“Na América Latina, monopólios midiáticos substituem partidos de direita” / Entrevista com Atilio Boron

Por Fernando Arellano Ortiz, no CronicÓn, via Brasil de Fato / Tradução: Adital

“Não há erro: os meios de comunicação simplesmente são grandes conglomerados empresariais que têm interesses econômicos e políticos. Na América Latina, os monopólios midiáticos têm um poder fenomenal que vêm cumprindo na função de substituir os partidos políticos de direita que caíram em descrédito e que não têm capacidade de chamar a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade”. Assim o politólogo e cientista social argentino Atilio Boron caracteriza a denominada canalha midiática.

Nesse sentido, explica, “cumpre-se o que muito bem profetizou Gramsci há quase um século, quando disse que diante da ausência de organizações da direita política, os meios de comunicação, os grandes diários, assumem a representação de seus interesses; e isso está acontecendo na América Latina”. Em praticamente todos os países da região, os conglomerados midiáticos converteram-se em “operadores políticos”.

A Crise do Capitalismo e o triunfo de Chávez

Boron, que dispensa apresentação por ser um importante referente da teoria política e das ciências sociais em Iberoamérica, foi um dos expositores principais do VI Encontro Internacional de Economia Política e Direitos Humanos, organizado pela Universidad Popular Madres de la Plaza de Mayo, que aconteceu em Buenos Aires, entre os dias 4 e 6 de outubro.

Tópicos como a crise estrutural do capitalismo, o fenômeno da manipulação dos monopólios midiáticos e o que significa para a América Latina o triunfo de Hugo Chávez foram tratados com profundidade por esse destacado politólogo, sociólogo e investigador social, doutorado em Ciências políticas pela Universidade de Harvard e, atualmente, diretor do Programa Latino-americano de Educação a Distância em Ciências Sociais do Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini, na capital argentina.

Para aprofundar sobre alguns desses temas, o Observatorio Sociopolítico Latinoamericano (www.cronico.net) teve a oportunidade de entrevistá-lo no final de sua participação em dito fórum acadêmico internacional.

Rumo a um projeto pós-capitalista

No desenvolvimento de sua exposição no encontro da Universidad Popular de Madres de la Plaza de Mayo, Boron analisou o contexto da crise capitalista.

“Hoje em dia é impossível referir-se à crise e à saída da mesma sem falar do petróleo, da água e das questões meio ambientais. Essa é uma crise estrutural e não produto de uma má administração dos bancos das hipotecas subprime”.

Recordou que, recentemente, foram apresentadas propostas por parte dos Prêmios Nobel de Economia para tornar mais suave a débâcle capitalista. Uma, a esboçada por Paul Krugman, que propõe revitalizar o gasto público. O problema é que os Estados Unidos estão quebrados e o nível de endividamento das famílias nos Estados Unidos equivale a 150% dos ingressos anuais. “Krugman propõe dar crédito ao Estado para que estimule a economia. Porém, os Estados Unidos não têm dinheiro porque decidiram salvar os bancos”.

A outra proposta é de Amartya Sem, que analisa a situação do capitalismo como uma crise de confiança e é muito difícil restabelecê-la entre os poupadores e os banqueiros devido aos antecedentes desses últimos. Por isso, essas não deixam de ser “pseudo explicações que não levam à questão de fundo. Não explicam porque caem os índices do PIB e sobem as bolsas. Ambos índices estariam desvinculados e as bolsas crescem porque os governos injetaram moeda ao sistema financeiro”.

A crise capitalista serviu para acumular riqueza em poucas mãos, uma vez que “o que os democratas capitalistas fizeram no mundo desenvolvido foi salvar os banqueiros, não os endividados, ou seja, as vítimas”.

Exemplificou com as seguintes cifras: enquanto o ingresso médio de uma família nos Estados Unidos é de 50.000 dólares ao ano, o daqueles de origem latina é de 37.000 e o de uma família negra é de 32.000, o diretor executivo do Bank of America, resgatado, cobrou um salário de 29 milhões de dólares.

Então, é evidente que cada vez mais há uma tendência mais regressiva de acumular riqueza em poucas mãos. Em trinta anos, o ingresso dos assalariados foi incrementado em 18% e o dos mais ricos cresceu 238%.

