O delírio e a cegueira

Por Theotonio de Paiva

Trono de sangue – Macbeth, por Antunes Fº

Experiência que tem animado, com o mais profundo interesse, algumas grandes expressões da história do pensamento, a idéia de conhecer aqueles desejos e motivações terríveis, que alguns personagens possuem como eixo central em suas criações, tem mobilizado, ao longo dos tempos, tanto estudos da literatura, quanto da dramaturgia. E, exatamente pela sua condição de serem figuras invariavelmente contraditórias, tais criações, apesar de encerrarem um princípio mobilizador determinante em suas condutas, não necessariamente revelam seus objetivos de imediato. E é exatamente isso o que as torna sedutoras e pontos de partida para toda a sorte de reflexão sobre os habitantes dessa rocha que gira em torno de uma bola de fogo.

Na medida em que nos aproximamos daquelas motivações e objetivos, somos levados a entender melhor, ainda que muito modestamente, acerca daquele homem, palpável, concreto. Contudo, aí temos um outro problema: ainda é possível afirmar, sem nenhum alcance da dúvida, que tal ser assim exista nesse início de século, após tantas transformações, tantos descentramentos, como sabidamente sintetizou Stuart Hall? Posto o devido reparo, caro leitor, precisamos seguir adiante.

De todo modo, resta a especulação: como proceder a essa façanha, de procurar as mais difíceis traduções da alma humana, se não for através da arte? Das coisas que aprendemos e não aprendemos nos discos, não seria difícil esquadrinhar, por exemplo, aquilo que se acha perdido nas conversas mais ou menos íntimas ou nos conchavos, bem como a indecisão ou o medo nas falas interditas. E contaríamos, talvez, as choramingas entre grandes conhecidos, assim como os comentários ignominiosos e patéticos da internet, até desemborcarmos nos julgamentos públicos, e a redenção através da cicuta ou do choro do discípulo. Evidentemente, desde que este tenha talento suficiente para deixar o legado de uma grande obra.

Não é difícil perceber, pois, que nada lhe tira o mérito e a mediação segue como o grande encantamento da arte: aprender a ver e a transver, como dizia o poeta, é um exercício profundo.

E a arte jamais se furtou. A literatura, o teatro, o cinema, em suas mais distintas concepções, deram asas a algumas das criações mais notáveis do espírito humano. E, ao conceberem personagens-símbolos, chegaram muito perto do inferno e do maravilhoso.

Neste sentido, a aproximação com parte daquele imaginário, mais ou menos fantasioso, possibilita que, em nosso ato de decompor sistemas, através do qual o texto se fundamenta, possamos também estabelecer uma visada que ambiciona compreender mais detidamente os novos/velhos enigmas que porventura estejam surgindo. E é essa uma porta de entrada para a reinvenção da própria tradição literária.

Portanto, com grande engenho, não foram poucos os autores que conseguiram apresentar-nos algumas criações especialíssimas. Em muitas delas, alguns traços deixavam claro que a sua aposta substantiva se afirmava no “mundo dos homens”. Desse modo, objetivava-se compreender melhor o mundo real. E, nesse quadro, destacavam-se personagens que se definiam por guardarem algumas ambições a qualquer preço.

Aquieta o coração, leitora, pois não é tão simples encontrar sujeito que se preste a determinados serviços. A concretização de alguns objetivos, sabemos, encobre uma aceitação mais ou menos tácita de outras ordens de princípios, de composições de poder muito bem administradas, que incluem, paradoxalmente, em determinados casos, uma evidente subserviência a um outro mando, pois ninguém governa sozinho, diz o adágio. No frigir dos ovos, o elogio da vassalagem requer talento e arte.

Mas isso ainda não é nada. Na verdade, uma aceitação plena dessa nova condição, qualifica esse hipotético personagem-síntese, a um duplo movimento de auto-afirmação e fechamento em si mesmo. E estará pronto a entregar a própria alma aos princípios mais abjetos, enquanto acredita, na verdade, que dedica a própria vida a uma consagração perpétua, dentro do espírito de uma auto-representação idealizada.

Evidentemente, compreenderá o leitor, parte significativa da sociedade, presente naquele mundo imaginário, está pronta, pelo menos, a intuir a natureza daqueles movimentos de poder. Desse modo, não seria difícil encontrar nas descrições, nas rubricas do autor, nas observâncias dos coros, a intensidade daquelas manobras.

Entretanto, assim como existem as coisas dizíveis, aconselhava-se, por uma outra medida, a não ir além de um silêncio constrangedor. Quantas vezes, os membros da sociedade, regidos por um Corifeu, não se detêm em suas angústias e se afastam de si mesmos? Quase sempre, nesse abandono, entregam ao destino aquela difícil medida de decisão – imprecisão da vida e de todos os governos.

Muitas das vezes, não é difícil vislumbrarmos, por detrás daqueles contornos terríveis, compreendidos como personagens de grande intensidade dramática, uma fantástica capacidade de desvelar o não compreendido. Naquelas jornadas, somos apresentados aos infortúnios. Profecias, motivações para crimes, assassinatos, golpes, perversões de toda ordem, bailam numa dança macabra, leitor inquieto, e nos conduzem a uma espécie de tragicidade plasmada na solidão, ou na loucura.

