A revolução e a aurora

Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, com a Cia. de Mysterios e Novidades

Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, com a Cia. de Mysterios e Novidades

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Por Theotonio de Paiva

Seria toda revolução uma aurora?
Oswald de Andrade, Um homem sem profissão

Ao longe, vemos se aproximar um grande cortejo. São atores, bailarinos, músicos, que surgem da direção do cais. São tantos que a vista se perde em contar. Em seus passos cadenciados, embalados por uma velha melodia, atravessam uma larga via expressa. Talvez nos queiram dizer que aquela caminhada começou nos desvãos do mundo. No alto, trazem um caixão envolto com a bandeira do Brasil. Parece tratar-se de um herói. Mas que herói seria esse que entidades míticas reverenciam dessa maneira, a ponto de virem à frente, abrindo os caminhos?

O destino do teatro é andar. Assim, muitos se erguem às alturas, caminhando em pernas de pau, equilibristas de um destino, como os gigantes das velhas fábulas. Observados mais de perto, julgamos, pela doçura dos seus olhares, dos seus meneios, que, ao trazerem costumes religiosos antiquíssimos, aliados às fontes pagãs, não reverenciam uma personagem qualquer.

E isso nos faz pensar que também o tempo é outro e precisa ser mais bem compreendido, pois se divide em diversas possibilidades e criações. Desse modo, na narrativa da Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África, sobressai de imediato o tempo da celebração.

Dança dramática revisitada pela Grande Companhia Brasileira de Mysterios e Novidades, sob a direção de Ligia Veiga, numa dramaturgia a partir de textos da diretora em parceira com Edmilson Santini, espetacularmente a ela se une um outro tempo, aquele da história concreta.

O primeiro é um tempo arcaico, ao passo que, no último, estamos distante apenas de um século, num Rio de Janeiro, capital do país na época, que se transformava rapidamente. E é por aí que o sagrado e o profano se entrelaçam.

Naqueles primeiros anos de uma era dos extremos, a cidade, capital de uma jovem república, tendo dobrado a sua população na década anterior, contabilizava a marca de um milhão de habitantes. O impacto disso no papel a que se destinava o Rio de Janeiro irá se potencializar com as obras da reforma do porto e a construção do cais.

E essa ação não acontecia de forma a levar em consideração os interesses de amplos setores da população, sobretudo das classes subjugadas. Muito ao contrário. E se dava a conhecer através dos morros arrasados, das avenidas cortadas para darem vez somente aos moços e moças bem trajados da belle époque, pela destruição de abrigos e casas populares, curiosamente no suporte da lei que constrangia cidadãos.

Essa calculada ação do Estado, que ficou conhecida como bota-abaixo, foi ordenada a partir de um conceito visando a implantação do progresso e da civilização em termos definitivos. Se quisermos entender um pouco mais o que estava acontecendo, precisaremos levar em consideração o processo que as regiões periféricas ao desenvolvimento industrial iriam experimentar, num quadro que consagrava a hegemonia européia por todo o planeta.

Assim, ao se transformar numa capital que se queria majestosa, com ares parisienses, abandonando os antigos contornos mouriscos, herdados da cultura ibérica, a cidade, inconsequentemente, via seus filhos serem expulsos do seu próprio mundo.

Num contraponto a esse estado de coisas, curiosamente se ergue o cortejo na antiga porta de entrada da cidade. Exatamente ali, naquele trecho da nossa costa, onde os navios estrangeiros outrora atracavam e despejavam levas de homens e mulheres d’outras terras. Interessante lembrar que foi exatamente essa condição uma das armas de convencimento para a grande transformação urbanística daqueles primeiros anos.

Encenado numa tarde de outono, num domingo, na antiga Praça Mauá, em frente ao Museu de Arte do Rio – MAR, a Chegança do Almirante Negro deixa claro que irá nos revelar, melhor, tirar o véu das nossas sabenças confusas e mais estupidamente imediatas. E é aí, quando aquela rude pergunta repousa de novo: quem é esse almirante negro? Talvez fosse melhor começar sabendo o que ele não é.