“No capitalismo desenvolvido houve uma mutação e os governos democráticos transformaram-se em plutocracias, governos ricos”. Porém, além disso, “o capitalismo se baseia na apropriação seletiva dos recursos”.

Por isso, citando o economista egípcio Samir Amin, Boron afirma sem medo que “não há saída dentro do capitalismo”.

Como alternativa, Boron sustenta que “hoje, pode-se pensar em um salto para o modelo pós-capitalista. Há algo que pode ser feito até que apareçam os sujeitos sociais que darão o ‘tiro de misericórdia’ no capitalismo. O que se pode fazer é desmercantilizar tudo o que o capitalismo mercantilizou: a saúde, a economia, a educação. Assim, estaremos em condições de ver o amanhecer de um mundo mais justo e mais humano”.

A reeleição na Venezuela

Sobre a matriz de opinião que os monopólios midiáticos da direita têm tentado impor no sentido de que a reeleição do presidente Chávez é um sintoma de que ele quer se perpetuar no poder, a análise de Boron foi contundente:

“Há um grau de hipocrisia enorme nesse tema, porque os mesmos que se preocupam com o fato de Chávez estar por 20 anos no governo, aplaudiam fervorosamente a Helmut Kohl, que permaneceu no poder por 18 anos, na Alemanha; ou Felipe González, por 14 anos, na Espanha; ou Margaret Thatcher, por 12 anos, na Inglaterra”.

“Há um argumento racista que diz que somos uma raça de corruptos e imbecis; que não podemos deixar que as pessoas mantenham-se muito tempo no poder; ou há uma conveniência política, que é o que acontece ao tentarem limar as perspectivas de poder de líderes políticos que não são de seu agrado. Agora, se Chávez instaurasse uma dinastia onde seu filho e seu neto herdassem o poder, eu estaria em desacordo. Porém, o que Chávez faz é dizer ao povo que eleja; e, em âmbito nacional, por um período de 13 anos, convocou o povo venezuelano para 15 eleições, das quais ganhou 14 e perdeu uma por menos de um ponto; e, rapidamente, reconheceu sua derrota. Então, não está dito em nenhum lugar sério da teoria democrática que tem que haver alternância de lideranças, na medida que essa liderança seja ratificada em eleições limpas e pela soberania popular”.

Confira a entrevista:

A canalha midiática assume a representação de interesses da direita

Hoje, no debate da teoria política, fala-se de “pós-democracia”, para significar o esgotamento dos partidos políticos, a irrupção dos movimentos sociais e a incidência dos meios de comunicação na opinião pública. Que alcance você dá a esse novo conceito?

Eu analiso como uma expressão da capitulação do pensamento burguês que, em uma determinada fase do desenvolvimento histórico do capitalismo, fundamentalmente a partir do final da I Guerra Mundial, apropriou-se de uma bandeira – que era a da democracia – e a assumiu. De alguma maneira, alguns setores da esquerda consentiram nisso. Por quê? Bom, porque estávamos um pouco na defensiva e, além disso, o capitalismo havia feito uma série de mudanças muito importantes. Por isso, a ideia de democracia ficou como se fosse uma ideia própria da tradição liberal burguesa, apesar de que nunca houve um pensador dessa corrente política que fizesse uma apologia do regime democrático. Estudavam sobre isso, possivelmente, a partir de Thorbecke ou de John Stuart Mill; porém, nunca propunham um regime democrático; isso vem da tradição socialista e marxista. No entanto, apropriaram-se dessa ideia; passaram todo o século XX atualizando-a. Agora, dadas as novas contradições do capitalismo e ao fato de que as grandes empresas assumiram a concepção democrática, a corromperam e a desvirtuaram até o ponto de torná-la irreconhecível, perceberam que não tem sentido continuar falando de democracia. Então, utilizam o discurso resignado que diz que o melhor da vida democrática já passou; um pouco a análise de Colin Crouch: o que resta agora é o aborrecimento, a resignação, o domínio a cargo das grandes transnacionais; os mercados sequestraram a democracia e, portanto, temos que nos acostumar a viver em um mundo pós-democrático. Nós, como socialistas, e, mais, como marxistas jamais podemos aceitar essa ideia. Creio que a democracia é a culminação de um projeto socialista, da socialização da riqueza, da cultura e do poder. Porém, para o pensamento burguês, a democracia é uma conveniência ocasional que durou uns 80 ou 90 anos; depois, decidiram livrar-se dela.