Contudo, no campo da grande arte, seja erudita ou popular, é preciso avançar até o fim. E então se constata que não há meios da imaginação dar meia volta e se aquietar intimidada. Ela avança e se pronuncia de um modo violento sobre os aspectos mais aflitivos. E cobra do leitor que lhe decifre o enigma. Mas, como se valer para tamanha empreitada? Qual a chave que se emprega?

Para entender a lógica das motivações de certas criações, muitas das vezes, é comum nos surpreendermos agindo como se fôssemos um ator. Como assim? Foi exatamente isso o que você leu, leitora. É uma lógica tão simples: o que eu faria se ali estivesse? De pronto, a roda do mistério começa a girar mais intensamente.

Nesse instante, nos orientamos mentalmente para compor um personagem. Rapidamente o abraçamos como uma partitura, que devesse ser construída a fim de chegar à arte da representação. E nos imaginamos, curiosos, em condições de tocar, ainda que de leve, a natureza difícil que nos causava admiração e perplexidade, medo e ira.

Ao mobilizar tantas mulheres e homens, essa roda do mistério é dona de uma intuição singular. Por qual motivo? É que ela mesma carrega, bem lá no alto, um raro instrumento de orientação, a antena da raça.

Para chegarmos a determinadas percepções, e o leitor já deve ter percebido há tempos, precisamos dispor igualmente de instrumentos, que nos permitam adivinhar aquilo que se esconde no outro canto do mundo. E, às vezes, para que se realize, esse encontro necessita apenas atravessar uma porta estreita a fim de se maravilhar. No outro lado de um muro, o olhar se depara com uma diversidade estupenda, não de respostas precisas, mas de novas e inquietantes perguntas.

Num jogo absolutamente lúdico, somos capazes de manejar alguma espécie de bússola, com feição diversa. Nessa nova condição, nos tornamos senhores de novos movimentos e percepções. No entanto, cuidado. Esse instrumento sensível pode confundir as direções das vagas no meio de uma tempestade, encobrindo a verdadeira vontade humana. Mergulhados nas aparências, chegam até nós, as surpresas e os encantamentos, como chegaram até Ulysses os cantos durante a travessia. E tal assombro pode ser revelador ou simplesmente fatal.

Mundo que segue, não é difícil qualificar como uma experiência superior os sentimentos encontrados nas fibras internas daquelas construções literárias e teatrais, mesmo quando entendidas como as mais perversas e ignóbeis, semeaduras da cólera e do ódio. E, ao fazermos a incursão por aquela dimensão simbólica, somos levados a procurar o sentido ou a ausência de sentido da experiência humana.

Com qual objetivo tudo isso? – voltará a um ponto de retorno o nosso infatigável leitor. De algum modo, ao nos virarmos para esse problema, valendo-nos de uma curiosidade que não conseguimos aplacar, procuramos, com maior ou menor consciência, tentar desvendar algumas dimensões veladas, escondidas, escamoteadas, cuja força celebra algum tipo de conhecimento superior. O mal precisa ser re-conhecido.

Fundamentalmente, aceitamos o difícil hábito de nos deixar impactar, sobressaltar mesmo, pelas manifestações mais terríveis. E com elas, próximo a elas, somos tentados a entender o que a simples colocação de uma máscara na expressão do outro o transforma inexoravelmente. Às vezes, enquanto expressão de poder, em outras, como inapelável submissão à condição de servilismo. Em outras, as duas formas conjuminadas.

Mas não fiquemos somente nisso. Uma experiência dessa natureza – chegar próximo das motivações mais complexas de seres ficcionais – nos faz entender melhor em relação àquele que se apresenta como um estranho. E, de algum modo, paradoxalmente, tem-se aí também uma porta de entrada para si mesmo.

Algumas daquelas personas, feito máscaras construídas por mãos capazes de esculpir com todo o esmero um ríctus de estranha perversidade – aonde nos conduziriam? Pois bem, diria a leitora preocupada em entender o espírito humano, que tais personas surgiram curiosamente já imbuídas de uma confrontação categórica. Que tipo de confrontação? – me aproximo para entender melhor.

Elas precisam do conflito e da dor, responde afirmativamente. E argumenta, balançando-se com o corpo, como se através dele duvidasse daquilo que o hálito deixa escapar: essas mesmas personagens são ditadas por suas condições sociais e opções políticas. Emerge a condição de serem escravos de uma espécie de delírio, pois incapazes de reservarem alguma medida que ilumine a lenta agonia noite adentro.

Não conseguiriam voltar atrás? – provoco. É bem mais do que isso: não há como voltar atrás. Inflexíveis até a medula, não aprenderam a prescindir da espantosa violência que a espécie carrega como um sinal de Caim. E conclui: não seria difícil encontrar naqueles conflitos apresentados uma proposição maniqueísta de um mundo dividido rigorosamente entre homens bons e maus – e os maus evidentemente estariam sempre do outro lado, na mais desprezível aliança.

Com efeito, faço pelo meu lado algumas ponderações. Defendo que é comum, procurar, por todos os meios, especializados ou não, denegrir o outro como um mal que mereça ser extirpado inapelavelmente.