Estamos distantes daquelas figuras que, num passado não muito remoto, rapidamente se transformavam em efígies de poderosos, lambidas pelos dedos infantis nas páginas dos livros escolares. Nada de presidentes engalanados, donos da pátria, acadêmicos, marechais de ferro, poetas de sobrecasaca, ou heróicos bandeirantes que se glorificaram em “adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne humana”. Nada disso encontraremos nas vestes brancas de um estranho chamado João. A bem da verdade, a imagem do herói é cerzida no manto de uma fidalguia popular.

E o espanto que nos faz admirar tão velha criação humana, em parte, se dá por conta dos seus realizadores tomarem para si o papel de presentificar o mito, numa vasta e portentosa celebração/representação. E, assim, na sua alegria descomunal, acenam todos aqueles marujos de araque, dando vivas como quem re-apresenta o que poderia ter sido e não foi. Orgulhosos de si e da fantasia que expulsam do ventre. Nela, veremos, adernando em navios espetaculares, o episódio da Revolta da Chibata e de seu líder João Cândido Felisberto, o almirante negro.

Trata-se, provavelmente, de um dos movimentos políticos mais significativos da era moderna do Brasil. Como se sabe, a Revolta foi organizada por militares da Marinha do Brasil, cujo planejamento, por cerca de dois anos, viria a explodir num intenso motim, durante a semana de 22 a 27 de novembro de 1910, na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Fundamentalmente, ocorre numa reação aos intensos castigos corporais e ao oferecimento forçado do consumo de carne podre a que eram submetidos os marujos.

Não é difícil entrever, nesse quadro, uma espécie de renitência dos tempos do escravismo. Curiosamente, o escritor Oswald de Andrade, uma das mais expressivas testemunhas daquela revolta, irá comparar, em seu livro de memórias, Um homem sem profissão, a experiência narrada no filme Encouraçado Potemkim, de Sergei Eisenstein, às reivindicações dos marujos brasileiros. Vamos lá.

Chegança

Como se fossem pelos ares, em galopes de pernas de pau, os atores e bailarinos criam embates, em danças e contradanças. Igualmente pelo ar, os músicos plantados no chão fazem revoar uma antiga toada dos marinheiros. Por anos seguidos, a canção fora associada a um verde amarelismo ufanista, espécie de devotamento cívico, que mascarava dores e chibatas, quando não ostentava toda a sorte de opressão. No entanto, agora, toma-se novamente gosto por ela. Como se a velha melodia fosse devolvida aos seus legítimos senhores, duramente arrancada que fora por mãos inábeis, para dela cuidar de forma perversa e molestá-la. Isso talvez equivaleria a dizer que o nosso navio, ao menos numa vaga esperança, também flutua.

Mais à frente, desce o corpo à terra. Se o almirante está morto, é nesse momento que a sua história tem início. Contada por bufões, que se desdobram em inúmeros atores-narradores, é essa reinvenção que dará suporte ao mito, levando-nos a pensar naquela linha tênue, a separar toda a fantasia da história, e retornando pela imaginação em voos surpreendentes.

Mas, do quê exatamente eles falam? A chegança, que serve de suporte à narrativa, ao invés de contar a história de mouros e cristãos, como versa a tradição dos folguedos, inverte a roda. Dessa maneira, a tradição imemorial é posta a serviço de uma recriação sensível daquilo que originalmente pertencia a um mundo ibérico e que nos chegou pela audácia, o destemor e a violência dos colonizadores, abrasileirando-se indelevelmente, unificada que fora pelo trabalho marítimo.

Quando paramos para observar a Chegança do Almirante Negro, notamos, contudo, em sua narrativa, a presença de uma história de tempos profanos misturados a uma transcendência que se liga aos ritos dos antepassados negros, negros assim como o nosso herói. E exatamente por isso se diferencia, ainda mais, das cartilhas e murais canônicos. Cândido, aliás, nos é apresentado ainda menino, como um antigo negrinho do pastoreio, que um dia irá se juntar às armas, por força da precisão e de algum oculto desejo heróico.

