O latifúndio multinacional

Metáfora do capitalismoPor Mauro Santayana

Os grandes bancos já controlam, mediante o sistema constituído dos fabricantes de agrotóxicos, como a Monsanto, intermediários, exportadores, importadores e compradores locais, usinas de beneficiamento, bolsas de futuros, silos e armazéns, o mercado mundial de alimentos. Agora, associados aos governos dos países centrais, estão avançando sobre as terras onde ainda há áreas férteis disponíveis. Só existem dois continentes com essa possibilidade: a África e a América do Sul.

A China, cujo espaço territorial é quase todo árido e fragmentado em centenas de milhões de áreas reduzidíssimas, exploradas por famílias numerosas, está hoje à frente dessa conquista territorial nos dois grandes continentes. Seu rival histórico, e que sofre da mesma dificuldade geológica, o Japão, mais antigo nesse movimento, disputa as mesmas áreas. Sobre o assunto, no que se refere à China, vale a pena conhecer o estudo de Dambisa Moyo, Winner Take All (O vencedor leva tudo). No caso da China não se trata só de empreendedores privados, mas de operação conduzida pelo Estado, como controlador direto de toda a economia do país. Muitos se preocupam com a compra, direta, de jazidas minerais pelos chineses, mas se esquecem do mais estratégico bem da natureza, que é a terra e, com ela, a comida. Ao juntar a agricultura à mineração (a China comprou uma serra inteira ao Peru, uma das maiores reservas de cobre) os chineses buscam controlar o solo rico do planeta.

Empresas multinacionais, além das organizações chinesas e japonesas, estão adquirindo as áreas disponíveis nas margens dos rios africanos, onde é fácil a irrigação. O mesmo ocorre na América do Sul, e mais no Brasil, onde segundo informações oficiosas, já foram investidos 60 bilhões de dólares na compra de terras. Os chineses usam argentinos como laranjas, para constituir firmas agropecuárias de fachada. O projeto chinês é importar tudo o que produzir para seu próprio consumo.

Ainda agora, na discussão, entre o governo e as Farc, na Colômbia, soube-se que lá não há titularidade regular das terras. Bastou que o governo e os guerrilheiros se dispusessem a discutir, em primeiro lugar, o problema da terra, para que o presidente Santos fosse contestado pelas oligarquias, por meio do ex-presidente Uribe.

No caso da África, os compradores se entendem diretamente com os governantes, muitos deles notórios corruptos. Os pobres não têm como resistir aos governos e são expulsos, dando lugar a trabalhadores chineses. No mundo neoliberal, esse movimento de ocupação estrangeira, impelido pelo agronegócio, é a globalização do latifúndio. Se, no Brasil, não houver uma reação forte e estratégica, seremos súditos dos novos donos das terras. E chegará o dia em que só as recuperaremos com sangue.

Este texto foi publicado originalmente em Mauro Santayana.

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Nacionalismo e Desenvolvimento Econômico II

Nacionalismo e desenvolvimento econômico I

50 verdades sobre as sanções econômicas dos Estados Unidos contra Cuba

Mais de 70% dos cubanos nasceram sob o estado de sítio econômico.

Mais de 70% dos cubanos nasceram sob o estado de sítio econômico.

Por Salim Lamrani*

A visita da estrela estadunidense da música Beyoncé e de seu marido Jay-z à Havana voltou a levantar polêmica sobre a manutenção das sanções contra Cuba, em vigor há mais de meio século. Eis aqui alguns dados sobre o mais extenso estado de sítio econômico da história.

1) A administração republicana de Dwight D. Eisenhower impôs as primeiras sanções econômicas contra Cuba em 1960, oficialmente por causa do processo de nacionalizações que o governo revolucionário de Fidel Castro empreendeu.

2) Em1962, o governo democrata de John F. Kennedy aplicou sanções econômicas totais contra a ilha.

3) O impacto foi terrível. Os Estados Unidos sempre constituíram o mercado natural de Cuba. Em 1959, 73% das exportações eram feitas para o vizinho do norte e 70% das importações precediam deste território.

4) Agora, Cuba não pode exportar nem importar nada dos Estados Unidos. Desde 2000, depois das pressões do lobby agrícola estadunidense que buscava novos mercados para seus excedentes, a cidade de Havana está autorizada a importar algumas matérias-primas alimentícias, com condições draconianas.

