Para afinar a sensibilidade política

Por Theotonio de Paiva

O batizado de Macunaíma, Tarsila do Amaral

O batizado de Macunaíma, Tarsila do Amaral

Os mitos, por vezes, dizem infinitamente mais sobre um povo, um país, do que a sua própria história. Em sua construção de uma outra verdade, trazem uma provocação terrível que nos obriga à reflexão. A auto-imagem, habilmente construída pelo senso comum, de que éramos um povo acovardado, incapazes de defender os seus direitos mais básicos, parece ter se instalado em nosso tecido social como uma doença auto-imune. Essa expressão nos ocupa corações e mentes, desde muito tempo, a ponto de imaginá-la como natural.

Referendada por toda a sorte de governos, lideranças políticas, ingênuos, raposas espertas, intelectuais perdigotos, jornalistas inescrupulosos, grandes empresários, a construção desse imaginário doentio insinuou-se como uma metáfora da gente brasileira. Como se contra a força não existisse nenhuma resistência e aos homens não fosse dada a capacidade de pensar e escolher.

Num signo curioso, a brava gente é apresentada como um povo indolente, preguiçoso e sem caráter. Deturparam tudo. Até a imagem do herói nacional, Macunaíma, que Mário de Andrade inventara na sua rapsódia, a partir das lendas indígenas do alto Amazonas.[1] Na verdade, a figura do herói dizia uma coisa, mas foi retorcida como uma camisa, e virou outra realidade substancialmente diversa.

E o que pensava o escritor modernista? Ele via emergir um sentimento do trágico ao se dar conta de uma nação sem alma, cujo povo, o brasileiro, não teria “caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. [2] Não é difícil perceber que nada tinha a ver com a ideia de um sujeito escroque e salafrário.

Não há dúvida de que esse traço perverso de dominação vocaliza com finura a noção de que “uma nação não é somente uma entidade política, mas algo que produz significados – um sistema de representação cultural”.  [3] De todo modo, aquela condição macunaímica, apropriada sem grandes esforços, pelos setores hegemônicos, parecia reservar uma espécie de conformismo genético que se estenderia para as gerações futuras. De modo inabalável, desenhava o perfil previsível de um povo.

No entanto, essa mesma representação trazia algumas perguntas incômodas dentro de si: em que base se sustentava? Teria sido muito difícil conhecer as falas subterrâneas desse mesmo povo? Que insurgências esse povo alimentava? A sua explosão, enquanto potência, contida em jaulas invisíveis, como em diversas ocasiões se deu a perceber, de que maneira fora tragada? Como misturaram todas essas possibilidades para gerar uma resultante próxima de zero, confusa, despolitizada? E, curiosamente, de que maneira, como num passe de mágica, teria se insurgido do nada?

As noções retiradas de uma história pouco difundida e sorrateiramente embaralhada provavelmente não deixavam entrever os mecanismos de construção empregados. Os olhos atentos, pegos no passado, o mais cuidadoso possível em não apagar as diferenças e contradições, certamente indicariam que aquilo a que chamam de violência não estava por vir. Era algo intrínseco em nossa formação social.

Novamente, a corda do medo se soltou. Embora sejam inegáveis as manipulações e infiltrações perversas de grupos orquestrados, e um deslumbramento midiático de setores médios da sociedade, não há como deixar de identificar que as perdas irreparáveis, no acúmulo dos séculos, foram contabilizadas: não rendiam dois tostões. Basta imaginar a menina que olha pela janela e vê o rio que margeia a sua casa, coberto de dejetos, praticamente sem vida, com automóveis, entulhos, objetos roubados, cadáveres, muitos cadáveres, e um cheiro pavoroso que as narinas delicadas são incapazes de entender como uma produção humana.

O homem cordial, magistralmente intuído por Sérgio Buarque de Holanda, foi grotescamente pervertido. E repetido até explodir os tímpanos, enquanto os “movimentos reformadores” sistematicamente ignoraram a “a grande massa do povo”, com uma ausência quase total de uma “concepção da vida bem definida”, que tivesse amadurecido e, somente aí, pudesse ser implementada. [4]  Muito ao contrário, impuseram as suas concepções e doutrinas, numa predisposição arbitrária e não-consensual.

Mas inquieta, sobretudo, as motivações que insistiam na navegação rio acima da correnteza. Como não compreender que a idéia da cordialidade não abarca apenas “sentimentos positivos e de concórdia”? [5] Era do homem que falava ao coração que o “paulista” queria dizer. Em suas explosões de fúria, em seus gritos, seus desmandos, suas palavras desencontradas ao perjuro, embora doce e meigo com os seus pares e confrades. Esse era o senhor do nosso mundo. Esse é o senhor do nosso mundo.

E seria tão mais fácil entender o óbvio. O sublime pressupõe trabalho.

No entanto, apesar de dizerem muito a respeito de nossa cultura, os mitos sabem encobrir camadas arqueológicas de outros saberes e práticas. Assim como, sabiamente, em nosso comodismo maroto, nos tripudiam e nos enganam.

Nesse sentido, algumas lendas mais encobriam do que revelavam da própria idéia de Brasil. Historicamente tivemos no país uma série de revoltas, movimentos aparentemente reformadores ou não, manifestações, quebra-quebra, atos políticos os quais, em seus mais diversos momentos, procuraram alguma transformação social. Mas não foi só isso. Igualmente utilizaram a força de suas gentes para empregá-las numa espécie de resistência social. Resistência à transformação da própria sociedade.

Por outro lado, a nossa formação social foi construída sob o reino colonial, por meio do império da casa grande e da senzala, muradas pelas pedras rochosas da inquisição. A nossa bandeira, diziam, tinha o verde das matas e o amarelo do ouro que nos roubaram. No entanto, confirmava uma dimensão histórica absurdamente distinta.

Ora, distante daquele ideário romantizado, o pendão da tua terra, que a brisa beija e balança, expressa as cores de duas dinastias: a dos Braganças, com o verde daquela família real portuguesa, e, através do amarelo-ouro, simboliza os Habsburgos, da Casa da Áustria. Nenhuma referência aos primeiros donos da terra e silêncio aos negros e seus mais de três séculos de escravidão e dor. Nada.

O fato é que reinterpretaram de tal forma aquelas cores para as suas dores serem insuportavelmente mais felizes.

Aliás, reinterpretar é um verbo curioso, que as instâncias de poder parecem conjugar com perfeição. No entanto, é importante deixar claro, essa tal relação com uma percepção crítica de um símbolo considerado “sagrado”, jamais existiu em nosso verde-amarelismo, pois operaram sempre com aquele sistema de representação cultural que lhes convinha. Como narcisos às avessas, eles hoje brincam pelas ruas de reinventar a concepção da história. Assim, a cada hino, nos obrigam a atualizar o rito de louvor à nossa dívida imorredoura com o colonizador europeu.

O medo, a força, o gesto terrível, esses sim, fizeram parte da nossa constituição primeira. E se mantiveram como uma expressão intrínseca, fundamental, extasiada a cada novo rubor patriótico. (É importante ter claro e não confundir pátria com nação; patriotada, como já ensinavam os modernistas, com projeto de país. São coisas distintas, que só duramente nos é dado a perceber.)

