Rio+20: o roteiro de Ladislau Dowbor

Por Ladislau Dowbor*, no Outras Palavras

Pontos de referência

Primeiro, se você se sente confuso relativamente à Rio+20, bem vindo ao clube. O desafio, no entanto, é simples. Por um lado, agravam-se os dramas do aquecimento global, da liquidação das florestas originais, da destruição da vida nos mares, da perda de solo agrícola, da redução da biodiversidade, do esgotamento de recursos naturais críticos. Por outro lado, temos um bilhão de pessoas que passam fome, destas 180 milhões são crianças, e destas entre 10 e 11 milhões morrem de inanição ou de não acesso a uma coisa tão prosaica como água limpa, ou seja, 30 mil por dia, dez torres gêmeas em termos de mortes por dia. Morrem no silêncio da pobreza, não rendem o mesmo espetáculo para a mídia. Não estamos matando, deixamos morrer. Um terço da humanidade ainda cozinha com lenha. Já morreram 25 milhões de Aids, enquanto discutimos o valor das patentes. Isto num planeta que graças a tantas tecnologias é simplesmente farto. Produzimos no mundo 2 bilhões de toneladas só de grãos, o que equivale a 800 gramas por pessoa e por dia, sem falar de outros alimentos. Se dividirmos os 63 trilhões de dólares do PIB mundial pelos 7 bilhões de habitantes, são 5400 reais por mês por família de quatro pessoas. Com o que produzimos poderíamos todos viver com paz e dignidade. E temos 737 grupos corporativos mundiais, 75% deles de intermediação financeira, que controlam 80% do sistema corporativo mundial, o que explica o número de bilionários. No conjunto, buscam maximizar os lucros, ainda que o planeta entre em crise financeira e produtiva generalizada. A simplicidade do desafio, é que estamos acabando com o planeta para o benefício de uma minoria. Houston, we have a problem.

Em outros termos, há uma convergência de processos críticos, o ambiental, o social e o econômico. E o denominador comum dos três processos, é o problema da governança, de gestão da sociedade no sentido amplo. Sabemos administrar unidades, uma empresa, uma repartição pública, uma organização da sociedade civil. Estamos apenas aprendendo a articular o conjunto para o bem comum, e isto, gostemos ou não, é política. Enfrentamos problemas globais quando as estruturas políticas realmente existentes estão fragmentadas em 194 estados-nação. Ao tripé que aparentemente recolhe a nossa unanimidade – uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável – precisamos portanto hoje acrescentar o pilar da governança, os desagradáveis assuntos políticos, saber quem tomará as decisões, de onde virá o financiamento, como será realizado o seguimento e o controle. A Rio-92 desenhou os desafios do tripé de maneira competente, com a Agenda 21 e as grandes convenções do clima e da biodiversidade. Sabemos, sim, para onde ir. A Rio+20 terá o desafio mais espinhoso de enfrentar o dilema da governança, da criação de estruturas político-institucionais que façam acontecer. Não é uma opção, é uma necessidade. Com o agravamento dos processos planetários, estamos, como diz Ignacy Sachs, condenados a inovar.

Não tenho na presente nota nenhuma pretensão de apresentar respostas para dilemas deste porte. Mas pareceu-me útil fazer uma pequena resenha de documentos que me têm passado pelas mãos, uma forma prática de facilitar a vida de quem está buscando boas leituras.

Sistematização dos desafios

No geral mesmo, a leitura básica me parece ser o curiosamente chamado Plano B 4.0 de Lester Brown, disponível online e gratuitamente, em português. Trata-se essencialmente de um roteiro que apresenta de maneira simples cada um dos principais desafios, as medidas necessárias, os seus custos e factibilidade. O subtítulo do livro diz a que vem: Mobilização para salvar a civilização. Como Lester Brown atualiza constantemente os seus textos, estamos na crista da onda. Para quem maneja o inglês, aliás, vale a pena ler o seu pequeno estudo chamado World on the Edge: how to prevent environmental and economic colapse, leitura curta e genial que caracteriza a nossa crise civilizatória.

Na linha ainda das visões gerais, uma belíssima consulta online é o Keeping Track of our Changing Enviroment: from Rio to Rio+20 (1992-2012), também chamado Geo-5, publicado pelo PNUMA, que apresenta em gráficos muito didáticos, com curtos comentários, tudo que há de novo desde 1992: população, urbanização, alimentos, gênero, PIB, extração de recursos naturais, emissões, mudança climática, florestas, água, governança, agricultura, pesca, energia, indústria, tecnologia. Um instrumento de trabalho realmente de primeira linha em termos de dados básicos de como tem evoluído a situação do planeta nos últimos 20 anos.

No plano da análise em profundidade dos mecanismos, uma excelente leitura me parece ser o relatório encomendado pelas Nações Unidas, Building a Sustainable and Desirable Economy-in-society-in-nature, estudo que reuniu vários dos melhores especialistas do mundo, como Gar Alperovitz, Herman Daly, Juliet Schor, Tim Jackson e outros. O estudo encara efetivamente os principais mecanismos econômicos que temos de transformar: “Vamos precisar de uma ciência econômica que respeite os limites do planeta, que reconheça a dependência do bem estar do ser humano das relações e correção sociais, e que reconheça que o objetivo final é um bem estar humano real e sustentável, não apenas o crescimento do consumo material. Esta nova ciência econômica reconhece que a economia está situada numa sociedade e cultura que estão elas mesmas situadas no sistema ecológico de suporte da vida, e que a economia não pode crescer para sempre neste planeta limitado.” (iv)

Documentos oficiais básicos

Há naturalmente também os documentos oficiais. Podem deixar-nos irritados pelas insuficiências ou timidez, mas de toda forma são leituras necessárias. No plano geral, está o documento base a ser discutido na Rio+20, o chamado The Future we Want. Está centrado, como se sabe, “na busca da economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza.” Afirma também “a nossa decisão de fortalecer o marco institucional do desenvolvimento sustentável”, e apresenta 15 grandes desafios (segurança alimentar, água, energia, cidades etc.) Trata-se de um documento de 20 páginas, nada que ultrapasse o tempo que ficamos parados na Marginal Tieté. É um importante instrumento de construção de consensos.