5) A retórica diplomática para justificar o endurecimento deste estado de sítio econômico evoluiu com o tempo. Entre 1969 e 1990, os Estados Unidos evocaram o primeiro caso de expropriações de suas empresas para justificar sua política hostil contra Havana. Em seguida, Washington evocou sucessivamente a aliança com a União Soviética, o apoio às guerrilhas latino-americanas na luta contra as ditaduras militares e a intervenção cubana na África para ajudar as antigas colônias portuguesas a conseguir sua independência e a defendê-la.

6) Em 1991, depois do desmoronamento do bloco soviético, em vez de normalizar as relações com Cuba, os Estados Unidos decidiram reforçar as sanções invocando a necessidade de reestabelecer a democracia e o respeito aos direitos humanos.

7) Em 1992, sob a administração de Bush pai, o Congresso dos Estados Unidos adotou a lei Torricelli, que recrudesce as sanções contra a população cubana e lhes dá um caráter extraterritorial, isto é, contrário à legislação internacional.

8) O direito internacional proíbe toda lei nacional de ser extraterritorial, isto é, de ser aplicada além das fronteiras do país. Assim, a lei francesa não pode ser aplicada na Alemanha. A legislação brasileira não pode ser aplicada na Argentina. Não obstante, a lei Torricelli é aplicada em todos os países do mundo.

9) Assim, desde 1992, todo barco estrangeiro – qualquer que seja sua procedência – que entre em um porto cubano, se vê proibido de entrar nos Estados Unidos durante seis meses.

Fidel Castro na Assembleia Geral da ONU

Fidel Castro na Assembleia Geral da ONU

10) As empresas marítimas que operam na região privilegiam o comércio com os Estados Unidos, primeiro mercado mundial. Cuba, que depende essencialmente do transporte marítimo por sua insularidade, tem de pagar um preço muito superior ao do mercado para convencer as transportadoras internacionais a fornecer mercadoria à ilha.

11) A lei Torricelli prevê também sanções aos países que brindam assistência a Cuba. Assim, se a França ou o Brasil outorgarem uma ajuda de 100 milhões de dólares à ilha, os Estados Unidos cortam o mesmo montante de sua ajuda a essas nações.

12) Em 1996, a administração Clinton adotou a lei Helms-Burton que é ao mesmo tempo extraterritorial e retroativa, isto é, se aplica sobre feitos ocorridos antes da adoção da legislação, o que é contrário ao direito internacional.

13) O direito internacional proíbe toda legislação de ter caráter retroativo. Por exemplo, na França, desde 1º de janeiro de 2008, está proibido fumar nos restaurantes. Não obstante, um fumador que tivesse consumido um cigarro no dia 31 de dezembro de 2007 durante um jantar não pode ser multado por isso, já que a lei não pode ser retroativa.

14) A lei Helms-Burton sanciona toda empresa estrangeira que se instalou em propriedades nacionalizadas pertencentes a pessoas que, no momento da estatização, dispunham de nacionalidade cubana, violando o direito internacional.

15) A lei Helms-Burton viola também o direito estadunidense que estipula que as demandas judiciais nos tribunais somente são possíveis se a pessoa afetada por um processo de nacionalizações era um cidadão estadunidense quando ocorreu a expropriação e que esta tenha violado o direito internacional público. Veja só, nenhum destes requisitos são cumpridos.

16) A lei Helms-Burton tem como efeito dissuadir numerosos investidores de se instalarem em Cuba por temer represálias por parte da justiça estadunidense e é muito eficaz.

17) Em 2004, a administração de Bush filho criou a Comissão de Assistência a uma Cuba Livre, que impulsionou novas sanções contra Cuba.

18) Esta Comissão limitou muito as viagens. Todos os habitantes dos Estados Unidos podem viajar a seu país de origem quantas vezes quiserem – menos os cubanos. De fato, entre 2004 e 2009, os cubanos dos Estados Unidos só puderam viajar a ilha 14 dias a cada três anos, na melhor das hipóteses, desde que conseguissem uma autorização do Departamento do Tesouro.

19) Para poder viajar era necessário demonstrar que ao menos um membro da família vivia em Cuba. Não obstante, a administração Bush redefiniu o conceito de família, que se aplicou exclusivamente aos cubanos. Assim, os primos, sobrinhos, tios e outros parentes próximos já não formavam parte da família. Somente os avós, país, irmãos, filhos e cônjuges formavam parte da família, de acordo com a nova definição. Por exemplo, um cubano que residisse nos Estados Unidos não poderia visitar sua tia em Cuba, nem mandar uma ajuda econômica para seu primo.