Enfim, temos um poder de Estado, não de governo, que atua com rara competência, por meio da sua força policial. É importante observar, leitor amigo, a sutilíssima e machadiana diferença.

Com efeito, esse mesmo Estado encontra enormes dificuldades em reconhecer o seu povo. A não ser quando ele se aquieta enquanto massa de manobra, ou torcidas organizadas em frente a aparelhos de tevê, ou, ainda, na condição de dóceis rebanhos, capazes de doar a própria vida por aquele que melhor dramatizar um sentido para a sua existência.

No entanto, grandes parcelas da população são tratadas de uma forma imbecilizante, como se a discussão política fosse um mal. Talvez seja mesmo, é fato reconhecer. Nada é mais inoportuno do que pensar. E não é mais oportuno conceber o povo como tolo e infantil? Todos os governos ditatoriais pensaram assim. Todos, sem exceção.

Como dizia aquele pernambucano, já falecido, ao povo, basta estar submisso e aceitar um “governo másculo e corajosamente autocrático”. [6] Ou, dito de outra forma, se este cardápio não convier, cabe ao mesmo povo ser sustentado através do sadismo do mando, conforme reza a tradição conservadora no Brasil.

E, em nome de uma pátria e de um povo, que só existe na miragem dos homens, permanecerem fiel aos cultos masoquistas e sentimentais.

Importante notar que essa expressão de uma idéia de povo, não foi construída ao acaso. Foi necessária muita inteligência, uma dose refinada de maquiavelismo, e o emprego racional de uma força bruta para fazer voltar a roda da história e seguidamente conformar leis e constituições, em proveito das oligarquias e pretensões das (várias) metrópoles.

Os exemplos são inúmeros. Nesse sentido, no início do século passado, após a conquista da anistia, pelos marinheiros da revolta da chibata, que sofriam inúmeros castigos e penalidades, já objeto de reflexão aqui, neste site, os oficiais ordenaram o desarmamento dos navios e expulsaram dezenas de ex-amotinados, desrespeitando a concessão dada pelo próprio Estado. Há um desdobramento terrível com várias questões envolvidas, culminando com a notícia de mais de trezentos mortos. A figura de Tiradentes, o único homem do povo, num levante de poetas e donos de terra. Ao redor do seu pescoço, uma corda pendurada acertava a vingança do poder imperial. Estraçalhado os seus membros, depois de morto, salgariam a terra, com a anuência forçada do povo, obrigado a concordar de antemão com tudo aquilo. Ao vê-lo passar, deixavam-se estar, com os braços sobrepostos à bandeira de Portugal, no peitoril das suas janelas.

Os terrores de Canudos, com os seus remanescentes, após a devastação implacável; as experiências dos quilombos que transcendem em muito ao passado escravista; os relatos de Graciliano Ramos nas prisões do Estado Novo e tudo o que essa experiência inspirada no fascismo italiano significou; a Revolta dos Malês, em Salvador, na Bahia do século XIX; bem como aquela que ficou conhecida com a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, magistralmente reinventada por Lima Barreto no seu Recordações do Escrivão Isaías Caminha. E as seqüelas esfumaçadas pelas visões do inferno que os porões da ditadura ofereciam a empresários de vários ramos de negócio, cujos estímulos aos seus fetiches, naquela liturgia servida pelos jornais da época, contavam-se como sagração de um novo tempo.

Atualmente, num final de outono, início de um inverno nesse país tropical, em que as estações são pouco delineadas, constata-se um sentimento fascista que se nutre da insatisfação popular. No entanto, é importante, como disse um jovem jornalista, saber afinar a sensibilidade política. A nossa e a dos outros, pois do contrário é fácil. A grande massa vive uma indignação histórica. As suas artérias estão obstruídas como as das ruas e avenidas. As contradições se avolumam.

Por conseguinte, há uma incrível dificuldade de percepção dessa situação emblemática. Por todas essas condições, gerou-se um estado de aparente letargia enquanto os termos difusos são processados em condições encobertas pela exaltação lírica do povo. Muito tempo de falta de consciência política produziu uma ferida aberta descomunal. A água estava represada, turva, e agora mais gente veio para as ruas do Brasil. E terminou o tempo de se vender versões e ilusões fáceis.

Talvez possamos com isso compreender esses significantes como capazes de produzirem novas verdades, algumas profundas e duras, sobre a nossa trágica história, acobertada docemente pelo manto de uma carnavalização mal-compreendida, ao expurgar a violência e o caráter irreverente do cômico. Talvez, com isso, amadurecemos a ponto de promover uma discussão sobre algumas questões de fundo. Em especial, aquelas que ocultam as razões da violência e da insensibilidade política, sustentando, desde o Brasil colônia, estruturas sociais e modelos de exclusão.

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Este trabalho é dedicado à equipe de jornalismo e produção da Pós TV [http://www.postv.org/].


[1] O lendário foi recolhido inicialmente pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. Publicado em 1924, aparece como Mythen und Legenden der Taulipang und Arekuná Indianer.

[2] Andrade, Mário de. “1º Prefácio”. In: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 217.

[3] Hall, Stuart. Identidade Cultural. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, Col. Memo, 1990, p. 54.

[4] Holanda, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 160-1.

[5] Idem, p. 205.

[6] Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 41a. ed. São Paulo, Record, 2000, p. 123.

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O discurso que não foi lido

Caderno ENSAiOS publica as anotações de Vera Paiva, filha do ex-deputado socialista Rubens Paiva, assassinado e desaparecido durante a ditadura militar.  Esse texto, estava previsto, seria lido durante o ato de assinatura em Brasília, pela presidenta da República Dilma Rousseff, da lei que cria a Comissão da Verdade. Não foi isso o que aconteceu. Ela acabou não falando. Sua participação teria sido cancelada por pressão dos militares. “Assim começa muito mal… Não fui desconvidada, simplesmente não falei!”, relata Vera Paiva.

Vera Paiva, via Carta Maior

Seguem as anotações da minha fala que foi cancelada, segundo os jornais, por pressão dos militares. Assim começa muito mal… Não fui desconvidada, simplesmente não falei! A minha volta diziam que a Presidenta Dilma tinha que viajar e encurtaram a cerimônia, que alguém tinha falado um tempo a mais. Sai para uma reunião na UNB, ainda emocionada com o carinho que dispensou aos familiares e ex-presos políticos, um a um. Agora entendo o pedido de desculpas da Ministra Maria do Rosário.

Sexta-feira, 18 de Novembro de 2011, 11:00. Palácio do Planalto, Brasília.

Excelentíssima Sra. Presidenta Dilma, querida ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário. Demais ministros presentes. Senhores representantes do Congresso Nacional, das Forças Armadas. Caríssimos ex-presos políticos e familiares de desaparecidos aqui presentes, tanto tempo nessa luta.

Agradecemos a honra, meu filho João Paiva Avelino e eu, filha e neto de Rubens Paiva, de estarmos aqui presenciando esse momento histórico e, dentre as centenas de famílias de mortos e desaparecidos, de milhares de adolescentes, mulheres e homens presos e torturados durante o regime militar, o privilégio de poder falar.