Mesmo em uma situação anômala mundial e levando-se em conta que a propriedade dos grandes meios de comunicação está concentrada em uns poucos monopólios do grande capital, como você analisa o fenômeno da canalha midiática na América Latina? Parece que, paulatinamente, vão perdendo a credibilidade…?

O que bem qualificas como canalha midiática tem um poder fenomenal, que vem substituindo os partidos políticos da direita que caíram no descrédito e que não têm capacidade de prender a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade. Nesse sentido, cumpre-se o que, Gramsci muito bem profetizou há quase um século, quando disse que diante da ausência de organizações da direita política, os meios de comunicação, os grandes diários, assumem a representação de seus interesses e isso está acontecendo na América Latina. Em alguns países, a direita conserva certa capacidade de expressão orgânica, creio que é o caso da Colômbia; porém, na Argentina, não, porque nesse país não existem dois partidos, como o Liberal e o Conservador colombianos; e o mesmo acontece no Uruguai e no Brasil. O caso colombiano revela a sobrevivência de organizações clássicas do século XIX da direita que se mantiveram incólumes ao longo de 150 anos. É parte do anacronismo da vida política colombiana que se expressa através de duas formações políticas decimonônicas [do século XIX], quando a sociedade colombiana está muito mais evoluída. É uma sociedade que tem uma capacidade de expressão através de diferentes organizações, mobilizações e iniciativas populares que não encontram eco no caráter absolutamente arcaico do sistema de partidos legais na Colômbia.

Com essa descrição que encaixa perfeitamente na realidade política colombiana, o que poderíamos falar, então, de seus meios de comunicação…

Os meios de comunicação naqueles países em que os partidos desapareceram ou debilitaram-se são o substituto funcional dos setores de direita.

O que significa para a América Latina o triunfo do presidente venezuelano Hugo Chávez?

Significa continuar em uma senda que se iniciou há 13 anos, um caminho que, progressivamente, ocasionado algumas derrotas muito significativas ao imperialismo norte-americano na região, entre elas, a mais importante, a derrota do projeto da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que era a atualização da Doutrina Monroe para o século XXI e isso foi varrido basicamente pela enorme capacidade de Chávez de formar uma coalizão com presidentes que, não sendo propriamente de esquerda, eram sensíveis a um projeto progressista, como poderia ser o caso de Lula, no Brasil e de Néstor Kirchner, na Argentina. Ou seja, de alguma maneira, Chávez foi o marechal de campo na batalha contra o imperialismo; é um homem que tem a visão geopolítica estratégica continental que ninguém mais tem na América do Sul. O outro que tem essa mesma visão é Fidel Castro; porém, ele já não é chefe de Estado, apesar de que eu sempre digo que o líder cubano é o grande estrategista da luta pela segunda e definitiva independência, enquanto que Hugo Chávez é o que leva as grandes ideias aos campos de batalha, e, com isso, avançamos muito. Inclusive, agora, com a entrada da Venezuela ao Mercosul, conseguiu-se criar uma espécie de blindagem contra tentativas de golpe de Estado. Caso a Venezuela permanecesse isolada, considerado um Estado paria, teria sido presa muito mais fácil da direita desse país e do império norte-americano. Agora, não será tão fácil.

Você vê algumas nuvens cinzentas no horizonte do processo revolucionário da Venezuela?

Creio que sim, porque a direita é muito poderosa na América Latina e tem capacidade de enganar as pessoas. E os grandes meios de comunicação têm a capacidade de manipular, enganar, deformar a opinião pública; vemos isso muito claramente na Colômbia. Boa parte dos colombianos compraram o bilhete da Segurança Democrática com uma ingenuidade, como aqui na Argentina compramos o bilhete de ganhar a Guerra das Malvinas. Portanto, temos que levar em consideração que, sim, existem nuvens no horizonte porque o imperialismo não ficará de braços cruzados e tentará fazer algo como, por exemplo, impulsionar uma tentativa de sublevação popular, tentar desestabilizar o governo de Chávez e derrubá-lo.