Como há fortes debates sobre o que significa “economia verde”, é útil lembrar a definição do PNUMA: trata-se de um desenvolvimento que resulta em “improved human well-being and social equity, while significantly reducing environmental risks and ecological scarcities”, portanto bem-estar humano, equidade social, redução dos riscos ambientais e da escassez ecológica. Como a definição é abrangente, aqui também me parece que o problema não está no ‘verde’, e sim no ‘como’ se atinge os objetivos, na linha da cosmética corporativa ou das mudanças substantivas. As questões relevantes não são semânticas.

O documento brasileiro, “minuta para consultas”, apresenta os desafios do desenvolvimento sustentável, em 24 pontos, que envolvem tanto a erradicação da pobreza extrema e segurança alimentar, como equidade, papel do Estado, produção e consumo sustentáveis, até os temas tradicionais ambientais como água, energia, cidades e semelhantes. O conceito de economia verde é incluído como “economia verde inclusiva”. Segundo os autores, “com este importante ajuste conceitual, seria dado foco num ciclo de desenvolvimento sustentável com a incorporação de bilhões de pessoas à economia com consumo de bens e serviços em padrões sustentáveis e viáveis.”(p.26) O capítulo III apresenta propostas importantes no plano institucional, e o IV resume as “propostas do Brasil para a Rio+20”. No total são 37 páginas, ainda um elenco tentativo de propostas, mas que dá uma boa ideia do que está na mesa de discussões.

Os dois documentos acima se apoiaram bastante no texto elaborado pelo painel convocado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, o GSP (Global Sustainability Panel), chamado na versão em espanhol Gente resiliente en um planeta resiliente: un futuro que vale la pena eligir. Em 14 páginas, este documento dá conta do recado no sentido de valorizar os pontos chaves dos nossos desafios. Envolve a criação de um conselho global de desenvolvimento sustentável como marco institucional internacional, e dá particular importância à dimensão político-institucional: “O certo é que o desenvolvimento sustentável consiste fundamentalmente em que as pessoas tenham oportunidades para influir no seu futuro, exigir os seus direitos e expressar as suas preocupações. A governança democrática e o pleno respeito dos direitos humanos são requisitos indispensáveis para empoderar as pessoas e conseguir que façam opções sustentáveis. Os povos do mundo já não tolerarão que se continue a devastar o meio ambiente nem que persistam as desigualdades que ofendam o profundamente arraigado principio universal da justiça social… Ao mesmo tempo, há que alentar as comunidades locais para que participem ativamente e de forma coerente na conceituação, planejamento e aplicação de políticas de sustentabilidade. Para isto é fundamental incluir os jovens na sociedade, na política e na economia”. O resumo executivo em espanhol está em aqui.

Os manifestos

Em outro plano de documentos, há o que poderíamos chamar de manifestos éticos. Particularmente interessante é o manifesto de março 2012, assinado por 2800 cientistas reunidos em Londres, no quadro da conferência Planet Under Pressure: new knowledge towards solutions. O documento de 4 páginas apenas, State of the Planet Declaration, é duro e direto: “As pesquisas agora demonstram que o funcionamento contínuo do sistema Terra tal como tem dado suporte ao bem estar da civilização humana nos séculos recentes está em risco. Na ausência de ação urgente, poderemos fazer face a ameaças à água, alimento, biodiversidade e outros recursos críticos. Estas ameaças colocam o risco de crises econômicas, ecológicas e sociais cada vez mais intensas, criando o potencial para uma emergência humanitária em escala global.” Segundo os autores, “o desafio que define a nossa era é a salvaguarda dos processos naturais da Terra para assegurar o bem estar da civilização com erradicação da pobreza, redução de conflitos por recursos, e suporte à saúde humana e do ecossistema. Com o consumo se acelerando por toda parte e o aumento da população mundial, já não é suficiente trabalhar com um ideal distante de desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade global tem de tornar-se o fundamento da sociedade.” Trata-se aqui de um grito de urgência, que aponta para o que é talvez o nosso maior drama: o hiato entre a compreensão científica dos desafios que vivemos, e o pouco que é apreendido pelas populações em geral, submetidas a informações banais e a um martelar publicitário sem sentido. “Porque a vida é agora”, repete a propaganda de um grupo financeiro, como se não houvesse amanhã.

Neste campo das tomadas de posição ética, é preciso mencionar também um folheto publicado por Stéphane Hessel, francês de 93 anos, intitulado Indignez-vous, indignai-vos (publicado em inglês como A Time for Outrage). Um herói da resistência ao nazismo, traz com força a denúncia dos absurdos das corporações financeiras, dos sistemas fiscais que privilegiam os ricos, e trazendo apoio a todas as manifestações atuais de indignação, seja nos países árabes ou na Europa e nos Estados Unidos. Texto simples e eloquente, uma denúncia dos absurdos, e um apelo ao bom senso e à revolta. O folheto vendeu em poucos meses mais de 4 milhões de exemplares, e, apesar da visão parcialmente centrada na França, tem um apelo universal. A notar também um livrinho de 60 páginas de Stéphane Hessel e de Edgar Morin, Le chemin de l’espérance, (O caminho da esperança), clamando por uma “consciência do momento dramático que vivemos para a espécie humana, dos seus riscos e perigos, mas também das suas chances”. As propostas são “por uma política de civilização”. Os dois textos mencionados são de 2011, e poderíamos ainda acrescentar o recente livro La Voie (O caminho) de Edgar Morin.