Ao enfrentar a verdade sobre esse período, ao impedir que violações contra direitos humanos de qualquer espécie permaneçam sob sigilo, estamos mais perto de enfrentar a herança que ainda assombra a vida cotidiana dos brasileiros. Não falo apenas do cotidiano das famílias marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011, sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, seqüestros, humilhação e a tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Não é isso que está em todos os jornais e na televisão quase todo dia, denunciando, por exemplo, como se deturpa a retomada da cidadania nos morros do Rio de Janeiro?

Inúmeros dados indicam que especialmente brasileiros mais pobres e mais pretos, ou interpretados como homossexuais, ainda são cotidianamente agredidos sem defesa nas ruas, ou são presos arbitrariamente, sem direito ao respeito, sem garantia de seus direitos mais básicos à não discriminação e à integridade física e moral, que a Declaração dos Direitos Humanos consagrou na ONU depois dos horrores do nazismo em 1948.

Isso tudo continua acontecendo, Excelentíssima Presidenta. Continua acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua obrigação constitucional e perpetuam ações herdeiras do estado de exceção que vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.

O respeito aos direitos humanos, o respeito democrático à diferença de opiniões assim como a construção da paz se constrói todo dia e a cada geração! Todos, civis e militares, devemos compromissos com sua sustentação.

Nossa história familiar é uma entre tantas registradas em livros e exposições. Aqui em Brasília a exposição sobre o calvário de Frei Tito pode ser mais uma lição sobre o período que se deve investigar.

Em março deste ano, na inauguração da exposição sobre meu pai no Congresso Nacional, ressaltei que há exatos 40 anos o tínhamos visto pela última vez. Rubens Paiva, que foi um combativo líder estudantil na luta “Pelo Petróleo é Nosso”, depois engenheiro construtor de Brasília, depois deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em 1964. Em 1971 era um bem sucedido engenheiro, democrata preocupado com o seu país e pai de 5 filhos. Foi preso em casa quando voltava da praia, feliz por ter jogado vôlei e poder almoçar com sua família em um feriado. Intimado, foi dirigindo seu carro, cujo recibo de entrega dias depois é a única prova de que foi preso. Minha mãe, dedicada mãe de família, foi presa no dia seguinte, com minha irmã de 15 anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um dos cenário de horror naqueles tempos. Revi minha irmã com a alma partida e minha mãe esquálida. De quartel em quartel, gabinete em gabinete passou anos a fio tentando encontrá-lo, ou pelo menos ter noticias. Nenhuma notícia.

Apenas na inauguração da exposição em São Paulo, 40 anos depois, fizemos pela primeira vez um Memorial onde juntamos família e amigos para honrar sua memória. Descobrimos que a data em que cada um de nós decidiu que Rubens Paiva tinha morrido variava muito, meses e anos diferentes… Aceitar que ele tinha sido assassinado, era matá-lo mais uma vez.

Essa cicatriz fica menos dolorida hoje, diante de mais um passo para que nada disso se repita, para que o Brasil consolide sua democracia e um caminho para a paz.

Excelentíssima Presidenta: temos muitas coisas em comum, além das marcas na alma do período de exceção e de sermos mulheres, mãe, funcionária pública. Compartilhamos os direitos humanos como referência ética e para as políticas públicas para o Brasil. Também com 19 anos me envolvi com movimentos de jovens que queriam mudar o pais. Enquanto esperava essa cerimônia começar, preparando o que ia falar, lembrava de como essa mobilização começou. Na diretoria do recém fundado DCE-Livre da USP, Alexandre Vanucci Leme, um dos jovens colegas da USP sacrificados pela ditadura, ajudei a organizar a 1ª mobilização nas ruas desde o AI-5, contra prisões arbitrárias de colegas presos e pela anistia aos presos políticos. Era maio de 1977 e até sermos parados pelas bombas do Coronel Erasmo Dias, andávamos pacificamente pelas ruas do centro, distribuindo uma carta aberta a população cuja palavra de ordem era.

HOJE, CONSENTE QUEM CALA.

Acho essa carta absolutamente adequada para expressar nosso desejo hoje, no ato que sanciona a Comissão da Verdade. Para esclarecer de fato o que aconteceu nos chamados anos de chumbo; quem calar consentirá, não é mesmo?

Se a Comissão da Verdade não tiver autonomia e soberania para investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu trabalho, estaremos consentindo. Consentindo, quero ressaltar, seremos cúmplices do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue inquestionada nos fatos.

A nossa carta de 1977, publicada na primeira página do jornal o Estado de São Paulo no dia seguinte, expressava a indignação juvenil com a falta de democracia e justiça social, que seguem nos desafiando. O Brasil foi o último país a encerrar o período de escravidão, os recentes dados do IBGE confirmam que continuamos um país rico, mas absurdamente desigual… Hoje somos o último país a, muito timidamente mas com esperança, começar a fazer o que outros países que viveram ditaduras no mesmo período fizeram. Somos cobrados pela ONU, pelos organismos internacionais e até pela Revista Economist, a avançar nesse processo.

Todos concordam que re-estabelecer a verdade e preservar a memória não é revanchismo, que responsáveis pela barbárie sejam julgadas, com o direito a defesa que os presos políticos nunca tiveram, é fundamental para que os torturadores de hoje não se sintam impunes para impedir a paz e a justiça de todo dia. Chile e Argentina já o fizeram, a África do Sul deu um exemplo magnífico de como enfrentar a verdade e resgatar a memória. Para que anos de chumbo não se repitam, para que cada geração a valorize.

Termino insistindo que a DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser valorizada e reconstruída a CADA GERAÇÃO.

E que hoje, quem cala, consente, mais uma vez.

Obrigada.

***

Depois de saber que fui impedida de falar ontem (sexta-feira), lembro de um texto de meu irmão Marcelo Paiva em sua coluna, dirigida aos militares:

“Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes, tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura (…) Por que não limpar a fama da corporação?
 Não se comparem a eles. Não devem nada a eles, que sujaram o nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma tradição que nos honra, garantiu a República, o fim da ditadura de Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a campanha no Haiti.”

Luiz Felipe de Alencastro: O observador do Brasil no Atlântico Sul

Caderno ENSAiOS publica entrevista com o historiador Luiz Felipe de Alencastro na Revista Pesquisa Fapesp, em sua edição do mês de outubro.
Historiador propõe que formação do país se deu fora de seu território, modulada por relações econômicas com a África
Entrevista a Mariluce Moura, via Pesquisa Fapesp Online

Uma outra história, uma visão da formação do país muito diversa daquela que nos foi contada nos bancos escolares e cujos mitos carregamos pela vida afora, emerge da leitura de O trato dos viventes: formação do Brasil nos séculos XVI e XVII, publicado em 2000 pela Companhia das Letras. O ponto central dessa história é certamente a visão de que as raízes desta nação encontram-se, não em seu próprio território, mas num espaço transcontinental, luso-brasileiro e luso-africano, fortemente sustentado por uma zona econômica formada pelo Brasil e por Angola que se mantém do século XVI até a efetiva extinção do tráfico negreiro em 1850. A força dessa relação econômica com a África já era patente, aliás, para o Padre Antonio Vieira, que, em obra citada pelo autor do livro, Luiz Felipe de Alencastro (p. 232), observa que o Brasil “vive e se sustenta” de Angola, “podendo-se com muita razão dizer que o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”.