20) Os cubanos que cumpriam todos os requisitos para viajar a seu país de origem, além de terem de limitar sua estadia a duas semanas, não podiam gastar ali mais de 50 dólares diários.

21) Todos os cidadãos ou residentes estadunidenses podiam mandar uma ajuda financeira a sua família, sem limite de valor, menos os cubanos, que não podiam mandar mais de 100 dólares ao mês entre 2004 e 2009.

22) Não obstante, era impossível a um cubano da Flórida mandar dinheiro à sua mãe que vivia em Havana – membro direto da sua família de acordo com a nova definição –, se a mãe militasse no Partido Comunista.

23) Em 2006, a Comissão de Assistência a uma Cuba Livre adotou outra norma que recrudesceu as restrições contra Cuba.

24) Com o objetivo de limitar a cooperação médica cubana com o resto do mundo, os Estados Unidos proibiram a exportação de equipamentos médicos a países terceiros “destinados a serem utilizados em programas de grande escala [com] pacientes estrangeiros” mesmo apesar de a maior parte da tecnologia médica mundial ser de origem estadunidense.

25) Por causa da aplicação extraterritorial das sanções econômicas, uma fabricante de carros japonesa, alemã, coreana, ou outra, que deseje comercializar seus produtos no mercado estadunidense, tem de demonstrar ao Departamento do Tesouro que seus carros não contêm nem um só grama de níquel cubano.

26) Do mesmo modo, um confeiteiro francês que deseje entrar no primeiro mercado do mundo tem de demonstrar à mesma entidade que sua produção não contém um só grama de açúcar cubano.

27) Assim, o caráter extraterritorial das sanções limita fortemente o comércio internacional de Cuba com o resto do mundo.

28) Às vezes, a aplicação destas sanções toma um rumo menos racional. Assim, todo turista estadunidense que consuma um cigarro cubano ou um copo de rum Havana Club durante uma viagem ao exterior, na França, no Brasil ou no Japão, se arrisca a pagar uma multa de um milhão de dólares e a ser condenado a dez anos de prisão.

29) Do mesmo modo, um cubano que resida na França, teoricamente não pode comer um sanduíche do McDonald’s.

30) O Departamento do Tesouro é taxativo a respeito: “Muitos se perguntam com frequência se os cidadãos estadunidenses podem adquirir legalmente produtos cubanos, inclusive tabaco ou bebidas alcóolicas, em um país terceiro para seu consumo pessoal fora dos Estados Unidos. A resposta é não”.

31) As sanções econômicas também têm um impacto dramático no campo da saúde.  Com efeito, cerca de 80% das patentes depositadas no setor médico provêm das multinacionais farmacêuticas estadunidenses e de suas subsidiárias e Cuba não pode ter acesso a elas. O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos sublinha que “as restrições impostas pelo embargo têm contribuído para privar Cuba de um acesso vital a medicamentos, novas tecnologias médicas e científicas”.

32) No dia 3 de fevereiro de 2006, uma delegação de dezesseis funcionários cubanos, reunida com um grupo de empresários estadunidenses, foi expulsa do Hotel Sheraton María Isabel da capital mexicana, violando a lei asteca que proíbe todo tipo de discriminação por raça ou origem.

33) Em 2006, a empresa japonesa Nikon se negou a entregar o primeiro prêmio – uma câmera – a Raysel Sosa Rojas, jovem cubano de 13 anos que sofre de uma hemofilia hereditária incurável, que ganhou o XV Concurso Internacional de Desenho Infantil do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). A multinacional nipônica explicou que a câmera digital não poderia ser entregue ao jovem cubano porque continha componentes estadunidenses.

34) Em abril de 2007, o banco Bawag, vendido ao fundo financeiro estadunidense, fechou as contas de uma centena de clientes de origem cubana que residiam na república alpina, aplicando assim, de modo extraterritorial, a legislação estadunidense em um país terceiro.

35) Em 2007, o banco Barclays ordenou às suas filiais de Londres que fechassem as contas de duas empresas cubanas: Havana International Bank e Cubanacán, depois de a Ofac (Office of Foreign Assets Control, ou Oficina de Controle de Bens Estrangeiros) do Departamento do Tesouro, efetuar prisões.