Como apelo universal à ética da sustentabilidade, podemos também incluir o “Chamado aos governos”, uma convocação para se elaborar uma Carta de Responsabilidades Universais na Rio+20, como complemento à Declaração Universal dos Direitos Humanos. É apresentado no Fórum Internacional da Ética e Responsabilidade, vejam em particular a proposta em português. O chamado, de 5 páginas, é assinado por inúmeras instituições e personalidades. O contato para apoio é edith.sizoo@lc-ingeniris.com.

E incluiria também neste grupo o excelente ensaio de Leonardo Boff, Sustentabilidade: o que é – o que não é, publicado em fins de 2011 pela editora Vozes. É uma visão fortemente centrada em valores humanos, a busca do que Paulo Freire chamava de uma “sociedade menos malvada”. “O pior que podemos fazer é não fazer nada e deixar que as coisas prolonguem seu curso perigoso. As transformações necessárias devem apontar para outro paradigma de relação para com a Terra e a natureza e para a invenção de modos de produção e consumo mais benignos. Isso implica inaugurar um novo patamar de civilização, mais amante da vida, mais ecoamigável e mais respeitoso, dos ritmos, das capacidades e dos limites da natureza. Não dispomos de muito tempo para agir. Nem muita sabedoria e vontade de articulação entre todos para enfrentar o risco comum”. www.leonardoboff.com ou http://vozes.com.br;

A questão chave do poder financeiro

Aparentemente sem conexão com a Rio+20, mas que a meu ver tem muito a ver, é a pesquisa do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica – ETH na sigla em alemão – sobre o poder global de controle das corporações. No essencial, como mencionamos acima, a pesquisa do ETH mostrou que 737 corporações, controlam 80% do sistema corporativo mundial, e nestas um núcleo duro de 147 controla 40% do total, 75% delas corporações financeiras. Na sua quase totalidade são americanas e europeias. Temos portanto uma visão radicalmente nova do poder corporativo mundial. Note-se que o PIB mundial é da ordem de 63 trilhões de dólares, enquanto os derivativos emitidos (outstanding derivatives), papéis que dão direito a outros papéis, juros sobre juros – na prática especulação financeira – atingem 600 trilhões de dólares segundo o BIS de Basiléia. São papéis com pouco lastro, a procura de liquidez, o que gerou as imensas transferências de governos para bancos privados, o que por sua vez gera grande parte dos cortes em políticas sociais e ambientais do mundo rico. Para facilitar a vida de não-economistas, fizemos uma resenha com as principais conclusões, veja nas 10 páginas. A pesquisa do ETH foi publicada em outubro de 2011. É importante entender em que contexto econômico e financeiro mundial se dá a Rio+20. Um planeta sustentável com paraísos fiscais e com sistemas especulativos descontrolados sobre commodities, além dos financiamentos irresponsáveis que inundam o mundo de armas sem controle, francamente…

Neste plano, e entrando em defensiva, um conjunto de corporações financeiras lançou a The Natural Capital Declaration, na linha de “finanças inovadoras para a sustentabilidade”. O documento, de 3 páginas, constitui uma importante declaração de princípios “demonstrando nosso compromisso na Rio+20 de trabalharmos para integrar considerações sobe o capital natural nos nossos produtos e serviços financeiros para o século 21”. Comove sem dúvida, e naturalmente esqueceram a dimensão social, e o fato de estarem servindo mais à especulação e apropriação de recursos públicos do que fomento produtivo, mas é uma tendência interessante. Está disponível online aqui.

No mesmo plano, e já com iniciativas realmente sérias, Hazel Henderson conduz há tempos um exercício importante de seguimento e avaliação do comportamento ‘verde’ das instituições financeiras, em particular de investidores institucionais como os fundos de pensão. Trata-se de imensos recursos. O sistema de seguimento do Green Transition Scoreboard 2012 mostra que nos últimos 5 anos estes fundos investiram 3,3 trilhões de dólares em energia renovável, tecnologias sustentáveis e semelhantes, com forte aumento de recursos a cada ano. Uma coisa são as motivações: claramente, estes fundos não estão sentindo pânico pela situação do planeta e dos pobres, e sim pela fragilidade dos papéis podres (junk) onde tradicionalmente realizavam aplicações. Financiar atividades ligadas à sustentabilidade aparece como uma alternativa cada vez mais viável em termos estritamente econômicos. Moralismos a parte, a reorientação de fundos especulativos para financiar sustentabilidade é, sim, absolutamente indispensável para fechar a conta das transformações necessárias. De certa forma, o capitalismo controlado pelo mundo financeiro é extremamente poderoso, mas na medida em que se transformou em cassino instável e improdutivo, de grande visibilidade e rejeição planetária, pode ter nesta dimensão financeira o seu lado mais vulnerável. A realidade é que esses imensos recursos são necessários para uso adequado nas reconversões sociais, ambientais e econômicas que temos pela frente. O Green Transition Scoreboard, que faz o seguimento destas mudanças, é neste sentido muito útil, e o trabalho de Hazel Henderson sempre inspira confiança. O documento está disponível no site CleanTechnica ou colocando o nome no Google.