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Nacionalismo e Desenvolvimento Econômico II

Por José Luís Fiori, da Carta Maior

Marchamos com um atraso de 50 ou 100 anos em relação aos países mais adiantados.
Temos de superar esta distância em dez anos. Ou o fazemos, ou eles nos esmagam.
Joseph Stalin, Nuevas tareas para la organizacion de la economia

Como no caso da Alemanha, a Rússia e o Japão são países que sempre tiveram um forte sentimento nacional de cerco, vulnerabilidade e atraso, com relação às grandes potências “ocidentais” que lideraram a formação do sistema inter-estatal capitalista. E não cabe dúvida que este sentimento de insegurança coletiva teve um papel decisivo na formulação do projeto e na trajetória nacionalista e militarizada do seu desenvolvimento econômico.

A história da Rússia moderna começa no século XVI, depois de dois séculos de invasão e dominação mongol, e transforma-se num movimento contínuo de reconquista e expansão “defensiva” do Grão-Ducado de Moscou. Primeiro na direção da Ásia, e depois da Grande Guerra do Norte (1700-1720), também na direção do Báltico e da Europa Central, já agora sob a liderança de Pedro o Grande, que foi responsável pelo início do processo de “europeização” da Rússia. Desde então, o relógio político russo sintonizou com a Europa e suas guerras, e o seu desenvolvimento econômico esteve a serviço de uma estratégia militar da “expansão defensiva” de fronteiras cada vez mais extensas e vulneráveis. Uma história de vitórias e derrotas que começa com Guerra contra os Otomanos (1768-1792), segue com as Guerra Napoleônicas (1799-1815), a Guerra da Criméia (1853-56), a Guerra com a Turquia (1868-1888), e mais o “Grande Jogo” com a Grã Bretanha, pelo domínio da Ásia Central, na segunda metade do século XIX. Uma trajetória que continua no século XX, com a Guerra com o Japão (1904), a Revolução Soviética (1917), a 1º e a 2º Guerras Mundiais, a Guerra Fria, e a Guerra do Afeganistão (1979-1989), logo antes da dissolução da URSS, e da retomada nacionalista posterior da Rússia, no início do século XXI, antes e depois da
Guerra da Geórgia (2008).

A história moderna do Japão, por sua vez, começa com a Restauração Meiji e o fim do Shogunato Tokugawa, que durou três séculos (1603-1868), e já foi uma resposta defensiva e militarizada do Japão, ao primeiro assédio e “cerco” das potências européias, no século XVI. Depois disto, a própria Restauração Meiji (1868) também foi uma resposta defensiva ao imperialismo europeu e americano do século XIX, na forma de um projeto nacionalista de desenvolvimento econômico acelerado e posto a serviço de uma estratégia de constituição de um “espaço vital”, o tairiku dos japoneses, equivalente Lebensraum dos alemães. Desde então, o desenvolvimento e a industrialização japonesa obedeceram objetivos estratégicos e geopolíticos, submetendo-se em última instância à política externa do Japão e à sua guerra com a Rússia (1904), à sua invasão da Manchúria (1931), sua Guerra com a China (1937-1945), e sua participação na 1º e 2º Guerras Mundiais, seguido da transformação do Japão em protetorado militar dos EUA, durante a Guerra Fria, antes da retomada do nacionalismo japonês, neste inicio do século XXI, já agora sob a égide de uma nova competição com a China.

Resumindo: desde o século XIX, pelo menos, a Alemanha, a Rússia e o Japão compartiram um mesmo sentimento de cerco e vulnerabilidade, e responderam a esta situação de ameaça externa com uma estratégia nacionalista de mobilização de recursos e de desenvolvimento econômico. Sua estratégia econômica nunca envolveu grandes discussões macroeconômicas, nem foi definida por economistas, e apesar disto, estes países obtiveram grandes sucessos industriais e tecnológicos.