36) Em julho de 2007, a companhia aérea espanhola Hola Airlines, que tinha um contrato com o governo cubano para transportar pacientes que padeciam de doenças oculares no marco da Operação Milagre teve de por fim às suas relações com Cuba. Com efeito, quando solicitou ao fabricante estadunidense Boeing que realizasse consertos em um avião, este lhe exigiu como condição que rompesse seu contrato com a ilha caribenha e explicou que a ordem era procedente do governo dos Estados Unidos.

37) No dia 16 de dezembro de 2009, o banco Crédit Suisse recebeu uma multa de 536 milhões de dólares do Departamento do Tesouro por realizar transações financeiras em dólares com Cuba.

38) Em junho de 2012, o banco holandês ING recebeu a maior sanção jamais aplicada desde o início do estado de sítio económico contra Cuba em 1960. A Ofac, do Departamento do Tesouro, sancionou a instituição financeira com uma multa de 619 milhões de dólares por realizar, entre outras, transações em dólares com Cuba, através do sistema financeiro estadunidense.

39) Os turistas estadunidenses podem viajar para a China, principal rival econômica e política dos Estados Unidos, para o Vietnã, país contra o qual Washington esteve mais de quinze anos em guerra, ou para a Coréia do Norte, que possui armamento nuclear e ameaça usá-lo, mas não para Cuba, que, em sua história, jamais agrediu os Estados Unidos.

40) Todo cidadão estadunidense que viole esta proibição se arrisca a uma sanção que pode alcançar 10 anos de prisão e um milhão de dólares de multa.

41) Depois das solicitações de Max Baucus, senador do Estado de Montana, o Departamento do Tesouro admitiu ter realizado, desde 1990, apenas 93 investigações relacionadas ao terrorismo internacional. No mesmo período, efetuou outras 10.683 “para impedir que os estadunidenses exerçam seu direito de viajar a Cuba”.

42) Em um boletim, a Gao (United States Government Accountability Office, ou Oficina de Responsabilidade Governamental dos Estados Unidos) apontou que os serviços aduaneiros (Customs and Border Protection – CBP) de Miami realizaram inspeções “secundárias” sobre 20% dos passageiros procedentes de Cuba em 2007 com a finalidade de comprovar que não importavam tabaco, álcool ou produtos farmacêuticos da ilha. Por outro lado, a média de inspeções foi só de 3% para o restante dos viajantes. Segundo a GAO, este enfoque sobre Cuba “reduz a aptidão dos serviços aduaneiros para levar a cabo sua missão que consiste em impedir que os terroristas, criminosos e outros estrangeiros indesejáveis entrem no país”.

43) Os ex-presidentes James Carter e William Clinton expressaram várias vezes sua oposição à política de Washington. “Não deixei de pedir pública e privadamente a eliminação de todas as restrições financeiras, comerciais e de viagem”, declarou Carter depois de sua segunda estadia em Cuba em março de 2011. Para Clinton, a política de sanções “absurda” tem sido um “fracasso total”.

44) A Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que representa o mundo dos negócios e as mais importantes multinacionais do país, também expressou sua oposição à manutenção das sanções econômicas.

45) O jornal The New York Times condenou “um anacronismo da Guerra Fria”.

46) O Washington Post, diário conservador, aparece como o mais virulento quando se trata da política cubana de Washington: “A política dos Estados Unidos em relação a Cuba é um fracasso […]. Nada mudou, exceto que o nosso embargo nos torna mais ridículos e impotentes que nunca”.

47) A maior parte da opinião pública estadunidense também está a favor de uma normatização das relações entre Washington e Havana. Segundo uma pesquisa realizada pela CNN no dia 10 de abril de 2009, 64% dos cidadãos estadunidenses se opõe às sanções econômicas contra Cuba.

48) De acordo com a empresa Orbitz Worldwide, uma das mais importantes agências de viagem da internet, 67% dos habitantes dos Estados Unidos desejam ir de férias para Cuba e 72% acreditam que “o turismo em Cuba teria um impacto positivo na vida cotidiana do povo cubano”.

49) Mais de 70% dos cubanos nasceram sob o estado de sítio econômico.

50) Em 2012, durante a reunião anual da Assembleia Geral das Nações Unidas, 188 países de 192 condenaram pela 21ª vez consecutiva as sanções econômicas contra Cuba.

