Amor na sala vazia

Da série Pequenos apontamentos noturnos

Por Theotonio de Paiva

AmourVenho de assistir Amour, de Michael Haneke.

Numa tarde chuvosa, olho na saída do cinema para a enseada de Botafogo. E me vejo completamente sozinho numa sala cheia onde não mais se rebobinam as fitas. Não temos mais fitas, reconheço. E me deparo novamente com a dor implacável da nossa existência, da minha existência, da tua existência.

Os anos que se passaram, a decrepitude e a anatomia cruel da morte nos chegam pelas mãos de quem se acostumou a não transigir. Embora com uma inefável compaixão pelas suas criações indefesas, Michael Haneke é incapaz de ceder à tentação barata de mitigar ou amenizar o que se mostra desagradável, por vezes repugnante. É assim e, então, se mostra.

A história de amor e morte dos dois velhos músicos não cabe na tessitura dramática de quem há tempos abandonou a esperança. Tudo soa perturbador. Nada virá dos céus para nos reconfortar como se não pudéssemos saber da terrível notícia. A própria catarse é estrategicamente demovida com o final anunciado no começo barulhento de tudo.

Na tela, dois atores fabulosos no exercício da sua profissão. Emmanuelle Riva, de quem recordo com olhares juvenis, pasmado frente aos seus encantos em Hiroshima mon amour, de Alain Resnais, num roteiro comovente de Marguerite Duras. Lembro dela quando assisti uma cópia já surrada na antiga Cinemateca Macunaíma, no nono andar do prédio da ABI, aqui no Rio. E Jean-Louis Trintignant, cujas lembranças se confundiam em mim numa série de filmes, até se firmar na imagem do beijo em Anouk Aimée, em Un homme et une femme, de Claude Lelouch. E aquela musiquinha intragável.

E os dois, ali, imensos, gigantes, a se revolverem até mais não poder, não mais existir, não mais fazer sentido. Na ausência de tudo, resta o apartamento igualmente vazio, preenchido pela presença da filha, espectadora da tragédia, assim como eu e você.

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Hexecontalito

No meio do caminho

Pequenos apontamentos noturnos

Hexecontalito

Da série Pequenos apontamentos noturnos.

Por Theotonio de Paiva

Mário de Andrade anotou num exemplar do livro de poemas Le départ sous la pluie, escrito pelo poeta e crítico Sérgio Milliet, o significado de uma palavra rara e sonora: “Hexecontalito: pedra preciosa antiga hoje desconhecida, da qual se dizia que tinha sessenta cores”.

Na primeira folha em branco, Mário deixava uma impressão curiosa. Ao dar voltas naquele signo, como se estivesse plantado frente a um enigma, o escritor provocava o significante.

A partir daí, Antonio Candido, num belíssimo ensaio, O ato crítico, especula que essa anotação misteriosa é sugestiva. Assim, ao pensar sobre a obra do modernista, Candido sugere que o volteio crítico de Sérgio Milliet desnudaria um pensamento especialmente perplexo. Provocador, Millet surge como alguém que se apresentasse ensaiando sempre, expressão de um fluxo contínuo de peça inacabada, de obra cheia de incompletudes.

Às vezes, gerando a graciosa impressão de ser determinado, movido mesmo pela convicção de que a obra é um hexecontalito. As  sessenta cores não lhe cabe e é preciso de algum modo supor que se possa captar todas as sete mil faces do poema, as rubricas não escritas do drama, a metáfora insurgente do romance.

Num movimento singular, vê-se aquele leitor especialíssimo rodeando a escritura. E como um amante tímido, aceitando as suas contradições, recebe o  pedido lacônico para ficar na ante-sala, enquanto a conversa com o outro acontece mais dura. Sentado, se vê aflito, enquanto as tolas representações escorrem pelas frestas da porta e se permitem compreender insidiosamente.

Ao desconhecer o medo de se corrigir, como diz Candido, Milliet tracejava os planos de suas leituras, de suas criticas, como alguém que olha e refaz o próprio olhar sobre a obra e sobre si mesmo.

No meio do caminho

Drummond, auto-caricaturaDa série Pequenos apontamentos noturnos.

Por Theotonio de Paiva

Em meio aos meus trabalhos acadêmicos, releio Dante e sua comédia divina, segundo Boccaccio. Da minha janela, acompanho uma primavera que se liquefaz como um outono, cujo frio ambiciona sequestrar a alegria da alma dos cariocas.

Desde há muito tempo, o primeiro verso da obra do florentino desnorteia leitores e críticos ao provocar grandes e profundas angústias. No meio do caminho de sua existência, provavelmente revolvendo-se numa crise aguda, alegoricamente numa selva escura, Dante havia perdido o seu senso, a sua via reta.