Alencastro, historiador e cientista político, 65 anos, a par de oferecer neste livro, central em seu trajeto intelectual, reflexões embasadas em farta do-cumentação para que se possa repensar a formação do Brasil fora do olhar simplista da dominação Norte-Sul e das lutas só no interior da colônia – dando um novo peso às expedições luso-brasílicas que partem do Brasil para a África no século XVII –, o faz valendo-se de uma narrativa excepcionalmente rica. Seu domínio nesse campo lhe permite entremear as variáveis históricas de longa duração sobre as quais se move, recorrendo quando necessário inclusive a outras disciplinas, com fatos contados em ritmo de aventura e micro-histórias individuais relatadas em minúcias instigantes. O projeto completo de Alencastro de repensar a formação do Brasil inclui mais dois livros em curso, capazes de estender sua visão até 1940. Afinal, como ele diz na conclusão de O trato dos viventes, para apreender a formação do Brasil “nos seus prolongamentos internos e externos”, há que se considerar que “de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado: o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional”.

Professor titular da cátedra de história do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris, profissional com formação e longa vivência na França, para onde foi a primeira vez empurrado da Universidade de Brasília (UnB), estudante de graduação ainda, pelo clima ameaçador que a ditadura instalara no país em 1964, Alencastro teve um período brasileiro de trabalho, de 1986 a 1999. Foi nesse intervalo professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Atualmente, uma vez por ano ele vem ao país como professor visitante da Escola de Economia da FGV de São Paulo e planeja seu retorno definitivo em 2014. A seguir, os trechos principais de sua entrevista, uma empolgante contação de histórias sobre sua produção, seu trajeto intelectual e pessoal.

Eu queria começar por sua visão de que o país se forma fora de seu território.
Bom, como eu cheguei a isso? Estava fazendo uma tese de doutorado com Frédéric Mauro. Ele era discípulo de Fernand Braudel, que liderava um grupo de historiadores que trabalhavam na perspectiva de uma história global, tanto na questão do espaço, que era a Europa nas relações com os países não europeus, como também no aspecto transdisciplinar, envolvendo a geografia, a economia, a demografia e outras ciências.

Isso aconteceu quando?
O debate sobre essas perspectivas globais era dos anos 1950, 1960. Também participavam dessas discussões o historiador francês Pierre Chaunu e o português Vitorino Magalhães Godinho. Eu cheguei na França no final dos 60 e isso fez muito a minha cabeça, no sentido de que o Brasil nessa perspectiva não queria dizer grande coisa em si. Até porque nem existia Brasil no começo dessa história. Existiam o Peru e o México, no contexto pré-colombiano, mas Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos, Canadá, não. No que seria o Brasil, havia gente no norte, no Rio, depois no sul, mas toda essa gente tinha pouca relação entre si até meados do século XVIII. E há aí a questão da navegação marítima, torna-se importante aprender bem história marítima, que é ligada à geografia. Frédéric Mauro trabalhava nessa perspectiva, por exemplo, com o vice-reino da Nova Espanha e de Vera Cruz, que englobava não só a América Central e o México, mas também as Filipinas. Essa compreensão me deu muita liberdade para ver as relações que Rio, Pernambuco e Bahia tinham com Luanda. Depois a Bahia tem muito mais relação também com o antigo Daomé, hoje Benin, na Costa da Mina. Isso formava um todo, muito mais do que o Brasil ou a América portuguesa. Porque o Estado do Grão-Pará e Maranhão, isto é, todo o território do Rio Grande do Norte para cima, estava completamente isolado de Pernambuco, Bahia, Rio etc.

Aliás, em O trato dos viventes você deixa patente o quanto era difícil navegar dessa parte do Brasil em direção àquele pedaço do norte.
É, exatamente, tinha que se fazer a navegação via Lisboa. Eu dou vários exemplos dessa dificuldade: Raposo Tavares e os 1.200 paulistas de sua bandeira saem por esse sertão afora em 1648 e vão chegar a Belém em 1651. É uma das maiores marchas por terra daquela época. Vão até parte da Bolívia, depois sobem pelos rios, chegam em Belém, mas para voltar a São Paulo tiveram que ir a Lisboa porque não tinha navio que viesse para baixo com a correnteza que vai para o norte, a partir do Rio Grande do Norte, e os ventos que sopram para o norte ou para leste e oeste. Se tentassem, o barco os levaria para a Guiana. Inversamente, era bastante fácil ir a Luanda e ao Daomé saindo da costa brasileira abaixo de Pernambuco porque os ventos e as correntes eram favoráveis, tinha navegação disponível e isso teve influência até numa reorganização das dioceses. Depois do período filipino, a Espanha pressionou o papa para não reconhecer o Portugal dos Bragança e aquilo se arrastou até 1669. Bispos morriam e não eram renovados, dioceses ficavam abandonadas. Na reorganização, fizeram uma nova diocese no Maranhão e ela dependia do arcebispado de Lisboa. Criaram o arcebispado da Bahia e ele tinha autoridade sobre a diocese de Luanda. Os cardeais, os bispos, os monsenhores, que tinham na época a maior rede diplomática do mundo, conheciam a realidade dos territórios e dos espaços marítimos.

Isso está muito fora daquilo que tradicionalmente se estuda de história do Brasil nas escolas.
Pois é, mas isso é o básico. Até os nossos bisavós, muitos ainda viajavam de navio. Os imigrantes estrangeiros vieram assim, muitos nordestinos vieram para o Rio e São Paulo de navio, a alta burguesia ia para a Europa de navio, então se tinha o sentido de que o mar une, em vez de separar. Isso condicionava tudo e é essencial para entender as relações do Brasil com o exterior e de uma parte a outra do litoral brasileiro. As rotas pelo mato, que o ouro vai induzir, são do século XVIII. O problema é que os manuais da escola primária e secundária, e até algum livro ou outro de historiador, mostram que Cabral descobriu o Brasil já tendo as fronteiras do Acre e tudo, quando o processo de formação é muito mais complicado.

Em que medida olhar o Brasil de longe foi o que lhe permitiu abordar nossa história de outra maneira?
Eu já dei muitas conferências nos Estados Unidos, na Espanha, na Inglaterra e dou aula na França há muito tempo. Vejo que a visão da formação extraterritorial do Brasil soa óbvia para eles que não têm uma ideia preconcebida. Mas aqui não é óbvio, por quê? Porque tem o peso da história regional, a história singular do Brasil na América Latina, não no sentido de melhor, mas de diferente dos outros, dado o fato de que o vice-reino ficou unido enquanto os quatro vice-reinos espanhóis se fragmentaram em 20 e tantos países. A América britânica, digamos, também virou vários países, Canadá, Estados Unidos e todas as Antilhas que se separaram. As possessões da França também se separaram, porque ela vendeu a Louisiana e depois ficou com a Martinica, Guadalupe, a Guiana e tal. Mas os portugueses vieram para um lugar e ficou tudo unido. Por quê?

