Alguma coisa está fora da ordem

Diante dos terremotos que abalam o mundo, Ignacio Ramonet propõe a reinvenção da política para reencantar os seres humanos

Por Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique en español | Tradução: Daniela Frabasile, via Outras Palavras

Agora que os atentados de 11 de setembro acabam de completar uma década, e passados três anos da quebra do banco Lehman Brothers, quais são as características do novo “sistema-mundo”?

A regra vigente hoje em dia é a dos terremostos. Terremotos climáticos, terremotos financeiros, terremotos nas bolsas de valores, terremotos energéticos e alimentares, terremotos comunicacionais e tecnológicos, terremotos sociais e geopolíticos, como os que causaram as insurreições da “Primavera Árabe”…

Existe uma falta de visibilidade geral. Acontecimentos imprevistos irrompem com força sem que nada — ou quase nada — os faça emergir. Se governar é prever, vivemos uma evidente crise de governança. Os dirigentes atuais não conseguem prever nada. A política se revela impotente. O Estado que protegia os cidadãos deixou de existir. Existe uma crise na democracia representativa: “não nos representam”, dizem com razão os “indignados”. As pessoas constatam a falência da autoridade política e reclamam que ela volte a assumir seu papel de condutora da sociedade, por ser a única que dispõe da legitimidade democrática. Insistem na necessidade de que o poder político limite o poder econômico e financeiro. Outra constatação: uma carência de liderança política em escala nacional. Os líderes atuais não estão a altura dos desafios.

Os países ricos (América do Norte, Europa e Japão) padecem do maior terremoto econômico-financeiro desde a crise de 1929. Pela primeira vez, a União Europeia vê ameaçada sua coesão e sua existência. E o risco de uma grande recessão econômica debilita a liderança internacional da América do Norte, ameaçada também pelo surgimento de novos pólos de poder (China, Índia, Brasil) em escala internacional.

Em discurso recente, o presidente dos Estados Unidos anunciou que dava por terminadas “as guerras do 11 de setembro” — ou seja, as do Iraque e do Afeganistão — contra o “terrorismo internacional”, que marcaram militarmente a última década. Barack Obama recordou que “cinco milhões de americanos vestiram o uniforme nos últimos dez anos”. Isso não significa que Washington tenha saído vencedor nesses conflitos. As “guerras do 11 de setembro” custaram ao orçamento estadunidense entre 1 bilhão e 2,5 bilhões de dólares: carga financeira astronômica, que teve repercussões no endividamento dos Estados Unidos e, consequentemente, na degradação de sua situação econômica.

As guerras têm-se revelado pírricas. No fim das contas, o Al-Qaeda em certa medida se comportou com Washington do mesmo modo que Ronald Reagan com Moscou quando, nos anos 1980, impôs à URSS uma extenuante corrida armamentista que acabou esgotando o império soviético e provocando sua implosão. A “desclassificação estratégica” dos Estados Unidos começou.

Na diplomacia internacional, a década confirmou a emergência de novos atores e de novos pólos de poder, sobretudo na Ásia e na América Latina. O mundo se “desocidentaliza” e é cada vez mais multipolar. Destaca-se o papel da China, que aparece, em princípio, como a grande potência que nasce no século XXI — embora a estabilidade do Império do Meio não esteja garantida, pois coexistem em seu seio o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. A tensão entre essas duas forças causará, cedo ou tarde, uma fratura. Mas, por hora, enquanto o poder dos Estados Unidos declina, a ascensão da China se confirma. Já é a segunda potência econômica do mundo (à frente do Japão e da Alemanha). Além disso, por deter parte importante da dívida estadunidense, Pequim tem nas mãos o destino do dólar…

O grupo de Estados gigantes reunidos no BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) já não obedece automaticamente as grandes potências ocidentais tradicionais (Estados Unidos, Reino Unido, França), ainda que estas continuem se autodesignando como “comunidade internacional”. Os BRICS demostraram recentemente, na crise da Líbia e da Síria, que se opõem às decisões das potências da OTAN e no âmbito da ONU.

Dizemos que existe crise quando, em qualquer setor, algum mecanismo deixa de funcionar, começa a ceder e acaba se rompendo. Essa ruptura impede que o conjunto da máquina continue funcionando. É o que está ocorrendo na economia desde que a crise eclodiu, em 2007.

As repercussões sociais do cataclismo econômico são de uma brutalidade inédita: 23 milhões de desempregados na União Europeia, e mais de 80 milhões de pobres… Os jovens aparecem como as vítimas principais. Por isso, de Madri a Telavive, passando por Santiago do Chile, Atenas e Londres, uma onda de indignação levanta a juventude do mundo.