Ora, num mundo que historicamente apresenta uma grande dificuldade em ser mais bem compreendido – responde timidamente – algumas manifestações de ódios e violência soam como se acontecessem numa esfera que dificilmente encontra o seu sentido. Se quisermos ampliar o nosso entendimento, poderemos conjeturar sobre os verdadeiros responsáveis pela percepção de um mundo confuso. No entanto, é curioso notar o quanto ainda somos inundados por uma espécie de cegueira.

Por outro lado, algumas angustiantes observações notadas, aqui e ali, poderiam nos levar a especular se não estaríamos, diante do delírio e da cegueira, na condição de reféns. Eles serviriam como excelentes pontos de fuga a uma realidade tão hostil quanto encantadora. Contudo, é melhor parar por aqui, pois essa forma de ver as coisas talvez seja julgar de um modo muito cruel as ciências dos homens.

De todo modo, como responder à natureza de um quadro tão complexo e angustiante? E, nesse momento, talvez cedesse à tentação de chegar perto não apenas daqueles personagens ficcionais, mas de outros ainda, de outra sorte e natureza, porque reais. Mas isso eu deixarei por conta da minha atenta leitora.

Este texto foi publicado originalmente no Outras Palavras.

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Veja também no Caderno ENSAiOS:

A “zona cinza” do conservadorismo

Verdade versus análise

O frio como metáfora

Rupturas e argamassas

Barbárie e modernidade no século XX

Política anti-imigração: Barbarismo com aparência humana

Por Slavoj Žižek, via Blog da Boitempo

Traduzido do inglês por Leonardo Gonçalves

Fatos recentes – como a expulsão dos ciganos da França, ou o ressurgimento do nacionalismo e do sentimento anti-imigração na Alemanha, ou o massacre na Noruega – devem ser vistos pelo viés de um rearranjo que vem ocorrendo há bastante tempo no espaço político da Europa oriental e ocidental.

Até recentemente, na maioria dos países europeus dominavam dois principais partidos que agregavam a maioria do eleitorado: um partido de centro-direita (democrata cristão, liberal-conservador, do povo) e um partido de centro-esquerda (socialista, social-democrata), com alguns partidos menores (ecologistas, comunistas) reunindo um eleitorado ainda menor.

Recentes resultados eleitorais na Europa ocidental e no Leste Europeu sinalizam o surgimento gradual de uma polarização diferente. Agora temos um partido predominante, de centro, atuando em prol do capitalismo global, geralmente acolhendo ideias culturalmente liberais (tolerância ao aborto, direitos dos gays, religiosos e minorias étnicas, por exemplo).

Em oposição a esses, tornam-se cada vez mais fortes os partidos populistas anti-imigração que, pelas beiradas, vêm acompanhados de grupos francamente racistas neofascistas. O melhor exemplo disso é a Polônia onde (após o desaparecimento dos ex-comunistas) os principais partidos são o liberal-centrista “anti-ideológico” do Primeiro Ministro Donald Tusk e o conservador Christian Law, e o Partido da Justiça dos irmãos Kaczynski.

Tendências semelhantes podem ser observadas, como já testemunhamos, na Noruega, na Holanda, na Suécia e na Hungria. Mas como chegamos a este  ponto?

Após décadas de fé no estado de bem-estar social, quando cortes financeiros eram vendidos como temporários, e sustentados por uma promessa de que as coisas logo voltariam ao normal, estamos entrando numa época em que a crise – ou melhor, uma espécie de estado econômico de emergência, com sua necessidade de atendimento para todo tipo de medida de austeridade (cortando benefícios, diminuindo serviços de saúde e de educação, tornando os empregos mais temporários) – é permanente. A crise está se transformando num estilo de vida.

Depois da desintegração dos regimes comunistas, em 1990, entramos numa nova era na qual predomina a administração despolitizada de especialistas e a coordenação de interesses como exercício do poder de estado.

O único meio de introduzir paixão nesse tipo de política, o único meio de ativamente mobilizar o povo, é através do medo: o medo dos imigrantes, o medo do crime, o medo da depravação sexual ateia, o medo do Estado excessivo (com sua alta carga tributária e natureza controladora), o medo da catástrofe ecológica, assim como o medo do assédio (o politicamente correto é a forma liberal exemplar da política do medo).

Uma política assim se sustenta sobre a manipulação de uma multidão paranóica – a assustadora correria de homens e mulheres amedrontados. Eis porque o grande evento da primeira década do novo milênio se deu quando a política anti-imigração entrou para a prática corrente e cortou enfim o cordão umbilical que conectava-a com os partidos da extrema direita.

Da França à Alemanha, da Áustria à Holanda, no novo modelo de orgulho de sua própria identidade cultural e histórica, os principais partidos veem como aceitável insistir que os imigrantes são hóspedes que devem se acomodar aos valores culturais que definem a sociedade anfitriã – “este é o nosso país, ame-o ou deixe-o” é o recado.

Os liberais progressistas estão, é claro, horrorizados com esse populismo racista. Entretanto, uma olhada mais de perto revela o quanto compartilham sua tolerância multicultural e o respeito às diferenças com esses que opõem imigração à necessidade de manter os outros a uma distância apropriada. “O outro é bacana, eu o respeito”, dizem os liberais, “contanto que não interfiram demais no meu espaço pessoal. Quando fazem isso, eles me incomodam – eu apoio enormemente uma ação afirmativa, mas em momento algum estou disposto a ouvir rap a todo volume”.