Mas a sua história seria outra, de um outro heroísmo. Assim, nesse auto popular brasileiro ocorre toda a sorte de violências, castigos corporais, lutas e revoltas, compondo um quadro extremado e violentamente poético de esperanças de um novo tempo, naufragadas em novas esperanças desesperadoras. E será João o grande líder que irá conduzir aquela pequena frota e os homens.

O embate decisivo, quando as armas dos navios apontam para a cidade, trazem clamores e revoltas de toda sorte, em torno daquela epopéia. Parte da população civil se vê convidada a se envolver e a decidir de que lado está, ou identificados com os marinheiros, ou com o poder do Estado. Não há meio termo.

Dessa maneira, a cena é invadida por personagens que medem forças políticas e indiretamente repensam o estado civilizatório em que nos chafurdamos. São populares, jornalistas, políticos e artistas. E ditadores disfarçados, marechais, representantes do grande capital, altas patentes. Bem-intencionados, cretinos, puros d’alma, malfazejos, oportunistas e covardes. Alguns cabem na história como maioria. Outros têm os seus nomes reduzidos a lembranças incômodas.

E, em meio a todo esse conflito, surge como um bálsamo do futuro o relato sereno e vigoroso de Oswald de Andrade. Numa noite, ainda jovem, ao sair da casa de amigos, em meio à Avenida Central, mais tarde Rio Branco, o poeta ouviu falar em revolução. O coração maravilhado e sedento de aventuras, pergunta: onde? E apontaram o mar. E do mar se escutava um “prolongado soluço de sereia”.

E novamente no cais, ao admirar uma baía que “esplendia com seus morros e enseadas”, o escritor, lá pelas quatro da manhã, naquela hora shakespeariana em que tudo pode acontecer, qualquer levante, qualquer virada radical no enredo, é acordado por um reles ladrão.

Encontrava-se nos jardins da Glória, perto da Praça Paris. Em frente, navios de guerra, todos de aço. Naquele momento, reconhece o encouraçado Minas Gerais, que conduzia a marcha, o São Paulo e mais um outro. E, simbolicamente, todos ostentavam, “numa verga do mastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha”.

E, assim, conduzido por um destino zombeteiro, o poeta estava “diante da revolução”. E ali, muito provavelmente, ainda distante do que aquilo efetivamente significava para a história do país, semearia a pergunta que um diria conseguiria exprimir, numa notável poética: “Seria toda revolução uma aurora?”

Os dois movimentos se integravam. A esperança dos homens por uma radical transformação do mundo, ainda alicerçada, segundo alguns, numa categoria mítica, e a expressão do próprio mundo que se revigora em seus nascimentos e mortes, em suas noites de frio e suas manhãs ensolaradas. E aí, desembocamos nas cheganças.

Em alguma medida, as cheganças, duramente construídas por séculos de sabedoria popular e semi-erudita, se combinam com uma tradição muito antiga, que envolve a dialética vida e morte.

Espantosamente, nelas testemunhamos um registro humano das expressões dos ciclos vitais. Surgem enquanto possibilidade de compreensão do homem diante de um mundo tão fascinante quanto assombroso. E ele próprio, homem, sujeito e testemunha dessa transformação, chega (de chegança), para lutar e contemplar. E era (e ainda é) esse o mundo do folguedo popular, considerado como um ato divinatório, a considerar a própria criação como uma expressão que se perde em tempos arcaicos.

No entanto, se olharmos bem, na Chegança do Almirante Negro no Mar da Pequena África esse ciclo é diverso da tradição popular. Vai além. Nem melhor, nem pior, mas opera num minuano que sopra para outros lados, provocando um refazimento daquilo que herdamos para aquilo que potencialmente somos enquanto nação brasileira. E se deixa levar, ao final, num novo cortejo que se encaminha para um outro tempo, de ressurreição do herói, cujos cantos ensejam o romper de uma nova aurora.

Este texto foi publicado originalmente no Outras Palavras.