Mas as classes médias também estão assustadas porque o modelo neoliberal de crescimento as abandonou na beira da estrada. Em Israel, uma parte delas uniu-se à juventude para rechaçar o integrismo ultraliberal do governo de Benjamín Netanyahu.

O poder financeiro (os “mercados”) se impuseram ao poder político, e isso irrita os cidadãos. A democracia não funciona. Ninguém entende a inércia dos governos frente à crise econômica. As pessoas exigem que a política assuma sua função e que intervenha para corrigir os erros. Não será fácil: a velocidade da economia é hoje a mesma que um raio, enquanto a velocidade da política é a mesma que um caracol. Será cada vez mais difícil conciliar o tempo econômico com o tempo político — e também crises globais com governos nacionais.

Os mercados financeiros reagem de forma exagerada frente a qualquer informação, enquanto os organismos financeiros globais (FMI, OMC, Banco Mundial) são incapazes de determinar o que vai acontecer. Tudo isso provoca, nos cidadãos, frustração e angústia. A crise global produz perdedores e ganhadores. Os ganhadores se encontram, principalmente, na Ásia e nos países emergentes, que não têm uma visão tão pessimista da situação quanto os europeus. Também existem muitos ganhadores no interior dos países ocidentais, cujas sociedades se encontram fraturadas pelas desigualdades entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.

Na realidade, não estamos suportando uma crise, mas um feixe de crises, uma soma de crises mescladas tão intimamente umas com as outras que não conseguimos distinguir as causas e os efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas das outras, e assim até formar um verdadeiro sistema. Ou seja, enfrentamos uma crise sistêmica do mundo ocidental que afeta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a guerra, a geopolítica, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude…

Vivemos um tempo de “rupturas estratégicas” cujo significado não compreendemos. Hoje, a internet é o vetor da maioria das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias de comunicação e de informação. Os mercados financeiros, por exemplo, não seriam tão poderosos se as ordens de compra e venda não circulassem na velocidade da luz pelas pistas da comunicação que a internet colocou à sua disposição. Mais que uma tecnologia, a internet é um ator das crises. Basta lembrar o papel do WikiLeaks, Facebook, Twitter nas recentes revoluções democráticas no mundo árabe.

Desde o ponto de vista antropológico, essas crises estão se traduzindo em aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem num estado de ansiedade e incerteza. Voltam os grandes pânicos frente a ameaças indeterminadas, como a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada… Tudo isso constitui um desafio para as democracias. Porque esse terror se transforma às vezes em ódio e repulsa. Em vários países europeus, esse ódio se dirige hoje contra os estrangeiros, os imigrantes, os diferentes. Está aumentando a rejeição contra todos os “outros” e crescem os partidos xenofóbicos.

Outra grave preocupação mundial: a crise climática. A consciência do perigo que representa o aquecimento global aumentou. Os problemas ligados ao meio ambiente estão voltando a ser altamente estratégicos. A próxima cúpula internacional do clima, que acontecerá no Rio de Janeiro, em 2012, constatará que o número de grandes catástrofes naturais aumentou, assim como sua espetacularização. O recente acidente nuclear em Fukushima aterrorisou o mundo. Vários governos já deram passos para trás em relação à energia nuclear e apostam agora — em um cenário marcado pelo fim próximo do petróleo — nas energias renováveis.

O curso da globalização parece suspenso. Cada vez mais se fala em desglobalização, de declínio… o pêndulo foi longe demais na direção neoliberal e agora poderia ir na direção contrária. Já não é mais tabu falar em protecionismo para limitar os excessos do livre comércio, e pôr fim às realocações e à desindustrialização dos Estados desenvolvidos. Chegou a hora de reinventar a política e reencantar o mundo.

Em busca da razão perdida

Caderno ENSAiOS publica excelente artigo do jornalista Mauro Santayana. Dividido em três partes, trata-se de uma análise instigante sobre a trajetória do intelectual na modernidade frente aos seus diversos desdobramentos políticos.

EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA, via Jornal do Brasil

Por Mauro Santayana

O presente sempre angustiou os homens, desde que há registros históricos, e sempre houve os que temiam o futuro, tanto quanto os que nele punham a esperança da espécie. Da mesma forma, não faltaram, e ainda não faltam, os que sonham com o retorno à improvável Idade do Ouro, que permanece arraigada na alma dos homens, e encontra a sua versão mais radical dentro das fronteiras do paraíso bíblico.

Sofrer e sonhar, esperar e temer, lutar e resistir, são as condições que o ato de viver nos impõe. A vida não é projeto dos deuses, nem condenação cósmica. A vida é feita pelos homens, e só por eles, e a história, com seus acertos e desatinos, não é bruxa, nem fada: ela é decidida, em cada minuto, pela vontade dos homens e pelos fatos que essa vontade determina.