Tráfico de escravos para a América portuguesa, nos séculos XVII e XVIII, decorre de comércio bilateral

Sim, por quê, em sua visão?
Vou chegar lá. Mas queria dizer antes que esse fato de ter sido no século XIX a única monarquia das Américas, com o apoio da burocracia portuguesa, levou a que no século XIX se começasse a escrever uma história de encomenda direta da Coroa, para mostrar que o Brasil era unido graças exatamente à monarquia e que sempre houve um sentimento do povo, dos colonos portugueses que estavam aqui, a respeito dessa nação – como se eles tivessem a premonição da nação. A ideia que já se sabia que o Brasil existia não tem base documental nenhuma, o único documento é uma frase ambígua.

De Pero Vaz de Caminha?
Não, de Diogo Pacheco Pereira, que, no Esmeraldo de situ orbis [manuscrito sobre cosmografia e marinharia, de 1506], fala de uma terra que deveria ser descoberta no tempo do rei tal, então alguns argumentam que foi antes de Cabral e a descoberta ficou escondida. Mas isso tem pouca credibilidade histórica.

É aquela velha discussão sobre casualidade ou intencionalidade da descoberta discutida nas escolas nos anos 1960?
Isso. Uma coisa que ninguém fala é que Os lusíadas, que é de 1572, poema para o qual Camões se documentou para narrar a epopeia dos descobrimentos, como todo mundo sabe, fala em suas 1.200 estrofes apenas quatro vezes do Brasil. Duas de maneira indireta. Isso dá a dimensão da insignificância que era o Brasil no século XVI. Importante então era a Índia, a Ásia portuguesa. A historiografia brasileira, num certo sentido, sempre frustrou o narcisismo brasileiro, daí o surgimento de histórias como aquela, no século XIX, de que os fenícios já tinham estado no Brasil. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro decidiu enviar [em 1839] alguns especialistas à Pedra da Gávea [monólito de gnaisse à beira-mar, no Rio, cujo topo está a 842 metros do nível do mar], para interpretar umas inscrições na pedra [dizia a lenda que a pedra abrigava a tumba de um rei fenício que subiu ao trono em 856 a.C.].

Mas, retomando, como uma visão não nacionalista interpreta a possibilidade de unificação desse grande território?
Escrevi em 1979 um artigo sobre “O tráfico negreiro e a unidade nacional brasileira”. A coisa é a seguinte: embora o Rio de Janeiro já fosse capital do vice-reino desde meados do século XVIII, foi quando a Corte veio em 1808 que se criou mesmo um polo administrativo. E o Brasil logo era o único lugar na América do Sul que tinha uma monarquia, fato prestigiado pela Europa porque a república era vista como ameaça. Portanto, o peso da vinda da Corte é uma das razões atribuídas à unidade. O que vejo é que, quando o Brasil fica independente, ele é o único país que está praticando o tráfico negreiro como sempre fez, a partir da relação direta que tinha com a África. Essa pilhagem passa a ser vetada pela Inglaterra frontalmente. A Inglaterra domina os mares, tem meios de pressão, era um pouco a ONU, o Vaticano e os Estados Unidos, tudo somado. O grande império que ditava a lei. Mas o Brasil tinha uma economia agrícola de exportação ligada às oligarquias regionais, metidas no comércio de africanos e na atividade escravocrata. E o Império se legitimava internamente porque a Coroa se apresentava às oligarquias como o melhor mandatário desse país complicado junto à diplomacia europeia e, em particular, junto à Inglaterra. E o Império começa a fazer esse país desse tamanho, a fazer uns acordos de fronteiras. A Independência já fora negociada de forma triangular, porque a Inglaterra representava também Portugal. O pai era rei de Portugal, o filho imperador do Brasil, o intermediário, a Inglaterra.

O que é essa negociação triangular?
Portugal tinha uma dívida com a Inglaterra relativa ao custo militar da expulsão dos franceses, e dizia que não tinha dinheiro. A Inglaterra negociava: “O Brasil deve pagar a Portugal uma indenização pela Independência”. O Brasil pagou. Tomando dinheiro emprestado de quem? Dos Rothschild, banqueiros ingleses. O dinheiro nem saiu de lá e o Brasil carregou essa dívida até a República. É um dos raros países do mundo que pagou a Independência! Como o empréstimo brasileiro junto aos Rothschild estava garantido pela renda da alfândega do Brasil, recolhidos na importação e, sobretudo, na exportação do Rio de Janeiro, a Inglaterra também não tinha interesse em que o governo se fragmentasse. De repente o governo do Rio de Janeiro empobrecia e isso quebrava o principal banco inglês que havia emprestado dinheiro ao Brasil. A pergunta é, afinal, quem pagou o pato pela unidade do Brasil?

E quem pagou?
Os 750 mil africanos que entraram aqui depois da proibição legal do tráfico em 1831. Os navios negreiros desembarcavam ilegalmente até 40 mil africanos por ano no Rio de Janeiro e ninguém via. Legalmente, nos termos da própria legislação brasileira, eram gente livre mas viraram escravos, como explico adiante. E isso manteve a unidade nacional, porque o imperador agora se legitimava com todas as oligarquias dando cobertura a essa pirataria.

Por que você diz que 1850 termina sendo uma data mais decisiva para a formação do Brasil do que 1808?
Esse é o assunto do meu segundo livro, mas já o tenho debatido bastante. Fiz uma crítica às comemorações do bicentenário de 1808, em artigo na Folha. Nas comemorações o Brasil aparecia como país que entra na modernidade por causa da mudança da Corte, com a monarquia se instalando, como não acontecera em nenhum lugar das Américas. A historiografia dominante diz que 1808 foi na realidade o começo da Independência do Brasil, porque houve a abertura dos portos, a Inglaterra se meteu aqui na economia e não saiu mais, e Portugal foi pra escanteio. Então, 1808 e 1822 aparecem como rupturas e o que vem depois é novo. Mas não é.

E por quê?
Porque antes de 1808 o primeiro porto do comércio brasileiro era Lisboa e o segundo era Luanda. Depois de 1808 e até 1850 o primeiro passa a ser Liverpool, mas o segundo é sempre Luan-da. Então o que eu chamo de matriz espacial colonial, a matriz do Atlântico Sul, não foi quebrada em 1808 nem em 1822. Os pulmões do Brasil continuaram na África, em Angola e na Costa da Mina e em Moçambique.

Até que o tráfico de fato acabe.
Sim, até 1850. E tinha gente importante como Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), mineiro, pai da pátria, ministro importante durante a Regência, senador e membro do Conselho do Estado, que achava que ainda dava para empurrar com a barriga, enfrentar a Europa e a marinha de guerra britânica, porque acabar com o tráfico ia arruinar todo mundo no Brasil. O Brasil deu errado no século XIX porque os governantes, a elite do país tomou o bonde errado em 1822 e o preço pago foi alto.