O que nenhum dos três países conseguiu, entretanto, foi alcançar uma posição de centralidade monetária e financeira internacional que lhes desse um poder estrutural de mando sobre os grandes fluxos da economia internacional. Nem tampouco lograram universalizar suas ideias e valores, ao contrário do que passou com as potências pioneiras que lograram impor sua ideologia e sua moeda como suportes de um sistema ético e monetário internacional que funciona como um poder estrutural global, e ao mesmo tempo como uma “barreira à entrada” – quase intransponível – para os demais países. Por isto mesmo, Holanda, Inglaterra e EUA nunca foram nacionalistas, e Alemanha, Rússia e Japão jamais deixaram de sê-lo, sob qualquer regime ou circunstância.

Por isso também, o imperialismo dos primeiros sempre teve uma fisionomia mais liberal e “pelo mercado”, apesar de seu continuado militarismo, e o expansionismo dos segundos sempre teve uma face mais militar e agressiva, mesmo quando se propusessem apenas a conquista de novos mercados. Em boa medida, esta hierarquia e esta barreira acabam contribuindo ou induzindo – de alguma forma – para o imperialismo militarista dos demais países que se propõem repetir a trajetória de poder da “coalisão ganhadora”, entre Holanda, Inglaterra e Estados Unidos.

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José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Nacionalismo e desenvolvimento econômico I

O milagre econômico holandês

Em busca da razão perdida

De reis inúteis e de seus vassalos

Por Mauro Santayana, do Jornal do Brasil

Um dos mais ácidos panfletos da História, contra a monarquia,  é o livro de Étienne de la Boétie, Discours de la servitude volontaire. É texto de um adolescente prodígio, que o redigiu antes dos 18 anos, conforme seu amigo maior, e a quem o autor confiou os originais, Michel de Montaigne. Étienne morreu aos 33 anos, e Montaigne não se atreveu a publicar o texto famoso, que ficou conhecido anos depois de sua própria morte. Redigido no século 16, só no século 17 o livro passou a ser editado e a ser lido, assim mesmo com muitas cautelas. La Boétie, no fabuloso talento prematuro, em que se misturam, ao mesmo tempo, certa ousadia que só a boa-fé juvenil autoriza, e fantástica erudição clássica, pergunta-se por que os homens se submetem à vontade de um só, sem que nada, nem na natureza, nem na razão, determine essa submissão.

A monarquia de hoje não é a mesma daqueles séculos, em que os reis, não todos, mas muitos deles, comandavam seus exércitos e corriam todos os riscos nas batalhas, como, entre outros soberanos franceses, fizeram Francisco I e Henrique IV. As famílias reais de nosso tempo estão mais para a comédia do que para a tragédia; mais para a farsa do que para o drama. Luís XVI foi o último dos reis a ter a sua cabeça decapitada. Antes dele, Carlos I, da Inglaterra, também conheceu o cepo e a lâmina do carrasco. Os Romanov, dominados por um grande embusteiro, que foi Rapustin, eram de um terceiro tipo, o de retardados mentais, não obstante a crueldade com que reprimiam seu povo,  e não foram decapitados, mas fuzilados.

Hoje, os poucos príncipes destronados são meros adornos de festas milionárias. Ninguém se preocupou, nem se preocupa mais, em cortar  as cabeças coroadas, porque elas não valem muita coisa, a não ser a despesa que os povos pagam, para que encabecem a lista das celebridades inúteis.

Os escândalos da família real espanhola, que estão na ordem do dia, fermentam novamente a reivindicação republicana na península, oitenta e um anos depois da abdicação de Afonso XIII. O retorno da monarquia foi útil ao processo de normalização espanhola, depois da morte de Franco. Todas as forças políticas aceitaram a fórmula, a fim de evitar nova guerra civil. Cumprido esse papel positivo, a instituição começa a ser um estorvo. O rei, neto de Alfonso XIII, nunca aceitou, em sua alma, o regime democrático e, em fevereiro de 1981, segundo indícios fortes, esteve  à frente da conspiração militar contra o governo democrático, que levou à invasão do Parlamento pelo tenente-coronel Antonio Tejero Molina. O monarca só interveio, com visível contragosto, pela televisão, depois que a reação dos militares democráticos, no interior dos quartéis, e o pronunciamento dos governos vizinhos inviabilizaram o golpe.