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Experiência que tem animado, com o mais profundo interesse, algumas grandes expressões da história do pensamento, a idéia de conhecer aqueles desejos e motivações terríveis, que alguns personagens possuem como eixo central em suas criações, tem mobilizado, ao longo dos tempos, tanto estudos da literatura, quanto da dramaturgia. E, exatamente pela sua condição de serem figuras invariavelmente contraditórias, tais criações, apesar de encerrarem um princípio mobilizador determinante em suas condutas, não necessariamente revelam seus objetivos de imediato. E é exatamente isso o que as torna sedutoras e pontos de partida para toda a sorte de reflexão sobre os habitantes dessa rocha que gira em torno de uma bola de fogo.

Na medida em que nos aproximamos daquelas motivações e objetivos, somos levados a entender melhor, ainda que muito modestamente, acerca daquele homem, palpável, concreto. Contudo, aí temos um outro problema: ainda é possível afirmar, sem nenhum alcance da dúvida, que tal ser assim exista nesse início de século, após tantas transformações, tantos descentramentos, como sabidamente sintetizou Stuart Hall? Posto o devido reparo, caro leitor, precisamos seguir adiante.

De todo modo, resta a especulação: como proceder a essa façanha, de procurar as mais difíceis traduções da alma humana, se não for através da arte? Das coisas que aprendemos e não aprendemos nos discos, não seria difícil esquadrinhar, por exemplo, aquilo que se acha perdido nas conversas mais ou menos íntimas ou nos conchavos, bem como a indecisão ou o medo nas falas interditas. E contaríamos, talvez, as choramingas entre grandes conhecidos, assim como os comentários ignominiosos e patéticos da internet, até desemborcarmos nos julgamentos públicos, e a redenção através da cicuta ou do choro do discípulo. Evidentemente, desde que este tenha talento suficiente para deixar o legado de uma grande obra.

Não é difícil perceber, pois, que nada lhe tira o mérito e a mediação segue como o grande encantamento da arte: aprender a ver e a transver, como dizia o poeta, é um exercício profundo.

E a arte jamais se furtou. A literatura, o teatro, o cinema, em suas mais distintas concepções, deram asas a algumas das criações mais notáveis do espírito humano. E, ao conceberem personagens-símbolos, chegaram muito perto do inferno e do maravilhoso.

Neste sentido, a aproximação com parte daquele imaginário, mais ou menos fantasioso, possibilita que, em nosso ato de decompor sistemas, através do qual o texto se fundamenta, possamos também estabelecer uma visada que ambiciona compreender mais detidamente os novos/velhos enigmas que porventura estejam surgindo. E é essa uma porta de entrada para a reinvenção da própria tradição literária.

Portanto, com grande engenho, não foram poucos os autores que conseguiram apresentar-nos algumas criações especialíssimas. Em muitas delas, alguns traços deixavam claro que a sua aposta substantiva se afirmava no “mundo dos homens”. Desse modo, objetivava-se compreender melhor o mundo real. E, nesse quadro, destacavam-se personagens que se definiam por guardarem algumas ambições a qualquer preço.

Aquieta o coração, leitora, pois não é tão simples encontrar sujeito que se preste a determinados serviços. A concretização de alguns objetivos, sabemos, encobre uma aceitação mais ou menos tácita de outras ordens de princípios, de composições de poder muito bem administradas, que incluem, paradoxalmente, em determinados casos, uma evidente subserviência a um outro mando, pois ninguém governa sozinho, diz o adágio. No frigir dos ovos, o elogio da vassalagem requer talento e arte.

Mas isso ainda não é nada. Na verdade, uma aceitação plena dessa nova condição, qualifica esse hipotético personagem-síntese, a um duplo movimento de auto-afirmação e fechamento em si mesmo. E estará pronto a entregar a própria alma aos princípios mais abjetos, enquanto acredita, na verdade, que dedica a própria vida a uma consagração perpétua, dentro do espírito de uma auto-representação idealizada.

Evidentemente, compreenderá o leitor, parte significativa da sociedade, presente naquele mundo imaginário, está pronta, pelo menos, a intuir a natureza daqueles movimentos de poder. Desse modo, não seria difícil encontrar nas descrições, nas rubricas do autor, nas observâncias dos coros, a intensidade daquelas manobras.

