Da série Pequenos apontamentos noturnos
Por Theotonio de Paiva
Venho de assistir Amour, de Michael Haneke.
Numa tarde chuvosa, olho na saída do cinema para a enseada de Botafogo. E me vejo completamente sozinho numa sala cheia onde não mais se rebobinam as fitas. Não temos mais fitas, reconheço. E me deparo novamente com a dor implacável da nossa existência, da minha existência, da tua existência.
Os anos que se passaram, a decrepitude e a anatomia cruel da morte nos chegam pelas mãos de quem se acostumou a não transigir. Embora com uma inefável compaixão pelas suas criações indefesas, Michael Haneke é incapaz de ceder à tentação barata de mitigar ou amenizar o que se mostra desagradável, por vezes repugnante. É assim e, então, se mostra.
A história de amor e morte dos dois velhos músicos não cabe na tessitura dramática de quem há tempos abandonou a esperança. Tudo soa perturbador. Nada virá dos céus para nos reconfortar como se não pudéssemos saber da terrível notícia. A própria catarse é estrategicamente demovida com o final anunciado no começo barulhento de tudo.
Na tela, dois atores fabulosos no exercício da sua profissão. Emmanuelle Riva, de quem recordo com olhares juvenis, pasmado frente aos seus encantos em Hiroshima mon amour, de Alain Resnais, num roteiro comovente de Marguerite Duras. Lembro dela quando assisti uma cópia já surrada na antiga Cinemateca Macunaíma, no nono andar do prédio da ABI, aqui no Rio. E Jean-Louis Trintignant, cujas lembranças se confundiam em mim numa série de filmes, até se firmar na imagem do beijo em Anouk Aimée, em Un homme et une femme, de Claude Lelouch. E aquela musiquinha intragável.
E os dois, ali, imensos, gigantes, a se revolverem até mais não poder, não mais existir, não mais fazer sentido. Na ausência de tudo, resta o apartamento igualmente vazio, preenchido pela presença da filha, espectadora da tragédia, assim como eu e você.
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