O que torna mais pesada a angústia de nosso tempo é a magnitude dos problemas sociais. O mundo inflou nestes últimos 200 anos, com o consumo exacerbado dos bens não renováveis, pelo menos de acordo com os nossos conhecimentos atuais, e suas consequências. Uma coisa é resultado da outra: as descobertas científicas tornaram mais fácil a exploração da natureza e o aumento da população, mediante o aprimoramento da medicina, melhor nutrição, mais conforto. Infelizmente, tais conquistas da inteligência não se fizeram universais.

A fome e as endemias convivem com a ostentação e o luxo dos muito ricos. Embora em certas regiões do mundo a miséria seja estatisticamente maior, não há cidade imune da qual o sofrimento insuportável tenha sido expulso. Enquanto um só ser humano não tiver direito ao pão de seu dia, à dignidade de um teto para a noite, ao respeito de seu semelhante, o mundo continuará sendo inóspito.

Assim como, no século 18, alguns pensadores discutiam o envelhecimento das ideias do Renascimento (embora o termo só viesse a ser criado por Michelet bem depois, em meados do século 19), há algumas décadas que o Iluminismo vem sendo analisado por autores importantes. Alguns pensadores marxistas encontram, em seus postulados, os germes do totalitarismo, ao mesmo tempo em que os nazistas e os fascistas continuam a atribuir à Revolução Francesa (que foi a sua expressão política) a origem das ideias, que consideram desprezíveis, como as da igualdade, da liberdade e da imperfeita democracia moderna.

Seria bom que retornássemos ao Iluminismo, e examinássemos seus acertos e suas falhas. Consequência natural do Renascimento, o Iluminismo foi um dos grandes momentos da inteligência dos homens. Ele se iniciara no século 17, e estava associado ao crescimento da burguesia como classe emergente e aspirante ao domínio político dos estados europeus. Antes que os franceses lhe dessem o grande impulso com a publicação da Enciclopédia, obra titânica do esforço pessoal de Diderot, o Iluminismo já crescia com os ingleses Milton, Locke, Hobbes, que associaram suas inquietações humanísticas aos projetos políticos, sem os quais a filosofia é inútil diversão da mente.

Se fosse possível resumir o sumo da razão do Iluminismo, talvez a encontrássemos ainda no século 17, com a frase linear de Spinoza, quando, em seu Tratactus theologico-politicus, diz que, ao examinar a vida, o comportamento e as crenças humanas, é necessário non ridere, non lugere, neque detestare, sed intelligere. Não devemos rir, nem lamentar ou detestar, mas entender. O Iluminismo, ao separar a inteligência da fé e distinguir a ciência — ou seja, o conhecimento — da religião, foi a busca do entendimento, o retorno à filosofia prática dos grandes gregos.

A inteligência, tanto no Renascimento quanto no Iluminismo, esteve a serviço da política, em seu melhor e em seu pior sentido. É provável que a exaustão da inteligência, que encontrou o momento alto na Idade Moderna com a Enciclopédia e os excelsos pensadores do século 18, seja responsável pela assustadora crise dos estados contemporâneos.

No Renascimento, os príncipes se cercavam de intelectuais, os uomini d’ingegnio, como foram Dante e Da Vinci, da mesma forma que buscavam seus chefes militares, os condottieri, entre eles, Castruccio Castracani, um dos modelos de Maquiavel, e os lendários Sforza. Durante o Iluminismo, os pensadores não estiveram perto do trono, porque eles estavam, como servidores da razão, contra o Estado absolutista, principalmente na França dos últimos Luizes.

Para entender a anemia política dos estados de nosso tempo, é necessário examinar o desengajamento da maioria dos intelectuais de hoje, sem esquecer que a própria inteligência se encontra em crise.

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EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA (2), via Jornal do Brasil

As grandes revoluções humanas não surgem espontaneamente. Elas, de certa forma, existem como possibilidade desde o início da História, mas são contidas pelas forças reacionárias. As ideias que as suscitam permanecem latentes, na obra de um ou outro pensador, seja nos ensaios, no teatro, nas narrativas épicas ou na poesia. Em alguns momentos, ganham força, mediante a discussão e o debate, e triunfam, mesmo que, algumas vezes, de forma efêmera.

As ideias, sem embargo de sua energia própria, dependem da ação. Os intelectuais, dizia, sem muita justiça, um dos precursores do Iluminismo, Erasmo de Rotterdam, são naturalmente medrosos. Isso só é válido para uma minoria, e de menor dimensão. A regra tem sido outra. Foram numerosos os homens de pensamento que tombaram em pleno combate, nas prisões ou nas terríveis condições da clandestinidade.