O bonde errado foi continuar apostando suas fichas no tráfico, nessa relação econômica com a África por quase 30 anos?
Sim, é claro que isso permitiu o desenvolvimento do café, mas o peso do atraso para o país, a exploração brutal da mão de obra, o afundamento, a destruição de boa parte da frota mercantil brasileira pelos ingleses, o encarecimento do transporte, tudo isso constituiu um preço muito alto. Sobretudo, houve o sacrifício das duas últimas gerações de negros e mulatos livres ilegalmente mantidos na escravidão. De fato, quando acabou o tráfico legalmente em 1831, a lei dizia: 1) o tráfico está proibido, 2) o africano que desembarcar aqui do navio negreiro é livre quando pisar na praia e 3) quem mantiver essa gente na escravidão é um sequestrador, está mantendo gente livre em cativeiro privado. Mas a lei não pegou. Depois o imperador foi embora, a Regência quis fazê-la cumprir. Aí, em 1848, Eusébio de Queirós assumiu como ministro da Justiça, os ingleses estavam endurecendo as pressões, e Eusébio, que tinha sido chefe de polícia durante 11 anos e nunca pegou ninguém, chamou os negreiros para dizer que não dava mais. E eles votam a Lei Eusébio de Queirós em sessão secreta no Parlamento, acabando definitivamente com o tráfico. Como acaba mesmo, é claro que houve uma negociação. Uma atividade que dura 300 anos, clandestina há 30 anos, lucrativa para um monte de gente e de repente acaba de uma vez só, não indica que a polícia ficou ótima ou que subitamente todo mundo ficou decente. O fim brusco do tráfico em 1850 mostra que houve uma negociação intensa entre as partes envolvidas, entre a bandidagem negreira, os fazendeiros e o governo.

E uma negociação em moeda mesmo?
Não, o Estado decidiu que ia fazer estrada de ferro para o pessoal do café, o mais envolvido na pirataria negreira àquela altura, o que diminuiria o preço do transporte. Decidiu também fazer uma lei para trazer imigrantes, baixando a taxa de exportação do café e fazendo uma porção de arreglos. Aí vem o arranjo principal, que é dito, não escrito, mas acaba sendo efetivado. Porque de repente tinha 750 mil africanos e os filhos deles, os netos, todos ilegalmente nas mãos de soi-disant proprietários. Mas nenhum desses proprietários foi condenado por sequestro e quase todos os indivíduos livres continuaram a ser mantidos na escravidão. Este é o fato escandaloso, um dos maiores crimes do século XIX, ocorrido no Brasil, que não se ensina nas nossas escolas e faculdades: as duas últimas gerações de escravos no Brasil não eram escravos e estavam ilegalmente mantidos como propriedade de alguém, como cativos. Alguns abolicionistas foram ao tribunal, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Luís Gama, e conseguiram libertar uns 500 indivíduos entre as centenas de milhares ilegalmente escravizados. Isso virou um tabu na história do Brasil e hoje pouca gente sabe que a escravidão era não somente imoral, mas era também, e sobretudo, ilegal. José do Patrocínio, em 1880, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, fez o cálculo do que o fazendeiro, a viúva e até o pedreiro que tinha escravo deviam para essa gente ilegalmente mantida em escravidão. Quando hoje se fala em indenização sempre aparece o pessoal que é contra a cota para dizer que isso é importado dos negros dos Estados Unidos, que, por sua vez, copiaram o exemplo dos judeus depois da Segunda Guerra Mundial. Mas a reivindicação no Brasil é de 1880.

Mas os 500 foram atendidos e…
Esqueceram-se de 1,5 milhão de escravos que eram parte dos 9 milhões de habitantes do Brasil em 1872. Fora os que morreram antes. Então foram eles que pagaram o preço da unidade nacional.

Gostaria que você explicasse o caráter econômico que atribui às expedições mistas de portugueses e brasileiros que foram guerrear na África no século XVII.
Isso é justamente outra forma de mostrar que não tinha ainda Brasil. Os paulistas estavam envolvidos na caça aos índios no Paraguai, produzindo alimentos em São Paulo para venda na própria região, enquanto Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia estavam em ligação marítima com a África e produzindo para exportação. Era outro sistema desde a época espanhola, mas, sobretudo, a partir de 1648 na guerra holandesa. Quando os holandeses chegaram em Recife para controlar o açúcar, perceberam que o que dava dinheiro não era só plantar cana e fazer o açúcar, mas também vender africanos para os senhores de engenho. E eles saíram de Recife em 1641 para atacar Angola e pegar assim os polos do sistema escravista. Quando começou a guerra de guerrilhas em Pernambuco, saiu também uma expedição do Rio de Janeiro, para expulsar os holandeses de Angola em 1648.

Ou seja, o Rio era um entreposto comercial desse grande negócio.
Sim, era um nexo comercial nesse negócio que tinha a ver com Buenos Aires. Então, do Rio, os portugueses vão se equipar, financiar uma frota e vão atacar os holandeses em Angola. Não vão levar ajuda para os rebeldes anti- -holandeses de Pernambuco, querem é pegar o deles. Derrotam os holandeses em agosto de 1648, em Luanda, em São Tomé e em Benguela e os expulsam de Angola, o que vai enfraquecê-los em Pernambuco. A partir desta época, começa haver uma presença mais ativa, comercial, política e militar, dos colonos do Brasil em Angola, expandindo o tráfico e as bases da ocupação portuguesa na região. É interessante notar que o tráfico inglês, importantíssimo, maior que o português até o final do século XVIII, o tráfico francês, o holandês, todos mandavam seus agentes até as praias e lá tinham seus intermediários locais, mas só os portugueses junto com os colonos brasileiros entraram terra adentro, pilhando e expandindo as redes de tráfico na África e mais exatamente em Angola.

Rio e Salvador: fundamentais na construção do espaço econômico colonial

E entraram para valer no continente.
Nenhum outro país europeu fez isso, só Portugal, com o apoio desse colonato do Brasil e por causa da gula desse colonato. Sem a compreensão disso, não se entende o Brasil. Toda essa coisa de ciclo do açúcar, do ouro, do café, afora o pau–brasil, que era um negócio de índio, só existe movida a escravos que vinham da África. Foi assim que Minas Gerais pôde ser criada, a partir de cidades já existentes. A sucessão de ciclos produtivos no Brasil só é possível graças ao grande ciclo reprodutivo do tráfico negreiro, graças à injeção contínua de energia humana deportada da África para o Brasil.

É esse então o capital intensivo o tempo todo na formação do país.
Sim, e é isso que vai dar vantagem ao Rio de Janeiro e a São Paulo sobre o Nordeste, sobre Bahia e Pernambuco, depois da Independência. A desigualdade regional vem não só de os primeiros estarem no negócio do café enquanto os outros permaneciam no açúcar, mas do fato de os negreiros do Rio disporem de uma logística transatlântica que lhes fornecia mais escravos. Isso também aconteceu em 1808, e quase não se tem ideia de como 1808 foi também o ponto do atraso. Por quê? Porque a Inglaterra, em1807, e os Estados Unidos, em 1808, proíbem o tráfico. Então, toda a rede negreira que tinham montado nos portos africanos é engolida pelo Brasil. Os negreiros brasileiros também vão se beneficiar com as novas mercadorias para o escambo na África que começaram a ser importadas da Inglaterra depois da abertura dos portos, em 1808.