Textos propositivos

No plano mais diretamente propositivo para a Rio+20, temos de dar destaque aos trabalhos de Ignacy Sachs, em particular ao artigo Os desafios da segunda Cúpula da Terra do Rio de Janeiro, publicado no encarte de janeiro 2012 do Le Monde Diplomatique Brasil, Sachs, veterano de Estocolmo 1972 e da Rio92, tem os pés bem firmes no chão. Considerando a fragilidade do sistema multilateral de decisões, dá uma importância central a que se aproveite a Rio+20 para traçar um roteiro concreto de planos nacionais de desenvolvimento sustentável, de fontes de financiamento (em particular a taxa Tobin), de sistemas de cooperação técnica por biomas (os semiáridos planetários, por exemplo, que enfrentam desafios muito semelhantes). Ou seja, a Conferência seria um ponto de partida para a construção de políticas nacionais, com sistemas diferenciados de cooperação e articulação com uma nova função das Nações Unidas. O texto de Sachs é o primeiro deste encarte, que apresenta 8 artigos de excelente qualidade, e dá uma visão geral dos desafios. O título geral do encarte é Sustentabilidade e Desenvolvimento: o que esperar da Rio+20.

Na mesma linha, um texto mais antigo nosso de 2010 continua plenamente atual, Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, de 21 páginas, fortemente centrado na convergência das crises, no resgate da dimensão pública do Estado e na capacidade de gestão pública. A parte propositiva, em 12 pontos, envolve o que nos pareceu como um programa mínimo para o resgate da racionalidade e equilíbrio do nosso desenvolvimento. É assinado conjuntamente por Ignacy Sachs, Carlos Lopes e Ladislau Dowbor. Uma versão bem humorada da parte propositiva pode ser encontrada no artigo “Os Dez Mandamentos – Edição Revista e Atualizada”, que traz mandamentos como Não Reduzirás o teu próximo à miséria e semelhantes. Textos publicados também pelo Instituto Paulo Freire e no Le Monde Diplomatique Brasil.

Para o caso específico do Brasil, um excelente pequeno documento é o “Acordo para o Desenvolvimento Sustentável”, elaborado no quadro do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e social), como contribuição para a Rio+20. Este pequeno documento sistematiza uma série de propostas de membros do Conselho, de numerosas organizações da sociedade civil, de acadêmicos, de especialistas como Ignacy Sachs, bem como de vários ministérios. É um documento particularmente equilibrado, centrado em grande parte na governança do processo.

Cumpre também mencionar o importante documento Indicadores de Desenvolvimento Sustentável 2010 elaborado pelo IBGE. Este balanço estatístico e analítico apresenta uma visão geral dos desafios, em quatro grandes capítulos, que focam a dimensão econômica, social, ambiental e institucional. Este último ponto é importante, pois sem a parte institucional, que envolve as políticas destinadas a tomar as decisões na direção do desenvolvimento sustentável, pouca coisa pode acontecer. De certa forma, trata-se de trabalhar com os quatro pilares, e não mais apenas com o tripé, o que envolve mudanças no processo decisório concreto. No conjunto são 55 grupos de indicadores, com breve análise. Na Rio+20 será apresentado o IDS-2012, com 62 grupos de indicadores e um avanço significativo na parte ainda relativamente mais fraca que é a institucional. Queria aqui reforçar a importância de se recorrer a este documento, que nos traz os dados primários concretos, quando a discussão frequentemente tende a se referir a dados afetados por visões ideológicas.

Evidentemente não é o lugar aqui de entrar no conjunto das propostas setoriais, referentes ao clima, água, florestas, saúde, educação e assim por diante. Há aqui inúmeras contribuições brasileiras acessíveis online, por exemplo de Ricardo Abramovay, de José Eli da Veiga e tantos outros. Há também a bela contribuição Os 50 + Importantes Livros em Sustentabilidade, da Universidade de Cambridge, publicado pela Editora Peirópolis em 2012. Leituras não faltam. Os textos que apresentamos acima ajudam sim na formação de uma visão de conjunto dos desafios e de a que vem a Rio+20 nas suas dimensões essenciais.

Um complemento apenas relativamente ao que me parece ainda as áreas mais fracas: neste mundo urbanizado, independentemente das grandes políticas planetárias e nacionais, há um imenso espaço para que cidades, individualmente ou em rede, façam a lição de casa. Esta é uma dinâmica em curso, envolvendo milhares de cidades pelo mundo afora, criando uma construção sustentável pela base. Não é suficiente, sem dúvida, mas cria gradualmente novas dinâmicas ao demonstrar de forma prática que um outro desenvolvimento é possível e funciona.

Igualmente frágil é a área de contas que façam sentido. O PIB não só é tecnicamente frágil, como induz a uma visão deformada do progresso. Temos de contabilizar o que realmente conta. Lembro-me de ter visto em Johannesburgo, na África do Sul, painéis em lugares públicos que em vez de veicularem mensagens publicitárias informavam a população local sobre a evolução de indicadores essenciais como a mortalidade infantil, conexões de esgotos, acesso à água e assim por diante. Precisamos passar a medir o que realmente importa.

Outro eixo a ser fortemente expandido, o da participação política, está bem resumido na nota de Laura Rival, da Universidade de Oxford, para o UNRISD: “Para que as pessoas possam exercer as suas capacidades políticas, precisam antes reconhecer-se como cidadãos, mais do que como beneficiários ou clientes. Adquirir os meios de participar demanda também processos de educação popular e de mobilização que possa reforçar as habilidades e a confiança de grupos marginalizados e excluídos, dando-lhes meios para se engajarem em arenas participativas.” Não há “bala de prata” para assegurar a cidadania: envolve educação, inclusão produtiva, mídias democratizadas, acesso às tecnologias, segurança pessoal e assim por diante. É o desfio maior.