A principal tendência dos direitos humanos nas sociedades do capitalismo tardio é o direito de não ser incomodado; o direito de manter uma distância segura em relação aos outros.

Um terrorista cujos planos fúnebres devem ser evitados permanece em Guantânamo, a zona vazia desprovida de regras da lei, e um ideólogo fundamentalista deve ser silenciado porque ele espalha o ódio. Pessoas assim são assuntos tóxicos que perturbam a minha paz.

No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos despidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool. E a lista continua: que tal sexo virtual, o sexo sem sexo? A doutrina Collin Powell de guerra sem baixas – para o nosso lado, obviamente – como uma guerra sem guerra?

A redefinição contemporânea de política como arte da administração especializada, política sem política? Isto nos leva ao atual multiculturalismo liberal tolerante como uma experiência do Outro desprovida de sua alteridade – o Outro descafeinado.

O mecanismo dessa neutralização foi melhor formulado em 1938 por Robert Brasillach, o intelectual fascista francês, que via a si mesmo como um antissemita “moderado” e inventou a fórmula do antissemitismo razoável.

“Nós nos concedemos a permissão de aplaudir Charlie Chaplin, um meio-judeu, nos filmes; de admirar Proust, um meio-judeu; de aplaudir Yehudi Menuhin, um judeu; não queremos matar ninguém, nós não queremos organizar nenhum pogrom. Mas também achamos que o melhor meio de impedir as ações sempre imprevisíveis do antissemitismo instintivo é organizar um antissemitismo razoável”.

Não seria esta a mesma atitude que entra em funcionamento quando nossos governantes lidam com a “ameaça imigrante”? Após rejeitar diretamente, à moda da direita, o populismo como “irracional” e inaceitável para nossos padrões democráticos, eles endossam “racionalmente” as medidas de proteção racistas.

Ou, como Brasillachs atuais, alguns deles, mesmo os social-democratas, nos dizem: “Concedemos a nós mesmos permissão para aplaudir atletas da África e do Leste Europeu, doutores asiáticos, programadores de softwares indianos. Nós não queremos matar ninguém, não queremos organizar nenhum pogrom. Mas também achamos que o melhor meio de impedir as sempre imprevisíveis e violentas medidas de defesa anti-imigração é organizar uma proteção anti-imigração razoável.”

Essa ideia de desintoxicação do vizinho sugere uma passagem do franco barbarismo para o barbarismo com uma aparência humana. Revela que estamos saindo do amor ao próximo cristão e caminhando de volta para os privilégios pagãos de nossas tribos em detrimento do Outro, bárbaro. Mesmo que esteja sob a máscara da defesa de valores cristãos, esta é a maior ameaça ao legado cristão.

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Texto publicado originalmente em ABC – Religion and Ethics, dia 26 de julho de 2011.

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.

Barbárie e modernidade no século 20

Caderno ENSAiOS publica novamente artigo de Michael Löwy sobre modernidade e barbárie. De modo impressionante, passado um ano, o texto parece mais atual do que nunca, ao ajudar a compreender melhor a expressão maior dos conflitos viscerais da sociedade brasileira e das crises violentas do mundo contemporâneo.

por Michael Löwy

A palavra “bárbaro” é de origem grega. Ela designava, na Antigüidade, as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e brutais. A oposição entre civilização e barbárie é então antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia dos iluministas, e será herdada pela esquerda. O termo “barbárie” tem, segundo o dicionário, dois significados distintos, mas ligados: “falta de civilização” e “crueldade de bárbaro”. A história do século 20 nos obriga a dissociar essas duas acepções e a refletir sobre o conceito – aparentemente contraditório, mas de fato perfeitamente coerente – de “barbárie civilizada”.

Em que consiste o “processo civilizador”? Como bem demonstrou Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder político1. O que Elias não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo Estado… Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele podia escrever, ainda em 1939: “Comparada ao furor do combate abissínio (…) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado parece moderada (…); ela só se manifesta em sua força brutal e sem limites em sonho e em alguns fenômenos que nós qualificamos de ‘patológicos’”.2

Alguns meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma guerra entre nações “civilizadas” cuja “força brutal e sem limites” é simplesmente impossível de comparar com o pobre “furor” dos combatentes etíopes, tamanha é a desproporção. O lado sinistro do “processo civilizador” e da monopolização estatal da violência se manifestou em toda sua terrível potência.

Se nós nos referimos ao segundo sentido da palavra “bárbaro” – atos cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento e a morte deliberada de não-combatentes (em particular, crianças) – nenhum século na história conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX. Certamente, a história humana é rica em atos bárbaros, cometidos tanto pelas nações “civilizadas” quanto pelas tribos “selvagens”. A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o massacre de indígenas das Américas, o tráfico negreiro, as guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie “civilizada”, isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.

Karl Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão associadas às necessidades de acumulação do capital. Em O Capital, especialmente no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica radical dos horrores da expansão colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico de negros. Essas “barbáries e atrocidades execráveis” – que segundo Marx (citando de modo favorável M. W. Howitt) “não têm paralelo em qualquer outra era da história universal, em nenhuma raça por mais selvagem, grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido” – não foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente denunciadas como uma “infâmia”3. Considerando algumas das manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou os workhouses – estas “bastilhas de operários” -, Marx escreveu em 1847 esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a Escola de Frankfurt: “A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”4

Mas com o século XX, um limite é transgredido, passa-se a um nível superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu ethos, de sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a esse ponto.