Agora, os escândalos reais se sucedem. Enquanto o governo conservador de Mariano Rajoy corta o orçamento social e a Espanha se submete aos ditados da Alemanha, com o povo em desespero protestando nas ruas, revela-se que as despesas da Casa Real chegam a quase 600 milhões de euros, incluídos os gastos com as viagens, a manutenção dos numerosos palácios,  a segurança da família do soberano pelas forças armadas e outras despesas indiretas.

A insensibilidade do rei diante do sofrimento do povo  que chega, até mesmo, ao escárnio, em certos momentos, como nas caçadas aos elefantes da África  e aos ursos da Romênia, vem retirando a credibilidade de seus súditos. Tanto nos meios intelectuais quanto entre os trabalhadores espanhóis, começa a adensar-se um movimento para o fim do sistema monárquico e a instauração de uma república democrática.

Ontem, a Espanha foi às ruas, em oitenta cidades, para protestar contra a aprovação de medidas de arrocho contra os trabalhadores, entre elas o fim do 13º salário. Em Madri, os bombeiros e os policiais civis chegaram a solidalizar-se com os manifestantes, e se opuseram a participar da repressão. Um grupo, com seus capacetes postos, desnudou-se. Um cartaz explicava que o governo os deixara “en pelotas. O clima era o da véspera de grandes acontecimentos.

As nossas relações com a Espanha monárquica devem ser reavaliadas. Com todas as suas dificuldades atuais, as elites espanholas continuam a  tratar-nos como se fôssemos colônia de Madri — o que só fomos, e por acidente histórico, entre 1580 e 1640. Em 1580, depois da morte de dom Sebastião, no norte da África, e de seu sucessor, o cardeal dom Henrique,  o trono de Portugal foi ocupado por Filipe II, tio de dom Sebastião. A coroa só foi recuperada para os portugueses, em 1640, pelo duque de Bragança.

As grandes virtudes do povo espanhol sempre foram, e continuam a ser, insultadas pela sua anacrônica, cara e ociosa nobreza, por nascimento ou pelo êxito nos negócios. E, ao longo de sua história, talvez a Espanha não tenha tido família real tão insignificante, e tão corrompida como a de agora.

As dificuldades econômicas da Espanha de hoje são o resultado desse espírito de presunçosa superioridade de suas elites. Ao entrar para a Comunidade Econômica Europeia, e obter vultosos recursos do grupo, os espanhóis, em lugar de investi-los no interior do país, usaram-nos para adquirir empresas na América Latina, principalmente no Brasil. Era uma nova forma de colonialismo que, apesar do saqueio, manso e “legal” de nossos recursos, principalmente depois da embasbacada regência de Fernando Henrique Cardoso, não serviu ao povo espanhol, embora tenha enriquecido muitos banqueiros.

Agora, o próprio genro do rei é acusado de agir como  criminoso, ao lavar dinheiro mal havido e transferir, só para Luxemburgo, mais de 700 mil euros. Suspeita-se que muito mais dinheiro não honrado foi remetido para o exterior. Esse genro, Iñaki Undagarin, recebe mais de 1 milhão de euros por ano, como conselheiro da Telefónica de Espanha para a América Latina. E na América Latina, quem contribui com mais lucros para a empresa espanhola é exatamente o Brasil.

A nossa postura é de solidariedade para com o povo espanhol. Esse grande povo nada tem a ver com esses señoritos que ainda se imaginam no tempo de Carlos V e de Filipe II. Estar com o povo espanhol é não favorecer aqueles que o oprimem.