*Ladislau Dowbor é professor titular da PUC-SP, e consultor de várias agências das Nações Unidas. Os seus textos estão disponíveis online no site http://dowbor.org, em Creative Comons (livre uso não comercial). Ver também textos disponíveis no blog

Resposta de um grego para um alemão pela crise

Um amigo deste blog encaminhou essa maravilha de troca de cartas entre um alemão e um grego. Ambos os textos propõem uma bela polêmica, mas o humor fino do grego é inquestionável. Boa leitura.

Estas cartas apareceram no jornal semanário alemão “STERN”
Foram duas cartas sobre os problemas reais da crise econômica na Grécia. A resposta ao alemão da primeira carta é sensacional.
Isto, sem levar em conta o fato de que, considerando a “dívida total” na zona do euro não é a Grécia a maior devedora. A Holanda excede em 234%, Irlanda com 222%, Bélgica com 219%, Espanha com 207%, Portugal com 197%, Itália com 194%, etc.

Há alguns meses atrás, foi publicada uma carta aberta dirigida ao “Prezado grego” por um cidadão alemão chamado Walter Wuellenweber cujo título era:

Caro grego:
Desde 1981 nós pertencemos à mesma família.
Nós, alemães, temos contribuído para o Fundo comum, com aproximadamente de 200 bilhões de euros, sendo que só a Grécia recebeu cerca de 100 bilhões desse montante, ou seja, a maior quantidade per capita que qualquer outro povo na UE. Nunca, ninguém, voluntariamente, ajudou a este ponto outro povo e por tanto tempo.
Vocês honestamente são os amigos mais caros que temos. O fato é que não só VOCÊS enganam a si mesmos, COMO A NÓS também. Em essência, nunca provaram serem dignos do nosso Euro. Desde a constituição da UE e a moeda única, que a Grécia, nunca conseguiu satisfazer os critérios de estabilidade.
Dentro U.E. vocês são as pessoas que gastam as maiores somas em bens de consumo. Através da vontade das pessoas que em última análise, tem a responsabilidade. Não digam, então, que os políticos são os responsáveis pelo desastre.
Ninguém os forçou a não pagar os impostos por anos; que se oponham a qualquer política coerente para reduzir os gastos públicos e, ninguém os obrigou a escolher os líderes que tiveram e têm. Os gregos foram os que nos mostraram o caminho de Filosofia, Democracia e os primeiros conhecimentos da Economia. Agora, estão a nos mostrar o caminho errado e, onde não conseguiram chegar!
Na semana seguinte, o JORNAL “Stern” publicou uma carta aberta de um grego, dirigida ao Wuellenweber:

Caro Walter:
Meu nome é Georgios Psomas. Eu sou um servidor público e não “funcionário público” como desdenhosamente como um insulto, vocês se referem aos  meus compatriotas e seus conterrâneos. Meu salário é de 1.000 euros por mês hein? Não pense você que é por dia, como te querem fazer acreditar em teu país. Note que ganho uma cifra bem menor que isso, porque desconto impostos e, certamente, o meu salário é muito, mas muito menor que o seu.
Desde 1981, você está certo, pertencemos à mesma família. Só que temos lhes concedido exclusivamente para VOCÊS ALEMÃES um monte de privilégios, TAIS COMO: os principais fornecedores de tecnologia do povo grego, armas, infra-estrutura (rodovias e os dois principais aeroportos internacionais), telecomunicações, produtos de consumo, carros, etc. Se eu esqueci alguma coisa, me perdoe. Gostaria de lembrar que dentro da UE somos os maiores importadores de produtos de consumo produzidos pelas fábricas alemãs.
A verdade é que não são só os nossos políticos os responsáveis pelo desastre da Grécia. Também contribuiu muito para isso, algumas grandes empresas alemãs, que pagaram altos subornos para os nossos políticos a fim de conseguirem os contratos citados acima, para vender tudo, até mesmo uns submarinos, alguns fora de serviço, que  posicionados no mar, logo afundaram ou emborcaram.
Sei que ainda não deve estar dando crédito ao que eu estou escrevendo. Tenha paciência, espera, leia a carta inteira e se eu não o convencer, eu autorizo a você me colocar fora da zona do euro, este que é considerado o lugar da verdade, prosperidade, justiça e direito.
Walter, meu caro Walter, passou mais de meio século desde que a 2ª. Guerra Mundial terminou, é mais de 50 anos, que a Alemanha deveria ter cumprido as suas obrigações para com a Grécia. Essas dívidas, que até agora apenas a Alemanha está relutante em resolver com a Grécia, (a Bulgária e a Romênia reuniram-se para pagar a indenização), são:
1. A dívida de DM 80 milhões para indenizações, que não foi paga desde a Primeira Guerra Mundial.
2. Compensação de dívidas para as diferenças no período entre guerras, num total de US$ 593.873.000 a valores de hoje.
3. Empréstimos forçados que fez o Terceiro Reich em nome da Grécia durante a ocupação alemã, que totalizaram 3,5 trilhões de dólares durante todo o período de ocupação.
4. Reparos que devem para a Grécia, para os confiscos, perseguições, assassinatos e destruição de aldeias inteiras, estradas, pontes, ferrovias, portos, produzidos pelo Terceiro Reich, e, como foi estipulado pelos tribunais, equivale a hoje a 7,1 trilhões de dólares, dos quais a Grécia não viu um centavo até hoje.
5. As reparações incomensuráveis da Alemanha pela morte de 1.125.960 gregos (38.960 mortos por banalidades, 12.000 mortos como dano colateral, 70.000 mortes em combate, 105 mil mortes nos campos de concentração na Alemanha, 600.000 morreram de fome, e assim por diante. Etc.).
6. A lesão moral enorme e imensurável causadas ao povo grego e aos ideais humanistas da cultura grega.

