindustrialização de nossa economia.

A situação não é para brincadeira, pois o quadro é trágico! A cada dia surgem mais notícias e avaliações relativas à perda relativa de competitividade da indústria brasileira. São muitas as evidências de que as decisões de ampliação do investimento produtivo tendem a preferir a opção por território estrangeiro para a instalação industrial e apenas o destino das mercadorias para simples consumo em nossas terras.

Os casos mais simbólicos são políticas empresariais como as da mega corporação Vale, que exporta minério de ferro bruto extraído de nosso subsolo sob concessão da União e importa os produtos manufaturados para seu próprio uso. É o que ocorre com os trilhos comprados para suas ferrovias ou os super cargueiros encomendados para transporte de minérios– na grande maioria dos casos importados da China. Muitos setores festejam os impressionantes números obtidos com as exportações de pindorama, que contabilizaram quase uma centena de bilhões de dólares em nossa balança comercial no ano que se encerrou. Mas o conjunto de nosso País lamenta, de outro lado, os igualmente expressivos valores das importações. Com o péssimo agravante de que vendemos produto primário barato e compramos produtos manufaturados de maior valor agregado. Até parece que os responsáveis pela nossa política econômica e industrial esqueceram tudo o que devem ter lido e estudado sobre as chamadas trocas desiguais no capitalismo, em especial os prejuízos causados aos países de menor grau de industrialização.

Agora, recentemente, foram divulgadas informações que são ainda mais carregadas de expressivo simbolismo. Ao longo de 2011, essa mesma lógica chegou a atingir um setor que durante muito tempo foi considerado como “genuinamente brasileiro”. No ano passado, o Brasil mais importou do que exportou café moído! Ou seja, continuamos com a velha e burra política de vender café verde em grãos, de baixa qualidade, sem ter conseguido dar um salto à frente nos processos crescentes de café torrado e moído de maior qualidade, de acordo com exigência do mercado internacional. E pior: passamos a importar esse tipo de café manufaturado e com maior valor agregado do resto do mundo, em volumes mais altos do que vendemos lá fora. Uma loucura! No concreto, isso significa redução de investimento em novas plantas industriais aqui dentro, com a conseqüente geração de emprego e renda lá fora.

Apesar de ser um processo complexo e de múltiplas causas, há dois fatores que são os mais determinantes na conjuntura atual para explicar a desindustrialização. São eles a nossa conhecida duplinha dinâmica: câmbio e juros. A questão é tão evidente que chega mesmo a causar espanto a forma irresponsável como os diversos governos têm enfrentado esse importante problema.

Sai ano e entra ano, mas o quando não muda em sua essência: continuamos sérios e obstinados em manter a condição de líder mundial no quesito dos juros. Com a taxa oficial lá nas alturas, a lógica da rentabilidade do capital prioriza a opção pela aplicação no mercado financeiro e não na atividade produtiva. Assim, a política monetária de SELIC elevada causa um duplo transtorno em nossa economia. De um lado, sacrifica de forma absurda o orçamento do Estado com gastos puramente financeiros e limita as despesas na área social e de investimento estratégico do Estado. De outro lado, as altas taxas de juros inibem os novos investimentos nas áreas da produção e nos serviços.

Mas aqui surge uma outra conseqüência negativa da SELIC elevada. Ela exerce uma atração continuada e apetitosa sobre o capital financeiro internacional – em especial sobre os recursos de natureza puramente especulativa. Aquele tipo de dinheiro que vai e vem ao sabor dos riscos e dos ganhos, sem nenhum compromisso com a geração de renda e emprego no país em que está aportando no momento. E, por incrível que possa parecer para muitos, nossa política econômica se dirige para satisfazer exatamente os desejos do investidor de tal perfil. O resultado desse tipo de movimento é que nossa praça fica inundada de recursos externos de curtíssimo prazo – aliás, fator potencialmente gerador de elevada instabilidade macroeconômica. A qualquer susto ou boato, o chamado “efeito manada” da massa especulativa pode causar sérios problemas de desequilíbrio em nossas contas externas. Isso porque as nossas regras tupiniquins, ao contrário do que ocorre na maioria dos países industrializados, não prevêem nenhum tipo de controle sobre entrada e saída desse capital, nem mesmo exige um tempo mínimo de permanência como contrapartida de poder usufruir das benesses do ganho financeiro fácil patrocinado por nosso setor público.