É um comércio de armas, de bens de capital, de víveres, de gente…
Isso tudo, inclusive Moçambique, que não estava antes no circuito, vai ser abocanhado pelos negreiros brasileiros, principalmente do Rio de Janeiro, depois de 1808.

Mas por que 1808 em seu olhar é também o atraso?
Porque vai marcar o Brasil com o trabalho forçado e com uma forma de tráfico negreiro, de dominação econômica e social que já estava saindo do mapa no mundo. Porque vai transformar o Rio na maior cidade escravista do mundo, só no Império Romano há algo comparável: o Rio de Janeiro tinha 260 mil habitantes em 1849 e desse total 110 mil eram escravos, 42%. Isso não tem paralelo e trata-se então da maior cidade do hemisfério Sul!

Tem um momento no Trato dos viventes em que você diz que o estatuto dos índios se define em relação ao dos escravos negros. Em que sentido?
É que não dá para entender a legislação indígena numa lógica própria, sem ver que ela está em relação com os escravos africanos desde o século XVI. A política de pressão em cima das aldeias para escravizar, reprimir e matar índios foi modificada em 1580, porque os próprios conselheiros jesuítas defenderam amaciar as relações com os índios porque eles os defendiam das revoltas negras. Nunca os missionários entraram na briga para saber se o africano havia sido ilegalmente escravizado ou não, mas a escravidão indígena foi embargada pelos missionários desde o começo, e isso também é um pouco interesse dos negreiros, ou seja, que a escravidão africana predomine.

Você também trata da questão da dessocialização e da despersonalização do escravo negro. Dá para explicar essas noções?
Eu tomei emprestadas essas noções de Claude Meillassoux, antropólogo econômico importante, autor de A antropologia da escravidão. Ele mostra que a escravização tem dois processos: o primeiro é a despersonalização, e o segundo e a dessocialização, quer dizer, a pessoa é extraída de sua comunidade, do seu país, da sua nação, da sua língua e da sua religião para ser levada a outro lugar. O escravo é sempre um estrangeiro. E, nesse outro lugar, ele vira coisa, é despersonalizado. Vira mercadoria, gado, no momento em que é ferrado. O ferro é a marca do imposto pago à Coroa. Em quimbundo, língua de Angola, chamava-se karimu, e daí vem a palavra carimbo. Na ilha de Luanda, hoje ligada ao continente, os grandes navios negreiros ficavam ao largo e as canoas atravessavam a baía para embarcar e pegar os escravos que estavam nos depósitos na cidade. Dali eles eram encaminhados para os navios no porrete, porque entravam em pânico, achavam que iam ser devorados pelos europeus e que seus ossos serviriam para fazer queijo e vinho. A memória popular ali da ilha de Luanda, que ainda alcancei em 2003, dizia que só quando eles iam para o Brasil é que se tornavam escravos. É difícil se dar conta do choque psicológico terrível sofrido por essas pessoas que vinham de longe, viajando no interior da África às vezes um ano inteiro até chegar a Luanda, sofrendo incessante violência física e psicológica dos negreiros africanos. Depois entram em cena os negreiros portugueses e brasileiros e os transportam para o outro lado do oceano. Então eles chegam sofridos, abalados, para serem escravizados. E demoram até tomarem pé, conseguir se revoltar e se comunicar com os outros que vieram de outras terras africanas para o Brasil.

Trata-se de remontar algumas relações em condições completamente adversas.
Sim, remontar relações sociais, se repersonalizar dentro da escravidão. No fundo, o grande traumatismo da população negra é que os indivíduos não sabem de onde vêm. Não sabem de que país vêm.

Acho admirável, na maneira como você escreve O trato dos viventes, sua capacidade de intercalar com o discurso erudito tantas histórias atravessadas por uma intensa carga humana, digamos assim.
No debate historiográfico há uma corrente que defende que tem que se fazer a micro-história dos indivíduos sem querer açambarcar uma perspectiva global, porque, argumentam, não dá para ler tudo como antes. Não é bem assim. Antes é que era mais difícil, porque era preciso ir a cada biblioteca em que estavam os livros, os documentos, enquanto hoje tenho aqui um disco rígido com muita documentação do Brasil e de Angola, por exemplo.

O que sua elaboração intelectual tem a ver com os trajetos da sua vida privada? Vi, por exemplo, que você dedica O trato dos viventes a três jovens vítimas da ditadura, assassinados pela repressão.
Dos três, Honestino Guimarães, Heleny Guariba e Paulo de Tarso Celestino, conheci melhor Heleny Guariba e Paulo de Tarso..

Você saiu do Brasil na época das perseguições políticas, foi para a França, estudou em Aix-en-Provence etc. Como tudo isso foi moldando sua vida e sua produção intelectual?
Eu estudava no Elefante Branco [Centro de Ensino Médio Elefante Branco – Cemeb], que fez 50 anos agora, depois fui para a UnB [Universidade de Brasília], em março de 1964. Veio o golpe, uma coisa muito surrealista naquele 31 de março/1º de abril em Brasília. De repente chegaram uns caras da PM mineira, de ônibus urbano, com fuzil entre as pernas, e aquilo era o golpe. Todo mundo era meio juscelinista em Brasília e estavam esperando que tivesse uma reação, eleição no ano seguinte e aí o Juscelino [Kubitschek, presidente da República de 1956 a 1960] ia ganhar. O cálculo estava errado. O pessoal que dirigia a Feub (Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília) saiu quando houve o golpe, e houve nova eleição e eu fui eleito na chapa, cujo vice-presidente era o Paulo de Tarso Celestino. Eu era primeiro- -secretário. O nosso sucessor, quando saímos, foi o Honestino Guimarães. Daí a ligação. Já a Heleny eu conheci em Aix-en-Provence

Você era do Partido Comunista?
Não, mas eu era próximo das posições do partido. Naquele momento só tinha em Brasília o PC e a AP [Ação Popular]. As coisas começaram a ficar mais difíceis com os IPMs (Inquérito Policial Militar). Tive que depor no IPM do método Paulo Freire, no da UNE, em vários. Não éramos tratados com violência, mas a coisa aos poucos ia engrossando. Eu era amigo do [jornalista] Fernando Pedreira, que dirigia a sucursal do Estadão, e ele disse que o jornal estava precisando seguir os processos do Supremo [Tribunal Federal, STF], onde estavam entrando os pedidos de habeas corpus [para os perseguidos da ditadura]. Ele me propôs cobrir o Supremo à tarde, e só tinha aula pela manhã, e aceitei, fui jornalista. Depois ganhei uma bolsa de estudos do governo francês e fui para a França.

Quantos anos você tinha?
Eu tinha 20 anos. Fui estudar história e ciências políticas em Aix-en-Provence, me formei e fui em 1970 para Paris fazer o mestrado em etnologia e o doutorado em história.