Eu sei que você não deve estar gostando nada do que estou escrevendo. Sinto muito! Mas, me incomoda muito mais o que a Alemanha quer fazer comigo e com meus conterrâneos. Amigo, operam mais de 130 empresas Alemãs na Grécia, dentro destas estão incluídas todas as gigantes da indústria de seu país, algumas com faturamento anual de 6,5 bilhões de euros.
Logo, se as coisas continuarem assim, infelizmente, não poderei comprar mais produtos da Alemanha, porque cada vez tenho menos dinheiro. Eu e meus companheiros crescemos sempre com a privação, podemos viver sem BMW, Mercedes, sem Opel, sem Skoda. Vamos parar de comprar produtos da Lidl, de Praktiker, de IKEA. Mas, vocês, Walter, como vão gerir os desempregados que gerará esta falta de consumo?  Até você mesmo pode  ter que diminuir o padrão de vida, teus carros de luxo, as tuas férias no exterior, as excursões sexuais para a Tailândia, etc.
Vocês, (alemães, suecos, holandeses, e “companheiros” de outras Eurozona) querem que a gente abandone a Zona do Euro, a Europa e lá sei onde mais. Acredito firmemente que temos que fazê-lo mesmo, para nos salvar de uma União formada por um bando de especuladores financeiros, uma equipe que somente nos valoriza se nós consumirmos produtos que oferecem tais como: empréstimos, bens industriais, bens de consumo, obras monumentais, e assim por diante.
Walter, finalmente, é preciso “consertar” uma outra questão importante, já que você também está em dívida para com a Grécia: “EXIGIMOS QUE NOS DEVOLVAM A CIVILIZAÇÃO QUE NOS ROUBARAM”!
* Queremos DE VOLTA NA GRÉCIA as obras imortais de nossos antepassados que, VOCÊS GUARDAM NOS MUSEUS  em Berlim, Munique, Paris, Roma e Londres.
* E EU EXIJO QUE SEJA JÁ, AGORA,  Porque, JÁ QUE eu estou morrendo de fome, eu quero morrer ao lado das obras de meus antepassados.
Cordialmente
Georgios Psomas

Alguma coisa está fora da ordem

Diante dos terremotos que abalam o mundo, Ignacio Ramonet propõe a reinvenção da política para reencantar os seres humanos

Por Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique en español | Tradução: Daniela Frabasile, via Outras Palavras

Agora que os atentados de 11 de setembro acabam de completar uma década, e passados três anos da quebra do banco Lehman Brothers, quais são as características do novo “sistema-mundo”?

A regra vigente hoje em dia é a dos terremostos. Terremotos climáticos, terremotos financeiros, terremotos nas bolsas de valores, terremotos energéticos e alimentares, terremotos comunicacionais e tecnológicos, terremotos sociais e geopolíticos, como os que causaram as insurreições da “Primavera Árabe”…

Existe uma falta de visibilidade geral. Acontecimentos imprevistos irrompem com força sem que nada — ou quase nada — os faça emergir. Se governar é prever, vivemos uma evidente crise de governança. Os dirigentes atuais não conseguem prever nada. A política se revela impotente. O Estado que protegia os cidadãos deixou de existir. Existe uma crise na democracia representativa: “não nos representam”, dizem com razão os “indignados”. As pessoas constatam a falência da autoridade política e reclamam que ela volte a assumir seu papel de condutora da sociedade, por ser a única que dispõe da legitimidade democrática. Insistem na necessidade de que o poder político limite o poder econômico e financeiro. Outra constatação: uma carência de liderança política em escala nacional. Os líderes atuais não estão a altura dos desafios.

Os países ricos (América do Norte, Europa e Japão) padecem do maior terremoto econômico-financeiro desde a crise de 1929. Pela primeira vez, a União Europeia vê ameaçada sua coesão e sua existência. E o risco de uma grande recessão econômica debilita a liderança internacional da América do Norte, ameaçada também pelo surgimento de novos pólos de poder (China, Índia, Brasil) em escala internacional.

Em discurso recente, o presidente dos Estados Unidos anunciou que dava por terminadas “as guerras do 11 de setembro” — ou seja, as do Iraque e do Afeganistão — contra o “terrorismo internacional”, que marcaram militarmente a última década. Barack Obama recordou que “cinco milhões de americanos vestiram o uniforme nos últimos dez anos”. Isso não significa que Washington tenha saído vencedor nesses conflitos. As “guerras do 11 de setembro” custaram ao orçamento estadunidense entre 1 bilhão e 2,5 bilhões de dólares: carga financeira astronômica, que teve repercussões no endividamento dos Estados Unidos e, consequentemente, na degradação de sua situação econômica.

As guerras têm-se revelado pírricas. No fim das contas, o Al-Qaeda em certa medida se comportou com Washington do mesmo modo que Ronald Reagan com Moscou quando, nos anos 1980, impôs à URSS uma extenuante corrida armamentista que acabou esgotando o império soviético e provocando sua implosão. A “desclassificação estratégica” dos Estados Unidos começou.