A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme, em 1914-15: Roxa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição – cada um à sua maneira – de alguma coisa sem precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.

Ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo em A crise da social-democracia, de 1915 (assinada com o pseudônimo “Junius”), rompeu com a concepção – de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional – da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo quem dá a ela essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma percepção da história como processo aberto, como série de “bifurcações”, onde o “fator subjetivo” – consciência, organização, iniciativa – dos oprimidos tornam-se decisivos. Não se trata mais de esperar que o fruto “amadureça”, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais. [grifo nosso]

Porque o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie. Em um primeiro momento ela parece considerar a “recaída na barbárie” como “a aniquilação da civilização”, uma decadência análoga àquela da Roma antiga5. Mas logo ela se dá conta que não se trata de uma impossível “regressão” a um passado tribal, primitivo ou “selvagem”, mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a aviação militar – tinham sido colocadas ao serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa.

As intuições de Kafka são de uma natureza totalmente diferente. É sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie. Trata-se de uma novela intitulada A colônia penal: em uma colônia francesa, um soldado “indígena” é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume em poucas palavras a quintessência do arbitrário: “a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida!”. Sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura que escreve lentamente sobre seu corpo com agulhas que o atravessam a frase “Honra teus superiores”.

O personagem central da novela não é nem o viajante que observa os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o comandante da colônia. É a máquina mesma.

Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat), que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, é sobretudo este que está lá pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O oficial mesmo é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo se sacrifica à esse insaciável Moloch6.

Em que “máquina de poder” bárbara, em que “aparelho da autoridade” sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A colônia penal foi escrita em outubro de 1914, três meses após a eclosão da grande guerra. Há poucos textos na literatura universal que apresentam de maneira tão penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo impessoal.

Esses pressentimentos parecem se perder nos anos do pós-guerra. Walter Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes sem precedentes. Daí seu pessimismo – não fatalista, mas ativo e revolucionário. Em um artigo de 1929 ele definia a política revolucionária como “a organização do pessimismo” – um pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E acrescenta ironicamente: “confiança ilimitada somente no IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe”7. Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam mostrar, alguns anos mais tarde, a capacidade maléfica e destrutiva da modernidade8.

Pode-se definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:

– Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do homicídio. Exterminação em massa graças às tecnologias científicas de ponta.

– Impessoalidade do massacre. Populações inteiras – homens e mulheres, crianças e idosos – são “eliminados”, com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas.

– Gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, “racional” (em termos instrumentais) dos atos bárbaros.

– Ideologia legitimadora do tipo moderno: “biológica”, “higiênica”, “científica” (e não religiosa ou tradicionalista)

– Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do século XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos armênios em 1915, o genocídio levado a cabo pelo Pol Pot no Camboja, aquele dos tutsis em Ruanda etc. associam, cada um de maneira específica, traços modernos e traços arcaicos.

Os quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a modernidade da barbárie são o genocídio nazista contra os judeus e os ciganos, a bomba atômica em Hiroshima, o Goulag estalinista e a guerra norte-americana no Vietnã. Os dois primeiros são provavelmente os mais integralmente modernos: as câmaras de gás nazistas e a morte atômica norte-americana contêm praticamente todos os ingredientes da barbárie tecno-burocrata moderna.

Auschwitz representa a modernidade não somente pela sua estrutura de fábrica de morte, cientificamente organizada e que utiliza as técnicas mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como observa o sociólogo Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral. “Como toda outra ação conduzida de maneira moderna – racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. (…) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal….”9

A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno, pseudo-científico, biológico, antropométrico, eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso anti-semita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: “A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu… Nós não encontraremos nossa saúde sem eliminar os judeus”.10

Em seu notável ensaio sobre Auschwitz11, Enzo Traverso destaca, com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio. Não se trata nem de uma simples “resistência irracional à modernização”, nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de uma manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido, infernal, da civilização ocidental, de uma barbárie industrial, tecnológica, “racional” (do ponto de vista instrumental). Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial – quanto suas formas de realização – as câmaras de gás – eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, “a organização científica do trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber. [grifo nosso]

Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação da razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica, é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também para a fábrica capitalista, que estava presente em Auschwitz, ao mesmo tempo nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas câmaras à gás, lugares de produção “em cadeia” de mortos. Mas a “solução final” é irredutível à toda lógica econômica: a morte não é nem uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.

Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações – inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso – do nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo alemão (Georges Lukács), de uma “saída” da Alemanha para fora do berço ocidental (Jürgen Habermas) ou de um movimento de “descivilização” (Entzivilisierung) inspirado por uma ideologia “pré-industrial” (Norbert Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização pelo estado da violência – como o mostram, depois de Hobbes, tanto Weber quanto Elias – é necessário reconhecer que a violência do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX. Auschwitz não representa uma “regressão” em direção ao passado, em direção a uma idade bárbara primordial, mas é realmente um dos rostos possíveis da civilização industrial ocidental. Ele constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herança humanista e universalista dos Iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilização.