Para aprofundar-se sobre o tema:

* Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade de Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama The Economic War Against Cuba. A Historical and Legal Perspective on the U.S. Blockade, New York, Monthly Review Press, 2013, com prólogo de Wayne S. Smith e prefácio Paul Estrade. 
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As mãos dos EUA sobre a América Latina

O ciclo

Por Mark Weisbrot, da Folha de São Paulo, via Viomundo

Tradução de Clara Allain

Acontecimentos recentes indicam que a administração Obama intensificou sua estratégia de “mudança de regime” contra os governos latino-americanos à esquerda do centro, promovendo conflito de maneiras que não eram vistas desde o golpe militar apoiado pelos EUA na Venezuela em 2002.

O exemplo mais destacado é o da própria Venezuela na última semana. No momento em que este artigo está sendo impresso, Washington está mais e mais isolada em seus esforços para desestabilizar o governo recém-eleito de Nicolás Maduro.

Mas a Venezuela não é o único país vitimado pelos esforços de Washington para reverter os resultados eleitorais dos últimos 15 anos na América Latina.

Está claro agora que o afastamento do presidente paraguaio Fernando Lugo, no ano passado, também teve a aprovação e o apoio do governo dos Estados Unidos.

Num trabalho investigativo brilhante para a agência Pública, a jornalista Natalia Viana mostrou que a administração Obama financiou os principais atores do chamado “golpe parlamentar” contra Lugo. Em seguida, Washington ajudou a organizar apoio internacional ao golpe.

O papel exercido pelos EUA no Paraguai é semelhante ao seu papel na derrubada militar, em 2009, do presidente democraticamente eleito de Honduras, Manuel Zelaya, caso no qual Washington dominou a Organização de Estados Americanos e a utilizou para combater os esforços de governos sul-americanos que visavam restaurar a democracia.

Na Venezuela, na semana passada, Washington não pôde dominar a OEA, mas apenas seu secretário-geral, José Miguel Insulza, que reiterou a reivindicação da Casa Branca (e da oposição venezuelana) de uma recontagem de 100% dos votos.

Mas Insulza teve de recuar, como teve de fazer a Espanha, única aliada importante dos EUA nessa empreitada nefanda, por falta de apoio.

A exigência de uma recontagem na Venezuela é absurda, já que foi feita uma recontagem das cédulas de papel de uma amostra aleatória de 54% do sistema eletrônico. O total obtido nas máquinas foi comparado à contagem manual das cédulas de papel na presença de testemunhas de todos os lados.

Estatisticamente falando, não existe diferença prática entre essa auditoria enorme já realizada e a recontagem.

Jimmy Carter descreveu o sistema eleitoral da Venezuela como “o melhor do mundo”, e não há dúvida quanto à exatidão da contagem.

É bom ver Lula denunciando os EUA por sua ingerência, e Dilma juntando sua voz ao resto da América do Sul para defender o direito da Venezuela a eleições livres.

Mas não apenas a Venezuela e as democracias mais fracas que estão ameaçadas pelos EUA.

Conforme relatado nas páginas deste jornal, em 2005 os EUA financiaram e organizaram esforços para mudar a legislação brasileira com vistas a enfraquecer o PT. Essa informação foi descoberta em documentos do governo americano obtidos graças à lei americana de liberdade de informação. É provável que Washington tenha feito no Brasil muito mais e siga em segredo.

Está claro que os EUA não viram o levemente reformista Fernando Lugo como um elemento ameaçador ou radical. O problema era apenas sua proximidade excessiva com os outros governos de esquerda.

Como a administração Bush, a administração Obama não aceita que a região mudou. Seu objetivo é afastar os governos de esquerda, em parte porque tendem a ser mais independentes de Washington. Também o Brasil precisa se manter vigilante diante dessa ameaça à região.

Mark Weisbrot é codiretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy.

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A peste e a retórica do silêncio

A crise no Paraguai e a estabilidade continental

Matando a esperança no Brasil

Os últimos anos antes do golpe militar

Florestan Fernandes e a teoria do Brasil

Segunda classe, Tarsila do Amaral.

Segunda classe, Tarsila do Amaral.

Por Pedro Carrano, Vitória/ES, via Brasil de Fato

A contribuição de Florestan Fernandes para o desenvolvimento de um olhar sobre o Brasil permanece na ordem do dia para o debate da esquerda brasileira. Essa é a compreensão de José Paulo Netto, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Em debate organizado pela Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), ele falou sobre o legado do pensador brasileiro ao Brasil de Fato. Além disso, Netto problematizou a relação entre os movimentos sociais e a sua incidência na universidade pública.