Entretanto, assim como existem as coisas dizíveis, aconselhava-se, por uma outra medida, a não ir além de um silêncio constrangedor. Quantas vezes, os membros da sociedade, regidos por um Corifeu, não se detêm em suas angústias e se afastam de si mesmos? Quase sempre, nesse abandono, entregam ao destino aquela difícil medida de decisão – imprecisão da vida e de todos os governos.

Muitas das vezes, não é difícil vislumbrarmos, por detrás daqueles contornos terríveis, compreendidos como personagens de grande intensidade dramática, uma fantástica capacidade de desvelar o não compreendido. Naquelas jornadas, somos apresentados aos infortúnios. Profecias, motivações para crimes, assassinatos, golpes, perversões de toda ordem, bailam numa dança macabra, leitor inquieto, e nos conduzem a uma espécie de tragicidade plasmada na solidão, ou na loucura.

Contudo, no campo da grande arte, seja erudita ou popular, é preciso avançar até o fim. E então se constata que não há meios da imaginação dar meia volta e se aquietar intimidada. Ela avança e se pronuncia de um modo violento sobre os aspectos mais aflitivos. E cobra do leitor que lhe decifre o enigma. Mas, como se valer para tamanha empreitada? Qual a chave que se emprega?

Para entender a lógica das motivações de certas criações, muitas das vezes, é comum nos surpreendermos agindo como se fôssemos um ator. Como assim? Foi exatamente isso o que você leu, leitora. É uma lógica tão simples: o que eu faria se ali estivesse? De pronto, a roda do mistério começa a girar mais intensamente.

Nesse instante, nos orientamos mentalmente para compor um personagem. Rapidamente o abraçamos como uma partitura, que devesse ser construída a fim de chegar à arte da representação. E nos imaginamos, curiosos, em condições de tocar, ainda que de leve, a natureza difícil que nos causava admiração e perplexidade, medo e ira.

Ao mobilizar tantas mulheres e homens, essa roda do mistério é dona de uma intuição singular. Por qual motivo? É que ela mesma carrega, bem lá no alto, um raro instrumento de orientação, a antena da raça.

Para chegarmos a determinadas percepções, e o leitor já deve ter percebido há tempos, precisamos dispor igualmente de instrumentos, que nos permitam adivinhar aquilo que se esconde no outro canto do mundo. E, às vezes, para que se realize, esse encontro necessita apenas atravessar uma porta estreita a fim de se maravilhar. No outro lado de um muro, o olhar se depara com uma diversidade estupenda, não de respostas precisas, mas de novas e inquietantes perguntas.

Num jogo absolutamente lúdico, somos capazes de manejar alguma espécie de bússola, com feição diversa. Nessa nova condição, nos tornamos senhores de novos movimentos e percepções. No entanto, cuidado. Esse instrumento sensível pode confundir as direções das vagas no meio de uma tempestade, encobrindo a verdadeira vontade humana. Mergulhados nas aparências, chegam até nós, as surpresas e os encantamentos, como chegaram até Ulysses os cantos durante a travessia. E tal assombro pode ser revelador ou simplesmente fatal.

Mundo que segue, não é difícil qualificar como uma experiência superior os sentimentos encontrados nas fibras internas daquelas construções literárias e teatrais, mesmo quando entendidas como as mais perversas e ignóbeis, semeaduras da cólera e do ódio. E, ao fazermos a incursão por aquela dimensão simbólica, somos levados a procurar o sentido ou a ausência de sentido da experiência humana.

Com qual objetivo tudo isso? – voltará a um ponto de retorno o nosso infatigável leitor. De algum modo, ao nos virarmos para esse problema, valendo-nos de uma curiosidade que não conseguimos aplacar, procuramos, com maior ou menor consciência, tentar desvendar algumas dimensões veladas, escondidas, escamoteadas, cuja força celebra algum tipo de conhecimento superior. O mal precisa ser re-conhecido.

Fundamentalmente, aceitamos o difícil hábito de nos deixar impactar, sobressaltar mesmo, pelas manifestações mais terríveis. E com elas, próximo a elas, somos tentados a entender o que a simples colocação de uma máscara na expressão do outro o transforma inexoravelmente. Às vezes, enquanto expressão de poder, em outras, como inapelável submissão à condição de servilismo. Em outras, as duas formas conjuminadas.

