Mais borracha que lápis

Por Sergio Ricardo, da sua página no Facebook

satirical-art-pawel-kuczynski-5-600x979Uma partitura musical, como disse A. C. Jobim, se escreve a lápis e borracha. Muito mais borracha que lápis, até que se chegue à forma final. Assim mesmo se usará a borracha quando os instrumentos ou vozes a vierem entoar, eliminando aqui e ali alguma imperfeição para que se atinja a beleza, se não a suprema, pelo menos a desejada.

Se os enganos na composição dos feitos da humanidade tivessem sido apagados no correr das tentativas pela rica melodia entre os seres, teríamos alcançado a perfeição como uma civilização harmônica e feliz. Se Deus escreveu certo com linhas tortas, com certeza ensinou o Tom, porque canção também se faz com linhas tortas, e deve ter usado muita borracha para compor um universo tão perfeito e belo, em seus mínimos detalhes. Criou o homem à sua semelhança que saiu compondo partituras belíssimas, para cujas imperfeições tentou nos impor o uso da borracha, que por displicência se deixou de lado. Deu no que deu.

Os equívocos descartáveis foram-se acumulando milênios afora ao ponto de estarmos cobertos por eles. Em todos os níveis, políticos, sociais, ambientais, morais, beligerantes, partidários, afetivos, comportamentais, pessoais e outros ais. Mesmo as conquistas da ciência, da arte, dos grandes pensadores, que fizeram uso da borracha, estão cobertas pelo lixo descomunal que se acumulou, deixando um ou outro reduto respirável, onde se debate contra o sufoco, prestes a sucumbir na rigidez da crosta que envolve o planeta, preconizando o fim de um sonho.

Haja borracha para apagarmos esse lixo. A começar pela ambição desmedida dos afortunados, hoje donos do sacrifício dos povos, a lambuzar-se de poder e dinheiro, manipulando a ausência da borracha, deixando proliferar sua fábrica de inutilidades, iludindo a necessidade da borracha dos deslumbrados, manipulados pelo arquivamento da borracha dos porta-vozes das desimportâncias no consumo do lixo, como se estivessem distribuindo o manjar dos deuses.

A seguir, pela falta de borracha nas ideologias, cujas imperfeições criaram outra omissão da borracha dos opositores, e em decorrência na carência de borracha na intenção de governantes, a pulverizar a necessidade da borracha no seu entendimento com as massas, por sua vez obrigadas a se entupir do lixo que lhes é imposto. E terminar na premência de borracha no conformismo do povo, que induzido, perdeu o fio da canção, levado à inércia e a crer na sua incapacidade de construir um projeto eficaz para por fim a essa lixasse. Os equívocos e conflitos ficam a se digladiar, numa masturbação inócua, jogando pelo ralo semens do saber e inspiração que poderiam estar criando as belas canções de sua lavra.

Quando se diz “paciência, vai fazer o que” devia se passar a borracha na frase toda. Bastava dizer: “caralho, temos que fazer alguma coisa”. Passar a borracha no caralho para não espantar os puristas e ficar com o resto da frase. Transformá-la numa célula e multiplicá-la infinitesimalmente na irradiação de variantes de condutas, apagando aqui e ali suas imperfeições nas junções dos caminhos, até que em fractais fosse contaminando as cabeças, provocando uma ação consciente em busca da unidade, com a pureza de uma linda canção Jobiniana.

Talento não nos falta. Saiamos neste samba antes que explodam a avenida.

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Vento bravo, com Tom e Edu

 

Vento Bravo, de Edu Lobo e Paulo César Pinheiro, numa gravação memorável com Tom Jobim e o próprio Edu.

Aproveito e deixo a letra da canção aí embaixo. É um poema notável.

VENTO BRAVO

Era um cerco bravo, era um palmeiral,
Limite do escravo entre o bem e o mal
Era a lei da coroa imperial
Calmaria negra de pantanal
Mas o vento vira e do vendaval
Surge o vento bravo, o vento bravo

Era argola, ferro, chibata e pau
Era a morte, o medo, o rancor e o mal
Era a lei da Coroa Imperial
Calmaria negra de pantanal
Mas o tempo muda e do temporal
Surge o vento bravo, o vento bravo

Como um sangue novo
Como um grito no ar
Correnteza de rio
Que não vai se acalmar
Se acalmar

Vento virador no clarão do mar
Vem sem raça e cor, quem viver verá
Vindo a viração vai se anunciar
Na sua voragem, quem vai ficar
Quando a palma verde se avermelhar
É o vento bravo
O vento bravo

Como um sangue novo
Como um grito no ar
Correnteza de rio
Que não vai se acalmar
Que não vai se acalmar
Que não vai se acalmar
Que não vai se acalmar
Que não vai se acalmar.

Wave, Stan Getz

A performance do saxofonista Stan Getz para a obra de Tom Jobim é de uma delicadeza que impressiona. A gravação, realizada em Copenhagen, está fazendo 40 anos. Continua significativa por vários motivos, dentre outros, por sua rara atualidade.