Na diplomacia internacional, a década confirmou a emergência de novos atores e de novos pólos de poder, sobretudo na Ásia e na América Latina. O mundo se “desocidentaliza” e é cada vez mais multipolar. Destaca-se o papel da China, que aparece, em princípio, como a grande potência que nasce no século XXI — embora a estabilidade do Império do Meio não esteja garantida, pois coexistem em seu seio o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. A tensão entre essas duas forças causará, cedo ou tarde, uma fratura. Mas, por hora, enquanto o poder dos Estados Unidos declina, a ascensão da China se confirma. Já é a segunda potência econômica do mundo (à frente do Japão e da Alemanha). Além disso, por deter parte importante da dívida estadunidense, Pequim tem nas mãos o destino do dólar…

O grupo de Estados gigantes reunidos no BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) já não obedece automaticamente as grandes potências ocidentais tradicionais (Estados Unidos, Reino Unido, França), ainda que estas continuem se autodesignando como “comunidade internacional”. Os BRICS demostraram recentemente, na crise da Líbia e da Síria, que se opõem às decisões das potências da OTAN e no âmbito da ONU.

Dizemos que existe crise quando, em qualquer setor, algum mecanismo deixa de funcionar, começa a ceder e acaba se rompendo. Essa ruptura impede que o conjunto da máquina continue funcionando. É o que está ocorrendo na economia desde que a crise eclodiu, em 2007.

As repercussões sociais do cataclismo econômico são de uma brutalidade inédita: 23 milhões de desempregados na União Europeia, e mais de 80 milhões de pobres… Os jovens aparecem como as vítimas principais. Por isso, de Madri a Telavive, passando por Santiago do Chile, Atenas e Londres, uma onda de indignação levanta a juventude do mundo.

Mas as classes médias também estão assustadas porque o modelo neoliberal de crescimento as abandonou na beira da estrada. Em Israel, uma parte delas uniu-se à juventude para rechaçar o integrismo ultraliberal do governo de Benjamín Netanyahu.

O poder financeiro (os “mercados”) se impuseram ao poder político, e isso irrita os cidadãos. A democracia não funciona. Ninguém entende a inércia dos governos frente à crise econômica. As pessoas exigem que a política assuma sua função e que intervenha para corrigir os erros. Não será fácil: a velocidade da economia é hoje a mesma que um raio, enquanto a velocidade da política é a mesma que um caracol. Será cada vez mais difícil conciliar o tempo econômico com o tempo político — e também crises globais com governos nacionais.

Os mercados financeiros reagem de forma exagerada frente a qualquer informação, enquanto os organismos financeiros globais (FMI, OMC, Banco Mundial) são incapazes de determinar o que vai acontecer. Tudo isso provoca, nos cidadãos, frustração e angústia. A crise global produz perdedores e ganhadores. Os ganhadores se encontram, principalmente, na Ásia e nos países emergentes, que não têm uma visão tão pessimista da situação quanto os europeus. Também existem muitos ganhadores no interior dos países ocidentais, cujas sociedades se encontram fraturadas pelas desigualdades entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.

Na realidade, não estamos suportando uma crise, mas um feixe de crises, uma soma de crises mescladas tão intimamente umas com as outras que não conseguimos distinguir as causas e os efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas das outras, e assim até formar um verdadeiro sistema. Ou seja, enfrentamos uma crise sistêmica do mundo ocidental que afeta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a guerra, a geopolítica, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude…

Vivemos um tempo de “rupturas estratégicas” cujo significado não compreendemos. Hoje, a internet é o vetor da maioria das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias de comunicação e de informação. Os mercados financeiros, por exemplo, não seriam tão poderosos se as ordens de compra e venda não circulassem na velocidade da luz pelas pistas da comunicação que a internet colocou à sua disposição. Mais que uma tecnologia, a internet é um ator das crises. Basta lembrar o papel do WikiLeaks, Facebook, Twitter nas recentes revoluções democráticas no mundo árabe.

Desde o ponto de vista antropológico, essas crises estão se traduzindo em aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem num estado de ansiedade e incerteza. Voltam os grandes pânicos frente a ameaças indeterminadas, como a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada… Tudo isso constitui um desafio para as democracias. Porque esse terror se transforma às vezes em ódio e repulsa. Em vários países europeus, esse ódio se dirige hoje contra os estrangeiros, os imigrantes, os diferentes. Está aumentando a rejeição contra todos os “outros” e crescem os partidos xenofóbicos.

Outra grave preocupação mundial: a crise climática. A consciência do perigo que representa o aquecimento global aumentou. Os problemas ligados ao meio ambiente estão voltando a ser altamente estratégicos. A próxima cúpula internacional do clima, que acontecerá no Rio de Janeiro, em 2012, constatará que o número de grandes catástrofes naturais aumentou, assim como sua espetacularização. O recente acidente nuclear em Fukushima aterrorisou o mundo. Vários governos já deram passos para trás em relação à energia nuclear e apostam agora — em um cenário marcado pelo fim próximo do petróleo — nas energias renováveis.

O curso da globalização parece suspenso. Cada vez mais se fala em desglobalização, de declínio… o pêndulo foi longe demais na direção neoliberal e agora poderia ir na direção contrária. Já não é mais tabu falar em protecionismo para limitar os excessos do livre comércio, e pôr fim às realocações e à desindustrialização dos Estados desenvolvidos. Chegou a hora de reinventar a política e reencantar o mundo.