Brasil de Fato – Você está participando de uma mesa sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Qual a atualidade do pensamento de Florestan hoje?

José Paulo Netto – A meu juízo, Florestan foi o maior cientista social brasileiro. E se a gente olhar com cuidado, o conjunto da sua obra, que é muito diferenciada, você percebe sua evolução, levando em conta os trabalhos dele do final dos anos 1940 até, por exemplo, a sua intervenção pública, na primeira metade dos anos 1990 – porque na obra dele não há como separar o cientista do homem público que ele foi.

Eu diria que o Florestan tem uma obra diferenciada, com momentos distintos, mas ele deixa uma teoria do Brasil. Meu amigo Carlos Nelson [Coutinho] (falecido em 2012), falava em imagem do Brasil. Eu acho que é mais que isso, é uma teoria do Brasil que ele formula. Eu diria que é uma interpretação do Brasil. Quando o Florestan, ainda fortemente funcionalista, está pensando na função da guerra entre os tupinambás, ele não está estudando um objeto arqueológico, ele está querendo entender o Brasil.

Ele traz um aporte a partir da caracterização de nossa economia como dependente. E qual a definição que ele dá ao caráter da elite brasileira?

O capitalismo periférico, dependente, a percepção que ele tem das nossas classes dominantes, isso é um momento da obra do Florestan. Esse é o momento culminante da obra do Florestan, eu diria que pós-golpe de 1964. O Florestan que foi, arbitrária e brutalmente, impedido de exercer seu magistério, pelo AI-5. Esse é o momento alto da obra de Florestan.

Mas não é o único dessa obra. Eu lembraria a você o trabalho sobre os negros, publicado na primeira metade dos anos 1960, a integração do negro na sociedade de classes, um contributo ao que eu chamo de teoria do Brasil. A concepção de dependência do Florestan não era weberiana, como foi de alguns teóricos da dependência que foram discípulos dele, o caso típico de Fernando Henrique Cardoso. Ele tem uma compreensão, a meu juízo, rigorosamente marxista.

Os duros juízos dele sobre as classes dominantes brasileiras me parecem absolutamente corretos e verazes. Falecido há 18 anos, Florestan é um absoluto contemporâneo nosso, um companheiro de jornada. É bastante provável que num juízo futuro os novos problemas da realidade brasileira exijam respostas que talvez não encontremos na obra de Florestan, mas as questões centrais foram as colocadas por ele.

Florestan Fernandes

Florestan Fernandes

No que estou chamando de teoria do Brasil de Florestan há um contributo de originalidade intelectual que é indiscutível. Mas Florestan é impensável, por exemplo, sem Caio Prado Júnior. Aquela obra-prima que é o livro A Revolução Burguesa no Brasil – com o que muita gente discorda – é uma reflexão originalíssima. Há um diálogo contínuo com Caio Prado, para dar um exemplo.

Na verdade, temos grandes pensadores, que não são necessariamente pensadores progressistas ou de esquerda, mas que contribuem para a construção disso que eu chamo de teoria do Brasil.

O professor Octavio Ianni costumava dizer que havia uma família de pensadores, uma linhagem que começa a rigor com Euclides da Cunha, que vai envolver personagens extremamente conservadores, como por exemplo, Oliveira Viana, um pensador no limite do conservadorismo. Florestan se beneficiou do diálogo com todos esses autores. Agora, atenção: foi um diálogo extremamente crítico. Isso permitiu a Florestan, face a vários pensadores, elaborar uma síntese superadora e criativa.

Saindo um pouco do contexto da conversa, há um texto recente em que você analisa que não há um problema de falta de teoria na esquerda; que o problema, hoje, é organizativo.

É um artigo pequeno, “O déficit da esquerda é organizacional”, mas que causou polêmica. Mas continuo sustentando aquilo. Eu não acho que nós já conhecemos o Brasil. Nós temos uma produção sobre o Brasil, e atenção: de pensadores marxistas e não marxistas. O que nos dá um estoque crítico para enfrentar a particularidade brasileira.