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O milagre econômico holandês

Tanto trovejou, que chove

Nacionalismo e desenvolvimento econômico (I)

Por José Luís Fiori, da Carta Maior

“A dificuldade da ‘economia política clássica’ foi reconhecer o significado econômico das nações,
não apenas na prática mas também na teoria”.
Eric Hobsbawm, Nações e Nacionalismo desde 1780

Desde a Revolução Francesa, a palavra “nacionalismo” teve várias definições e conotações políticas e emocionais, variando segundo o tempo e o lugar, e aparecendo ora como uma ideologia ou sentimento, ora como um movimento social ou estratégia política. Na sua origem histórica, sobretudo na França e nos Estados Unidos, foi um movimento revolucionário, democrático e cidadão, depois passou a ter uma conotação predominantemente cultural e etnolíngüística, sobretudo na Europa Central, para se transformar, finalmente, num projeto político de construção e/ou fortalecimento dos estados nacionais que nasceram – dentro e fora do continente europeu – a partir das independências americanas. Mas foi só na segunda metade do Século XIX que o nacionalismo adquiriu uma face e uma formulação explicitamente econômica e se transformou num instrumento de luta dos países “atrasados” contra a supremacia inglesa.

É bem verdade que depois do XVI, o desenvolvimento econômico capitalista se deu sempre com base em estados territoriais que praticaram políticas mercantilistas de defesa de suas economias nacionais, e neste sentido, se pode dizer que sempre existiu algum tipo de nacionalismo econômico “primitivo”, desde a origem do sistema estatal europeu. Mas foi só na Alemanha, no século XIX, que se formulou uma teoria e uma estratégia nacionalista consistente de desenvolvimento econômico, a partir de objetivos geopolíticos explícitos. Na sua obra mais importante, publicada em 1841, o economista alemão Friedrich List criticava a “economia política clássica” por condenar as nações menos desenvolvidas a “rolar eternamente a pedra de Sísifo” do atraso, exatamente porque havia “excluído completamente a política da ciência econômica, ignorado a existência da nacionalidade, e desconhecido completamente os efeitos da guerra sobre o comercio entre as nações” (1986,p:128).

Depois da morte de List e da primeira unificação alemã, em 1871, estas ideias contribuíram decisivamente para o desenho de uma estratégia consciente de desenvolvimento e industrialização, combinada com uma visão ufanista da cultura germânica e com um projeto geopolítico de unificação e expansão do poder alemão, em direta competição com o poder comercial e naval da Grã Bretanha.

Desde então, o sucesso econômico da Alemanha se transformou no paradigma de referência do nacionalismo econômico, em todo mundo, e teve uma importância particular na história da Rússia e do Japão, países que têm várias semelhanças geopolíticas com a Alemanha. Entre o fim da “Guerra dos 30 Anos”, em 1648, e a unificação de 1871, o território atual da Alemanha foi dividido e “balcanizado”, de forma ativa e conivente, pelas grandes potências europeias, e só conseguiu se unificar depois de três guerras sucessivas e vitoriosas, da Prússia contra a Dinamarca, a Áustria e a França, na década de 1860. Mas mesmo depois da unificação, a Alemanha sempre se sentiu um país cercado e pressionado, carregando um enorme atraso político e econômico e um profundo ressentimento com relação às “grande potências” responsáveis pela criação do sistema inter-estatal e do capitalismo europeu, e pela liderança da conquista européia do “resto do mundo”.

É neste contexto de atraso, cerco e ressentimento nacional, que se deve situar a permanente preocupação defensivo-expansionista da Alemanha, dentro de um “espaço vital” supra-nacional a ser conquistado e preservado. É neste contexto também que se deve situar o “intense commitment” de suas elites civis, militares e intelectuais, que teve um papel decisivo no desempenho econômico do nacionalismo alemão. Em maior ou menor medida, se pode reencontrar muitas destas características na história da Rússia/URSS e do Japão, e nos seus grandes ciclos de intenso crescimento econômico, desde o século XIX, e mesmo entre 1950 e 1991, apesar de que neste período o Japão e a Alemanha fossem transformados em “protetorados militares” a serviço da estratégia militar global dos EUA.

Agora de novo, neste início do século XXI, Alemanha, Rússia e Japão estão seguindo estratégias econômicas nacionalistas, orientadas por seus grandes objetivos estratégicos nacionais permanentes, de defesa e luta pelas suas hegemonias regionais. Para pensar o futuro ou tirar lições, entretanto, seria importante primeiro entender porque os seus grandes sucessos econômicos e tecnológicos do passado acabaram sendo interrompidos por retumbantes fracassos políticos e/ou geopolíticos. (Continua)

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José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.