Se o extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich é comparável a outros atos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento singular. É necessário recusar as interpretações que eliminam as diferenças entre Auschwitz e os campos soviéticos, ou os massacres coloniais, os pogroms etc.12 O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz é Hiroshima, como compreenderam tão bem Günther Anders e Dwight MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de morte formidavelmente moderna, tecnológica e “racional”. Mas as diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades americanas não tiveram jamais como objetivo – como aquelas do Terceiro Reich – realizar o genocídio de toda uma população: no caso das cidades japonesas, o massacre não era, como nos campos nazistas, um fim em si mesmo, mas um simples “meio” para atingir objetivos políticos. O objetivo da bomba atômica não era o extermínio da população japonesa como fim autônomo. Tratava-se sobretudo de acelerar o fim da guerra e demonstrar a supremacia militar americana face à União Soviética. Em um relatório secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target Committee – o “Comitê de Alvo”, composto pelos generais Groves, Norstadt e do matemático Von Neumann – observa friamente: “A morte e a destruição irão não somente intimidar os japoneses sobreviventes a fazer pressão pela capitulação mas também (a bônus) assustar a União Soviética. Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a guerra e, ao mesmo tempo, ajudar à moldar o mundo do pós-guerra”13. Para obter esses objetivos políticos, a ciência e a tecnologia mais avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis inocentes, homens, mulheres e crianças foram massacrados – sem falar da contaminação pela irradiação nuclear das gerações futuras.

Uma outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas: em uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o secretário de Estado, Stimson, relatava seus sentimentos: “Eu disse a ele que estava inquieto com esse aspecto da guerra… porque eu não queria que os americanos ganhassem a reputação de ultrapassar Hitler em atrocidade”14.

Em muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica representada pela arma atômica, quanto pelo caráter ainda mais distante, impessoal, puramente “técnico” do ato exterminador: pressionar um botão, abrir a escotilha que liberta a carga nuclear. No contexto próprio e asséptico da morte atômica entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas formas manifestamente arcaicas do Terceiro Reich, como as explosões de crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa modernidade se encontra na cúpula norte-americana que toma – após ter cuidadosa e “racionalmente” pesado os prós e os contras – a decisão de exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki: um organograma burocrático complexo composto por cientistas, generais, técnicos, funcionários e políticos tão cinzentos quanto Harry Truman, em contraste com os acessos de ódio irracional de Adolf Hitler e seus fanáticos. [grifo nosso]

No curso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba, certos oficiais, como o general Marshall, declararam suas reservas, à medida em que eles defendiam o antigo código militar, a concepção tradicional da guerra, que não admitia o massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de vista novo, mais “moderno”, fascinado pela novidade científica e técnica da arma atômica, um ponto de vista que não tinha nada a ver com códigos militares arcaicos e que não se interessava senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em critérios de eficácia político-militar15. Seria necessário acrescentar que um certo número de cientistas que tinham participado, por convicção antifascista, nos trabalhos de preparação da arma atômica, protestaram contra a utilização de suas descobertas contra a população civil das cidades japonesas.

Uma palavra sobre o Goulag estalinista: se há muito em comum com Auschwitz – sistema concentracionário, regime totalitário, milhões de vítimas – ele se distingue pelo fato que o objetivo dos campos soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros mas sua exploração brutal como força de trabalho escrava. Em outras palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra – como aquela fabricada por Stéphane Courtois e outros anticomunistas profissionais – pode apagar essa diferença.

O Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era burocraticamente administrado por um Estado totalitário e colocado ao serviço de projetos estalinistas faraônicos de “modernização” econômica da União Soviética. Mas ele se caracteriza também por traços mais “primitivos”: corrupção, ineficácia, arbitrariedade, “irracionalidade”. Ele se situa por essa razão em um degrau de modernidade inferior ao sistema concentracionário do Terceiro Reich.

Enfim, a guerra americana no Vietnã, atroz pelo número de vítimas civis exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execuções coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção extremamente moderna: fundada sobre uma planificação “racional” – com a utilização de computadores, e de um exército de especialistas – ela mobiliza um armamento muito sofisticado, na ponta do progresso técnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm, herbicidas, bombas à fragmentação etc.16

Essa guerra não foi um conflito colonial como os outros: bastava lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o Vietnã foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o massacre não era um objetivo em si, mas um meio político; e se a cifra de mortos é bem superior àquela das duas cidades japonesas, não se encontra no Vietnã aquela perfeição da modernidade técnica e impessoal, aquela abstração científica da morte que caracteriza a morte atômica”17.

A natureza contraditória do “progresso” e da “civilização” moderna se encontra no coração das reflexões da Escola de Frankfurt. Em Dialética do Iluminismo (1944), Adorno e Horkheimer constatam a tendência da racionalidade instrumental de se transformar em loucura assassina: a “luminosidade gelada” da razão calculista “carrega a semente da barbárie”. Em uma nota redigida em 1945 para Minima Moralia, Adorno utiliza a expressão “progresso regressivo” tentando de dar conta da natureza paradoxal da civilização moderna.18

Entretanto, essas expressões ainda são tributárias, apesar de tudo, da filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são em nada uma “regressão à barbárie” – ou mesmo uma “regressão”: não há nada no passado que seja comparável à produção industrial, científica, anônima e racionalmente administrada da morte em nossa época. Basta comparar Auschwitz e Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos bárbaras do século IV para se dar conta que eles não têm nada em comum: a diferença não é somente na escala, mas na natureza. É possível comparar as práticas mais “ferozes” dos “selvagens” – morte ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, redução das cabeças etc. – com uma câmara de gás ou uma bomba atômica? São fenômenos inteiramente novos, que não seriam possíveis a não ser no século XX.

As atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa civilização industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são mais “regressões”: são crimes irremediavelmente e exclusivamente modernos.

Existe entretanto um domínio específico da “barbárie civilizada” em que se pode efetivamente falar de regressão: a tortura. Como destaca Eric Hobsbawn em seu admirável ensaio de 1994, “Barbárie: um guia para o usuário”: “A partir de 1782 a tortura foi formalmente eliminada do procedimento judiciário dos países civilizados. Em teoria, ela não era mais tolerada nos aparelhos coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prática era tão forte que ela não pôde retornar após a derrota da Revolução Francesa que a havia seguramente abolido (…) Pode-se suspeitar que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao progresso moral – por exemplo as prisões militares ou outras instituições análogas – ela de fato não desapareceu…” Ora, no século XX, sob o fascismo e o estalinismo, nas guerras coloniais – Argélia, Irlanda etc. – e nas ditaduras latino-americanas, a tortura é de novo empregada em grande escala.19

Os métodos são diferentes – a eletricidade substitui o fogo e os torniquetes – mas a tortura de prisioneiros políticos tornou-se, no curso do século XX, uma prática rotineira – mesmo se não-oficial – de regimes totalitários, ditatoriais, e mesmo, em certos casos (as guerras coloniais), “democráticos”. Nesse caso, o termo “regressão” é pertinente, na medida em que a tortura era praticada em inúmeras sociedades pré-modernas, e também na Europa, da Idade Média até o século XVIII. Um uso bárbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso do século XIX voltou no século XX, sob uma forma mais “moderna” – do ponto de vista das técnicas – mas não menos desumana.

Levar em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício – nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna – ou de sua cópia “socialista” burocrática.

Não se trata também de reduzir a história do século XX a seus momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1961; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994; foram alguns dos momentos fortes – mesmo se efêmeros – dessa dimensão emancipadora do século. Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta das gerações futuras por uma sociedade humana e solidária.

Notas:

1 Norbert Elias, La Dynamique de l’Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975, pp.181-190. A referência ao combate abissínio soa estranha no momento em que a Etiópia combatia pela sua liberdade contra a invasão colonial do fascismo italiano, portador de uma pretensa missão “civilizadora”.

2 Norbert Elias, La civilisation des moeurs, Paris, Calmann-Lévy, 1973, p.280.

3 Marx, Le Capital, vol. I, p.557-558, 563.

4 K. Marx, “Arbeitslohn”, 1847, Kleine Ökonomische Schriften, Berlin, Dietz Verlag, 1955, p.245.

5 R. Luxemburgo, A crise da social-democracia, 1915.

6 Kafka, “In der Strafkolonie”, Erzählung und kleine Prosa, N. York, Schocken Books, 1946, pp.181-113.

7 W. Benjamin, “O surrealismo. O último instante de inteligência européia”, 1929. Mythe et violence, Paris, Letras Novas, 1971, p.312

8 Lembremos que o grande truste químico IG Farben não somente utilizou massivamente a mão-de-obra escrava em Auschwitz mas também produziu o gás Zyklotron B, que servia para exterminar as vítimas do sistema concentracionário.

9 Zygmut Bauman, Modernity and the Holocaust, London, Polity Press, 1989, p.15, 28.

10 Citado por Zygmunt Bauman, op.cit, p.71

11 Enzo Traverso, L’Histoire déchirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels, Paris, Cerf, 1997

12 Sobre esse assunto, remeto à excelente colocação de Enzo Traverso, “A singularidade de Auschwitz. Hipóteses, problemas e derivações da pesquisa histórica”. Pour une critique de la barbarie moderne. Ecrits sur l’histoire des Juifs e de l’antisémitisme, Lausanne, Ed. Page deux, 1997.

13 Citado dos arquivos históricos recentemente abertos ao público em Barton J. Bernstein, “The Atomic Bombings Reconsidered”, Foreign Affairs, fevereiro 1995, p. 143.

14 Ibid, p.146.

15 Sobre as reservas de Marshall, cf. Barton J. Bernstein, Op.cit, p.143.

16 De fato, é inteiramente racional se a “razão” significa racionalidade instrumental, aplicar a força militar norte-americana, os B-52, o napalm e todo o resto no Vietnã “sob dominação comunista” (claramente um “objeto indesejável”), como o “operador” para o transformar em “objeto desejável”. Joseph Weizenbaum, “Computer Power and Human Reason”. From Judgmente to Calculation, S. Francisco, W.H. Freeman, 1976, p.252

17 Outras guerras coloniais tiveram lugar no século XX – na Indochina, na Argélia, na África colonial portuguesa etc., mas nenhuma atingiu o grau de modernidade como aquela do Vietnã. Em comparação, elas parecem arcaicas, primitivas.