Eu não penso que os problemas da esquerda brasileira, hoje, estão num conhecimento deficitário da realidade brasileira. E da inserção do Brasil no mundo contemporâneo. Eu insisto, nós ainda não deciframos completamente esse enigma que é o Brasil. E aí a contribuição dos marxistas me parece importante, mas é preciso levar em conta que a constituição desse estoque de conhecimentos envolveu e envolve protagonistas, pesquisadores e estudiosos, que não são necessariamente marxistas e de esquerda. Mas a esquerda tem que se beneficiar e tem sido beneficiária disso. Eu não creio que as dificuldades da esquerda derivem da falta de um conhecimento substantivo da realidade brasileira. Eu penso que não tem sido possível conjugar esse conhecimento, sua implementação, no sentido de transformações revolucionárias e socialistas, da sociedade brasileira. Não tem sido possível articular isso com movimentos sociais de envergadura, e sobretudo organizações político-partidárias, significativas e expressivas, com ponderação forte na vida brasileira.

Cursos como o de especialização em Economia e Desenvolvimento Agrário, uma parceria entre a ENFF e uma universidade pública (Ufes), apontam para a a necessidade de os movimentos sociais ocuparem o espaço da universidade, ainda pouco acessível à maioria?

Vou me ater à universidade pública brasileira, cujo quadro é diferente da universidade privada. Acho que este tipo de experiência ainda é residual porque a nossa Universidade permanece excludente, apesar dos processos de massificação que tenham ocorrido dentro dela. Eu não diria democratização, mas massificação.

É um espaço com uma tara elitista, e isso é um viés negativo na nossa história acadêmica. A Universidade foi pensada para formar e servir as elites, mas numa sociedade de convivência democrática que temos hoje, do ponto de vista das liberdades políticas, a universidade também reflete as contradições que estão fora dela. Existe aí um enorme conservadorismo, mas há segmentos abertos a mudanças, progressistas, segmentos de esquerda. A universidade pública brasileira está cheia de problemas, mas ruim com ela, pior sem ela. Há que ter claro as limitações e as mazelas e defender o patrimônio que representa a universidade pública. Isso porque, se nesta universidade são residuais as experiências como esta, se nós abrirmos mão da defesa do caráter público, aí é que essas experiências não existirão.

Eu estou convencido que essa experiência do MST (na UFES), e de outros movimentos, não só aqui nessa universidade, mas em outros pontos, mostram que há audiência, ressonância e condições de se contribuir para romper essa tara elitista. O êxito dessas experiências pode reduzir resistências porque nem todas são de conservadorismo político, muitas das quais são corporativas. Alguns defendem que nesses programas não há excelência e qualidade. Se nós trabalharmos visando a excelência e a qualidade, vamos desarmar essas críticas e parte desses setores vão colaborar.

José Paulo Netto, UFRJ - Foto: Pedro Carrano

José Paulo Netto, UFRJ – Foto: Pedro Carrano

Como você analisa a realidade brasileira a partir de recentes movimentações de trabalhadores no campo econômico? Isso pode gerar condições para o debate da esquerda voltar a ganhar força?

Olha, eu sou otimista, mas como o meu velho mestre, Lukács, eu não sou otimista a curto prazo. Eu penso que os trabalhadores sofreram no mundo inteiro nos últimos 25 anos derrotas profundas que conduziram as classes trabalhadoras a uma posição defensiva, ou seja uma conjuntura – para usar uma linguagem cara ao professor Florestan – claramente contrarrevolucionária. Mas isso não apagou as lutas de classe. Tem gente que pensa que as lutas estavam velhas e voltaram com a crise do Euro. Eu não penso isso não, as lutas sociais prosseguiram, moleculares, nem sempre com visibilidade, mas os trabalhadores não foram conduzidos a essa condição bovinamente. Resistiram e não há dúvida de que no mundo essas lutas defensivas estão ganhando maior força e, no Brasil, também há uma reanimação do movimento dos trabalhadores. Se essas mobilizações não deixarem nenhum saldo organizativo, gerando novas direções de vanguardas, que se refletiriam em partidos e movimentos sociais, terão impacto, mas não será potencializado.

 Qual a importância da formação em um momento de descenso da luta de massas?

Acho que a coisa mais viva neste país se manifesta em duas dimensões, a primeira dimensão é a relação e a prática internacionalistas que eu vejo efetivamente no MST. A segunda, que para mim é da maior importância para a esquerda brasileira, se desenvolve em diferentes universidades, é a ênfase na formação política das novas gerações. (Colaboraram Alcione Nunes Farias, Adelson Lima, Sidevaldo Miranda Costa)

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“Nenhum país passa por mais de 300 aos de escravidão impunemente” / Entrevista com Eduardo de Assis Duarte

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