Os que mandam no mundo

Por Mauro Santayana, via  Jornal do Brasil

As grandes crises econômicas mundiais trazem o desemprego e a miséria, e atingem também os investidores. Houve milionários que, vítimas de sua própria ambição e dos especuladores, chegaram ao suicídio, como na queda vertiginosa da Bolsa de Nova York em 1929. Mas as grandes crises são “o sonho feito realidade para aqueles que querem fazer dinheiro”, como revelou um corretor de valores de Londres, Alessio Rastani, em entrevista à BBC, que, reproduzida pela internet, está surpreendendo o mundo. Ele afirmou também que havia sonhado três anos com uma recessão como a atual. Rastani é auto-identificado pelo seu site na rede mundial como hábil operador, consultor no mercado de capitais e conferencista que percorre o mundo, a fim de orientar os investidores. Ele declarou à emissora britânica que quem manda no mundo, porque manda nos governos, é o grande banco de investimentos Goldman Sachs.

Rastani não citou diretamente o jornalista francês Marc Roche que, no ano passado, publicou um livro forte, e sobre o qual os grandes meios internacionais de comunicação quase nada dizem, com o título de La banque:Comment Goldman Sachs dirige le monde (Albin Michel, Paris, 2010). Roche é, há mais de vinte anos, correspondente de Le Monde, na City de Londres, o que lhe possibilita acompanhar os grandes movimentos das finanças internacionais.

O livro demonstra que o banco americano conseguiu atuar junto ao governo de grandes países, mediante a infiltração de seus ex-dirigentes, ao mesmo tempo em que cooptou ex-governantes para participar de suas grandes decisões, em operação que, de acordo com o livro de Marc Roche – em entrevista à televisão, o escritor os chamou de imorais – sugere corrupção e suborno em escala global.

Entre outros, Marc Roche cita o atual presidente do Banco Central da Itália, Mario Draghi. Draghi, como representante da Itália, participa do board do Banco Central Europeu e é cotado para suceder a Trichet, na presidência da instituição. Foi vice-presidente e diretor executivo do Goldman Sachs para a Europa (e também diretor do Banco Mundial). Outro italiano, Mario Monti, é conselheiro atual do Goldman, para assuntos internacionais, e foi comissário da União Europeia para o mercado interno e para os assuntos de concorrência. Nesses cargos, Monti defendeu ardorosamente a divisão de todos os serviços públicos em empresas médias e sua privatização.

Em sua tática de recrutamento, Goldman Sachs cooptou também Otmar Issing, ex-diretor do Bundesbank — o Banco Central da Alemanha — e ex-economista chefe do Banco Central Europeu, para o seu conselho diretor. Dirigentes do Goldman ocuparam posições destacadas no governo norte-americano, e ainda ocupam. Robert Rubin, de sua diretoria executiva, foi secretário do Tesouro de Bill Clinton, de 1995 a 1999; Henry Paulsen, ex-presidente do Goldman, foi nomeado secretário de Tesouro de George Bush, em 2006. Ainda nos Estados Unidos: o atual secretário do Tesouro, Tim Geithner, escolheu, como seu chefe de gabinete Mark Patterson que, durante dez anos, foi o chefe dos lobistas do Goldman Sachs junto ao Congresso dos Estados Unidos.

Até mesmo na África, o Goldman tem os seus tentáculos. Olusengun Aganga, que dirigia o serviço dos hedge funds, foi nomeado ministro de Economia do atual governo da Nigéria. Tito Mboweni, presidente do Banco Central da África do Sul, de 1999 a 2009, foi contratado pelo Goldman como seu conselheiro internacional, em maio do ano passado. Como registra o autor do livro, o Goldman conseguiu manipular os governos, de Mandela a Bush. Um só ato mostra a capacidade de cooptação do Goldman Sachs. Quando secretário do Tesouro de Bush, seu ex-presidente, Henry Paulsen, decidiu que o Tesouro socorresse com 60 bilhões de dólares a seguradora AIG, falida pelas operações da bolha imobiliária. A primeira dívida da AIG a ser saldada, de 29 bilhões de dólares, foi exatamente com o Goldman Sachs.

odas essas revelações, não contestadas pelo Goldman Sachs, mostram como atuam as grandes instituições financeiras. Elas só podem assim agir, porque os estados nacionais – hoje chefiados, salvo poucas exceções, por servidores do neoliberalismo – renunciaram à sua responsabilidade essencial, de promover a justiça e impedir o saqueio dos bens comuns pelos criminosos, muitos deles de enganosa respeitabilidade acadêmica, como são os principais dirigentes do Goldman Sachs.

Como estamos no assunto, Wall Street continua cercada pelos “indignados” manifestantes de Nova York, que contam com o apoio de personalidades conhecidas, como Michael Moore, o incômodo cineasta de Farenheit 9/11 e o linguista Noam Chomsky. É um princípio ainda tênue, mas os movimentos sociais são como os rios: nascem em pequenas fontes e vão crescendo rumo ao mar. No Brasil, é ainda tímida a atuação dos intelectuais — e de todos os cidadãos – junto ao Congresso para uma necessária e rigorosa legislação reguladora do sistema financeiro, o principal beneficiário da política privatizadora do governo Fernando Henrique Cardoso.

E para continuar no assunto: a escultura, intitulada O dedo de Deus, de Maurizio Cattelan, irreverente artista italiano — um punho fechado, mostrando o dedo médio levantado, gesto obsceno em quase todos os países do mundo — havia sido retirada da frente da Bolsa de Valores de Milão pela prefeita Letizia Moratti. O novo prefeito da cidade, Giuliano Pisapia, de centro-esquerda, com o apoio dos “indignati” italianos, recolocou-a em seu lugar.