18 T.W.Adorno, M. Horkheimer, La Dialectique de la raison, Paris, Gallimard, 1974, p.48 e T.W. Adorno, Minima Moralia, Paris, Payot, 1983, p.134

19 E. Hobsbawn, Barbarism: An User’s Guide. On History, London, Weidenfelds and Nicholson, 1997, pp.259-263.

Tradução: Alessandra Ceregatti

Michael Löwy, brasileiro, é sociólogo, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França

Fonte:Socialismo e Liberdade

Civilização ou barbárie

Retirantes, de Portinari

Retirantes, de Portinari

Caderno ENSAiOS publica excelente artigo do Prof. Emir Sader sobre a desqualificação das outras civilizações, tradicionalmente denominadas, desde os antigos gregos, de bárbaras.

Por Emir Sader, na Carta Maior

Esse é o lema predominante no capitalismo contemporâneo. Universalizado a partir da Europa ocidental, o capitalismo desqualificou a todas outras civilizações como “bárbaras”. A ponto que, como denuncia em um livro fundamental, Orientalismo, de Edward Said, o Ocidente forjou uma noção de Oriente, que amalgama tudo o que não é Ocidente: mundo árabe, japonês, chinês, indiano, africano, etc. etc. Fizeram Ocidente sinônimo de civilização e Oriente, o resto, idêntico a barbárie.

No cinema, na literatura, nos discursos, civilização é identificada com a civilização da Europa ocidental – a que se acrescentou a dos EUA posteriormente. Brancos, cristãos, anglo-saxões, protestantes – sinônimo de civilizados. Foram o eixo da colonização da periferia, a quem queriam trazer sua “civilização”. Foram colonizadores e imperialistas.

Os EUA se encarregaram de globalizar a visão racista do mundo, através de Hollywood. Os filmes de far west contavam como gesto de civilização as campanhas de extermínio das populações nativas nos EUA, em que o cow boy era chamado de “mocinho” e, automaticamente, os indígenas eram “bandidos, gestos que tiveram em John Wayne o “americano indômito”, na realidade a expressão do massacre das populações originárias.

Os filmes de guerra foram sempre contra outras etnias: asiáticos, árabes, negros, latinos. O país que protagonizou o maior massacre do século passado – a Alemanha nazista -, com o holocausto de judeus, comunistas, ciganos, foi sempre poupada pelos nortemamericanos, porque são iguais a eles – brancos, anglo-saxões, capitalistas, protestantes. O único grande filme sobre o nazismo foi feito pelo britânico Charles Chaplin – O grande ditador –, que teve que sair dos EUA antes mesmo do filme estrear, pelo clima insuportável que criaram contra ele.

Os países que supostamente encarnavam a “civilização” se engalfinharam nas duas guerras mundiais do século XX, pela repartição das colônias – do mundo bárbaro – entre si, em selvagens guerras interimperialistas.

Essa ideologia foi importada pela direita paulista, aquela que se expressou no “A questão social é questão de polícia”, do Washington Luis – como o FHC, carioca importado pela elite paulista –, derrubada pelo Getúlio e que passou a representar o anti-getulismo na politica brasileira. Tentaram retomar o poder em 1932 – como bem caracterizou o Lula, nada de revolução, um golpe, uma tentativa de contrarrevolução –, perderam e foram sucessivamente derrotados nas eleições de 1945, 1950, 1955. Quando ganharam, foi apelando para uma figura caricata de moralista, Jânio, que não durou meses na presidência.

Aí apelaram aos militares, para implantar sua civilização ao resto do país, a ferro e fogo. Foi o governo por excelência dessa elite. Paz sem povo – como o Serra prometia no campo: paz sem o MST.

Veio a redemocratização e essa direita se travestiu de neoliberal, de apologista da civilização do mercado, aquela em que, quem tem dinheiro tem acesso a bens, quem não tem, fica excluído. O reino do direito contra os direitos para todos.

Essa elite paulista nunca digeriu Getúlio, os direitos dos trabalhadores e seus sindicatos, se considerava a locomotiva do país, que arrastava vagões preguiçosos – como era a ideologia de 1932. Os trabalhadores nordestinos, expulsados dos seus estados pelo domínio dos latifundiários e dos coronéis, foi para construir a riqueza de São Paulo. Humilhados e ofendidos, aqueles “cabeças chatas” foram os heróis do progresso da industrialização paulista. Mas foram sempre discriminados, ridicularizados, excluídos, marginalizados.

Essa “raça” inferior a que aludiu Jorge Bornhausen, são os pobres, os negros, os nordestinos, os indígenas, como na Europa “civilizada” são os trabalhadores imigrantes. Massa que quando fica subordinada a eles, é explorada brutalmente, tornava invisível socialmente.

Mas quando se revela, elege e reelege seus lideres, se liberta dos coronéis, conquista direitos, com o avanço da democratização – aí são diabolizadas, espezinhadas, tornadas culpadas pela derrota das elites brancas. Como agora, quando a candidatura da elite supostamente civilizada apelou para as explorações mais obscurantistas, para tentar recuperar o governo, que o povo tomou das suas mãos e entregou para líderes populares.

É que eles são a barbárie. São os que chegaram a estas terras jorrando sangue mediante a exploração das nossas riquezas, a escravidão e o extermínio das populações indígenas. Civilizados são os que governam para todos, que buscam convencer as pessoas com argumentos e propostas, que garantem os direitos de todos, que praticam a democracia. São os que estão construindo uma democracia com alma social – que o Brasil nunca tinha tido nas mãos desses supostos defensores da civilização.