Ora, a descida ao inferno daquele poeta na meia idade, impregnada pela necessidade de conhecer o lugar limitado que o homem ocuparia no universo, criado, circunscrito e dominado completamente por Deus, nos associa, e não há nisso nenhuma novidade, a uma outra queda, um outro meio do caminho: aquele em que havia uma pedra.

Artista emblemático do século passado, Drummond se qualifica como uma expressão do alto modernismo. Nele, há o pastiche, o tom paródico incontrolável. Conscientemente se contrapõe àquela austeridade da personagem-síntese do intelectual no medievo. Dono de uma profunda erudição em relação às culturas clássica e medieval, conhecedor profundo de filosofia, teologia, política, questões sociais e artísticas, no fundo, o homem seria para Dante um ser perdido. Daí a imagem de desesperança encontrada na porta do Inferno.

Mas voltemos ao Drummond. O poeta continua a nos incomodar com o seu claro enigma dos tempos ainda próximos de um olhar imaturo, belamente sem pudor. (Pois com 26 anos ainda se é muito jovem, apesar dos ternos fechados e dos penteados da época se prontificarem a desmentir isso com veemência.)

Impressiona o flagelo imputado ao poeta, quando o poema foi lançado, lá pelos idos de 1928, na Revista de Antropofagia. Na ocasião, os críticos desancavam, numa sanha violenta, contra o autor desses versos. E havia nisso um certo prazer. Irônicos, diziam, naquela empáfia dos que não conseguem cruzar o muro do seu próprio quintal, que aquilo não era poesia. Decerto, ignoravam integralmente o tempo que mudava sobre os seus próprios pés.

Muitos anos mais tarde, Antonio Candido sintetizaria aquela experiência modernista como o “dilaceramento da consciência estética”. Provavelmente, com uma certa benevolência, podemos imaginar que aqueles críticos talvez só reafirmassem uma outra consciência, a histórica. Incapazes de atuarem distantes daquilo que se compreende como senso comum, talvez por interesses inconfessáveis, não conseguiriam exercer uma percepção mais afinada sobre os desdobramentos que arte e a literatura viviam naquela época.

O tropeço na pedra. Cru e desbaratinador como ser gauche na vida. É isso o que finalmente interessa. O grande avesso da dor, descarnada de qualquer transcendência. A queda física lança mais uma vez o homem frente à escolha de um caminho que, em algum momento, se bifurcara lá atrás, como o jardim do famoso conto.

Pequenos apontamentos noturnos

por Theotonio de Paiva

Inicio essa série de textos cujas características principais remetem à ideia do fugaz.  Não me refiro ao descartável, comum  no final do  século passado e ainda teimoso em sobreviver nesses novos tempos.

Porém, tenciono aquela outra expressão da palavra. A sua razão de ser fugidia.

Dessa maneira,  apresento algumas ideias. São breves reflexões, as quais,  por um motivo ou por outro,  ficaram na gaveta do meu computador.

Pensei que futuramente fossem ganhar uma dimensão diferente, mas aquele futuro nunca chegava.

E isso foi me dando uma angústia que resolvi  me livrar do problema radicalizando a dimensão de ensaio do blog. (clique aqui)

Assim, nasce a série Pequenos apontamentos noturnos. O título faz alusão a um romance do escritor chileno Roberto Bolaño, Noturno do Chile. É só.

REIMA

Em meio àquelas dozes noites, mediadas pelo Natal e a Festa de Reis, devorei Reima. O romance de Dau Bastos, publicado recentemente pela Record, é notável. Há um rigor formal que impressiona, tanto pela delicadeza de sua urdidura, quanto pela capacidade com a qual o autor se ocupa em desvendar os limites da peste e da violência.

A sua compreensão dos fatos tangíveis, bem como daqueles outros acontecimentos, submersos em forte carga simbólica, aparece numa investidura alvar, vigorosa, especialmente despudorada, ao mesmo tempo em que capaz de uma reflexão dura sobre o nosso projeto civilizatório.

Estão lá, esperando para serem decifradas, as leituras todas, as saudáveis influências, assim como o vigor de uma superação própria.

Os ancoradouros folhetinescos e aqueles de inspiração naturalista comparecem reinterpretados, a partir de uma linguagem atenta, de forte impacto dramático, sensual e, por vezes, burlesca.

Algumas construções de personagens trazem um olhar de grande generosidade e, paradoxalmente, profundo mal-estar em relação à raça humana. E esse é um aspecto trágico da nossa existência, cuja expressão a obra tão bem sustenta.

Particularmente, torna-se significativa a sondagem empreendida que permite antever as rupturas dos diversos tecidos sociais. Sobretudo quando se constata a forma como elas são produzidas pelos choques de cultura em escala planetária.