Você foi literalmente sustentado pelo governo francês por um bom tempo.
Tive bolsa francesa durante seis anos. Quando eu estava no meio do doutorado, fui dar aulas em Vincennes, que era na época uma universidade experimental, depois comecei a dar aula em Rouen como professor assistente.

Quando você começou o trabalho que se tornaria em O trato dos viventes?
Comecei o doutorado antes de 1970 e ali desenvolvi algumas ideias que aparecem no livro. Mas foi em meu período de trabalho no Brasil que as coisas avançaram. Fiquei na França até 1986, quando voltei para trabalhar no Cebrap e na Unicamp. Celso Furtado, que era muito amigo, Fernando Henrique Cardoso, que eu conhecia através de Celso, tinham me aconselhado a voltar. Também Roberto Schwarz, que já tinha voltado para o Brasil, meu amigo e guru intelectual, Violeta Arraes, irmã de Miguel Arraes, que era a líder dos exilados em Paris, enfim, toda essa turma me deu muita força para eu voltar. Entrei no Instituto de Economia na Unicamp, que era então um lugar de debates. Fui dar aulas de história econômica, fiz adiante a livre-docência e, depois, concurso para adjunto. Fui para o Cebrap também, e era muito bom porque o centro nessa época tinha pesquisadores ligados ao PT e ao PSDB: Francisco de Oliveira e Paul Singer, Giannotti e Ruth Cardoso. Foi um momento muito importante, tempo da Constituinte, que revirou minha cabeça.

Ao mesmo tempo você foi coordenador de área na FAPESP?
Luiz Henrique [Lopes dos Santos], que era assessor adjunto para humanas na Fundação e era ligado ao pessoal do Cebrap, me convidou, com o apoio dos colegas da história, para ser coordenador da área de história, geografia e pré-história e eu trabalhei lá de 1989 a 1994. Mas depois da livre-docência eu tive uma bolsa da Fapesp para transformar meu trabalho em um livro.

Uma bolsa de pós-doc?
Sim, na Sorbonne, com Kátia Mattoso [historiadora brasileira, falecida em Paris em janeiro de 2011]. Ela estava na cátedra de história do Brasil, da qual foi a primeira titular.

Para ficar claro: seu projeto envolve três livros ligados à formação do Brasil?
Sim. Veja, tem essa coisa da ligação dos africanos e dos índios, depois vira ligação da escravidão com a imigração. Tem-se estudado a legislação da imigração separado da legislação abolicionista. Mas as duas coisas andam juntas, desata-se de um lado e está puxando do outro. E é sempre o Estado. Esse é o segundo livro, que vai até o século XIX e tenho feito alguns artigos, por exemplo, o que publiquei nos Annales, em 2006: “Le versant bresilien de l’Atlantique-Sud: 1550-1850”.

Até que ano você vai com os três livros?
A 1940. Eu discuti muito com Celso Furtado e Roberto Schwarz na França e no Brasil sobre esse plano de trabalho

Depois de 1850, o que ocorre?
Não se está mais ligado à África, mas a mão de obra ainda depende de fora, da imigração estrangeira. Mas a partir do período 1927-1934 entram mais migrantes nordestinos do que estrangeiros em São Paulo. Aí ocorre outra ruptura, o mercado de trabalho no Brasil se metaboliza, depende somente da reprodução interna da força de trabalho.

Você voltou por que para a França em 1999?
Tensões e algumas indefinições no trabalho mais alguns problemas pessoais e aí veio uma carta do reitor da Sorbonne dizendo que tinha um posto de história do Brasil que talvez me interessasse. Deu certo e eu fui como professor visitante para começar a dar aulas em setembro, enquanto esperava o novo concurso em março. Passei, virei titular e estou lá até agora.

E aí sua ideia é voltar ao Brasil.
Sim, em 2014.

Vargas e o fio vermelho

Por Theotonio de Paiva

Da série Pequenos Apontamentos noturnos

Naquela hora em que acordei pela manhã, ele já estaria morto. Há muito tempo que me via realizando aquela ação. Sempre da mesma forma, como num ritual. Talvez fosse alguma forma concebida anteriormente de cumprir aquelas exéquias tardias. Precisava retornar ao quarto em que ele se matara. Um tiro. Um tiro no peito. A morte como um espírito de libertação. Mas o que isso efetivamente significa? Estou aqui em seu quarto. E isso remonta há um ano ou mais. Passeio os olhos pela carta. Não por aquela que se tornaria famosa, citada em diversas obras, algumas de significativa relevância, e mais ainda em livros escolares, páginas de jornais que se rendem a escandir (tortas) homenagens, e por aí vai sem mãos a medir. Porém, uma outra carta, escrita no início do ano de sua morte, em que ele legava aos trabalhadores a sua herança mais expressiva, espécie de resíduo de um petardo cuja contaminação iria se projetar longamente no tempo. Por qual motivo? Que intenção manifesta aquele homem se obrigara a escolher a fim de promover uma determinada qualidade de espólio político a ser transmitido a outras gerações? Mas quem escrevera aquilo comandara em outros tempos talvez a mais sangrenta ditadura do país. Graciliano deixaria um testemunho insofismável junto às gretas de sua cela. E o enigma se apresenta ainda mais difícil de interpretar. Quando parecia que a sua “maldita” herança estivesse morta, ela continuaria a se projetar na condição de um mito redivivo que a nação se apresenta ávida por escandir as palavras. Estas se deixam transparecer numa forma ambígua, como o seu personagem inspirador. Que mistérios rondaram afinal aquela noite? Que sentimentos notáveis foram capazes de promover? Aqueles homens que, durante a noite, enquanto se desenrolava a reunião no palácio, clamavam pela sua morte no lado de fora, iriam se desfazer em prantos como meninos diante de uma cena em que a morte do grande pai se desenharia integralmente. Que explicação pode ser oferecida a propósito? Infantilidade emocional, política, de um povo? Muito provavelmente. Mas restringir qualquer análise a esse princípio é enveredar por caminhos distantes daqueles que podem nos levar a conhecer a alma coletiva desse mesmo povo. Lembro de um relato que me marcara profundamente, cujo autor sabidamente a historiografia oficial tratou de esquecer. Em suas memórias, Uma vida em seis tempos, Leôncio Basbaum, médico de formação humanista e militante do velho PCB, ingresso no partido num período anterior à entrada de Prestes, revelava o seu espanto frente àquele acontecimento monstruoso que parecia ter revirado pelo avesso o sentimento coletivo de todo o país. E especialmente na cidade do Rio de Janeiro. Uma multidão incalculável acompanharia o féretro, visivelmente compungida pela morte de Vargas. Nada. Nada parecia ter condições de aplacar a dor. Talvez apenas aquelas palavras incrustadas na memória de uma gente que, por muito tempo ainda, viria a caminhar com o sentimento de orfandade, espectro de um mundo, quando esse mundo, já sendo um outro, pareceria então se reconstruir. E aí, não mais através daquela esperança mítica de redenção, porém a partir de uma tentativa de ação presente de um povo.