Essa pressão derivada do ingresso de dólares e outras moedas estrangeiras provoca um desequilíbrio importante em nosso mercado de câmbio. Mas um dos pilares básicos da estabilidade herdada desde os tempos do Plano Real é o pressuposto da “liberdade cambial”. Assim, o receio – quase um temor – em contrariar as vontades dos que mandam no mercado financeiro faz com que o setor de câmbio seja considerado “imexível” pelo governo. O resultado é uma sobrevalorização absolutamente artificial de nossa taxa de câmbio. Ao longo da semana atual ela está na faixa de R$1,80/US$. É verdade que já melhorou um pouco em relação aos níveis de 2010. Mas estamos ainda muito longe de uma taxa que possa se considerar mais realista, que muitos analistas econômicos situam na faixa de R$ 2,50.

Com esse poder de compra de nossa moeda no mercado internacional, as importações são muito estimuladas. Desde as compras das famílias animadas da classe média que fazem a farra nas terras da Disney até, e principalmente, as empresas que importam a preços artificialmente baixos os produtos finais e intermediários fabricados no exterior, em especial na China. O contraponto desse processo de valorização de nossa moeda é o encarecimento relativo dos produtos brasileiros manufaturados em sua busca por mercados para exportação. Ficamos, portanto, mais uma vez relegados ao nosso papel de agente secundário nessa divisão internacional do trabalho da modernidade pós-colonial. Como sempre, mais uma vez perdendo o bonde da História. E ainda tem gente que se vangloria, enche mesmo a boca, na hora de falar dessa nossa triste especialização em exportação de produtos primários, as famosas “commodities”.

O que mais chama a atenção na passividade de nossos responsáveis pela política econômica é que as medidas a serem adotadas são até singelas, se pensarmos pela lógica da complexidade do funcionamento de outras variáveis da economia. Basta reduzir a atratividade do mercado financeiro brasileiro na comparação com as demais alternativas existentes no mercado internacional.

Caso o governo estabeleça controles mínimos de entrada e saída dos recursos especulativos e imponha uma quarentena para um tempo mínimo de permanência, uma parcela da elevada atração desaparecerá. Por outro, e talvez mais importante, trata-se de promover uma redução significativa na taxa SELIC. Com isso, haverá tendência à diminuição do ingresso de capital especulativo. E o novo equilíbrio do mercado de câmbio promoverá a necessária desvalorização em nossa moeda. Em resumo, nossa taxa de câmbio tenderá a refletir de forma mais realista nossa situação de contas externas.

Algumas pessoas poderão estar se perguntando se por acaso essa fuga de capitais não seria prejudicial ao Brasil. De forma alguma! E veja que não se trata aqui de pregar nenhuma volta ao modelo passado das autarquias isoladas, países isolados uns dos outros. De jeito nenhum! O que se pretende é apenas que os fluxos de capitais entre o Brasil e o resto do mundo privilegiem os investimentos produtivos. O capital puramente especulativo não oferece nenhuma vantagem ao nosso País. Sua fuga, pelo contrário, é muito bem vinda e poderia até mesmo ser festejada. Que se aventurem a sugar o rentismo parasitário alhures, de outras sociedades.

Nós, inclusive, já oferecemos até hoje muito mais do que podíamos e devíamos. As demais características da sociedade e da economia brasileiras é que devem ser os elementos determinantes para os investimentos que desejem para cá se dirigir. Um mercado interno consumidor em expansão, com boas perspectivas de retorno de tais aplicações no curto, no médio e no longo prazos. Uma Nação com tradição de paz, sem os conflitos militares que caracterizam boa parte dos países do mundo. Um país em condições de exercer importante liderança no processo de aprofundamento da integração regional, no âmbito da América do Sul. Enfim, boas razões não faltam.

Uma vez resolvida essa artificialidade na definição da taxa de câmbio, a tendência é de haver uma reacomodação dos fluxos de importação e exportação. As importações sairão mais caras e perderão força por conta dos chamados “preços relativos”. Já as exportações de produtos industrializados poderão ser estimuladas. No cômputo final, se o governo der demonstrações que as medidas virão para ficar, estarão dadas as condições objetivas para a reversão do processo de desindustrialização. Como sempre, o que falta é apenas a vontade política! Com um pouco também, é claro, de coragem política para contrariar interesses poderosos.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.