Mas não fiquemos somente nisso. Uma experiência dessa natureza – chegar próximo das motivações mais complexas de seres ficcionais – nos faz entender melhor em relação àquele que se apresenta como um estranho. E, de algum modo, paradoxalmente, tem-se aí também uma porta de entrada para si mesmo.

Algumas daquelas personas, feito máscaras construídas por mãos capazes de esculpir com todo o esmero um ríctus de estranha perversidade – aonde nos conduziriam? Pois bem, diria a leitora preocupada em entender o espírito humano, que tais personas surgiram curiosamente já imbuídas de uma confrontação categórica. Que tipo de confrontação? – me aproximo para entender melhor.

Elas precisam do conflito e da dor, responde afirmativamente. E argumenta, balançando-se com o corpo, como se através dele duvidasse daquilo que o hálito deixa escapar: essas mesmas personagens são ditadas por suas condições sociais e opções políticas. Emerge a condição de serem escravos de uma espécie de delírio, pois incapazes de reservarem alguma medida que ilumine a lenta agonia noite adentro.

Não conseguiriam voltar atrás? – provoco. É bem mais do que isso: não há como voltar atrás. Inflexíveis até a medula, não aprenderam a prescindir da espantosa violência que a espécie carrega como um sinal de Caim. E conclui: não seria difícil encontrar naqueles conflitos apresentados uma proposição maniqueísta de um mundo dividido rigorosamente entre homens bons e maus – e os maus evidentemente estariam sempre do outro lado, na mais desprezível aliança.

Com efeito, faço pelo meu lado algumas ponderações. Defendo que é comum, procurar, por todos os meios, especializados ou não, denegrir o outro como um mal que mereça ser extirpado inapelavelmente.

Ora, num mundo que historicamente apresenta uma grande dificuldade em ser mais bem compreendido – responde timidamente – algumas manifestações de ódios e violência soam como se acontecessem numa esfera que dificilmente encontra o seu sentido. Se quisermos ampliar o nosso entendimento, poderemos conjeturar sobre os verdadeiros responsáveis pela percepção de um mundo confuso. No entanto, é curioso notar o quanto ainda somos inundados por uma espécie de cegueira.

Por outro lado, algumas angustiantes observações notadas, aqui e ali, poderiam nos levar a especular se não estaríamos, diante do delírio e da cegueira, na condição de reféns. Eles serviriam como excelentes pontos de fuga a uma realidade tão hostil quanto encantadora. Contudo, é melhor parar por aqui, pois essa forma de ver as coisas talvez seja julgar de um modo muito cruel as ciências dos homens.

De todo modo, como responder à natureza de um quadro tão complexo e angustiante? E, nesse momento, talvez cedesse à tentação de chegar perto não apenas daqueles personagens ficcionais, mas de outros ainda, de outra sorte e natureza, porque reais. Mas isso eu deixarei por conta da minha atenta leitora.

Este texto foi publicado originalmente no Outras Palavras.

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Um filme que mistura de forma labiríntica depoimentos recentes e imagens históricas da carreira do o diretor, ator e dramaturgo Zé Celso, do Teatro Oficina, uma das maiores personalidades das artes do Brasil de todos os tempos.

O documentário adquiriu o seu verbo principal em quatro viagens a pontos chave da trajetória do Zé: Sertão da Bahia, Praia de Cururipe em Alagoas (onde o Bispo Sardinha foi devorado), Epidaurus e Atenas, na Grécia e o apartamento de São Paulo.

Com acesso livre ao infindável e sempre crescente arquivo de imagens e sons do Grupo Oficina, misturados com imagens contemporâneas, constrói-se aqui uma visão muito particular e instigante, que resulta num filme estimulante e num documento mágico para hoje e para sempre.

Sem legendas, sem datas aparentes e sem didatismo, o filme é um fluxo potente de imagens e sons que deixam o espectador em estado de constante atenção.

EVOÉ, um filme antropofágico na sua essência, pode ser exibido de forma cíclica, pois não tem um começo e com certeza nunca terá fim.

Realizadores: Tadeu Jungle / Elaine Cesar

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