Sem ir longe no passado, o século 20 foi exemplar nessa necessidade da inteligência em se fazer ação, como ocorreu na memorável resistência contra os nazistas, os fascistas e os franquistas — e na luta pela autodeterminação dos povos contra o totalitarismo imperialista. A política é a práxis da razão, e, sem ela, o pensamento permanece encapsulado na teoria, ou, seja, na contemplação.

O grande motor do século 19, o do fulgor do Iluminismo, foi L’Encyclopédie, dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Tratou-se de uma empresa, que nasceu com o interesse comercial de editores franceses — chefiados pelo maior deles, na época, Le Breton — empenhados na tradução da Cyclopaedia, dicionário universal inglês de Ephraim Chambers. Le Breton convidou D’Alembert e Diderot para a tarefa. Ambos entenderam que não bastava a tradução de um dicionário que, circulando desde 1728, já se encontrava perempto, e se limitava a uma erudição de natureza clássica, distanciada das inquietações práticas de 1747.

Se o dicionário de Chambers tratava das artes e das ciências, Diderot acrescentou, para a sua enciclopédia, os verbetes sobre os ofícios profissionais. Dedicou grande parte às ilustrações, que, sobretudo no caso dos ofícios, contribuíram para que a obra servisse como manual de instruções.

Perseguida pela Igreja, uma vez que era essencialmente materialista, e incluída no Índex; mal vista pela monarquia, por reivindicar as liberdades políticas, a Enciclopédia passou por inúmeras dificuldades e chegou a ser proibida. Diderot foi preso por algum tempo, D’Alembert desistiu de ser o coeditor, a partir do volume oitavo, e os últimos tomos foram impressos e distribuídos clandestinamente.

O custo era altíssimo. Quando relembramos que a composição, tipo por tipo, era manual, e as chapas, armadas uma a uma, em operação demorada, podemos imaginar o dinheiro necessário apenas para o trabalho tipográfico. Mais de 2 mil gráficos trabalharam durante os vinte e um anos de edição, transcorridos entre o primeiro e o último dos 28 volumes, 11 deles só de ilustrações.

A Enciclopédia foi empreendimento revolucionário, e disso Diderot tinha plena consciência. A publicação serviu para derrubar os pilares do poder feudal de uma nobreza ociosa e parasitária, que consumia a maior parte dos recursos obtidos com o trabalho dos franceses; serviu como fermento da Revolução Francesa e a derrocada da monarquia; combateu a Igreja, que, sócia privilegiada da opressão e monitora do pensamento, ameaçava os intelectuais com os dogmas e mantinha os néscios submissos, mediante a ameaça do inferno. Como as luzes vinham de várias fontes, Diderot escolheu para o subtítulo da obra a trilogia do inglês Francis Bacon, que assim resumia as operações da mente: Memória, Razão e Imaginação.

Diderot foi mais do que seu diretor intelectual. Coube-lhe buscar os subscritores — o que representava para cada um deles a aplicação de uma pequena fortuna — entre os ricos mais esclarecidos, os pioneiros da indústria e do comércio e alguns banqueiros, como o mais eminente financista de Paris, Jacques Necker, que viria a ser a figura chave na Queda da Bastilha. Durante muito tempo, os enciclopedistas foram acolhidos no salão de Madame Necker, onde as novas ideias eram livremente debatidas.

O autor de A religiosa  agiu, ao mesmo tempo, como pensador, militante político e ativo empreendedor. Usando recursos que hoje encontramos na internet, como a remissão dos assuntos a outros verbetes, a inclusão das fontes de informação e referências bibliográficas, o que hoje chamamos de hiperlink. O texto incitava à ampliação crítica da informação, com o fantástico resultado que a História registra. E a empreitada fascinou todos os que a ela se associaram. O caso mais notável desse empenho foi o de Louis de Jacourt, um intelectual muito rico e de grande saber, que se formara em teologia, em Genebra, ciências naturais em Cambridge e medicina, em Leiden, na Holanda. Jacourt, sozinho, redigiu um quarto de todos os verbetes da Enciclopédia, sem cobrar um centavo pelo seu trabalho. Ao contrário, contratou vários assessores, que o ajudaram na exaustiva pesquisa daqueles tempos, e lhes pagou com seu próprio dinheiro.

Mesmo quando sua distribuição teve que ser clandestina, a Enciclopédia era discutida em todos os salões. Suas ideias estimularam o aparecimento de novos pensadores, que se somaram à elite da razão daquele tempo, formada por homens muitos deles nobres, como foram Montesquieu, Grimm e Holbach. Eles se somaram a livres pensadores, como Voltaire, D’Alembert, Condorcet, Daubeton, Rousseau, Turgot e Quesnay, e a mulheres como Mme. D’Epinay, Sophie Volland, Mme Necker — e a notável proteção financeira a Diderot, de Catarina, a imperatriz da Rússia, para abrir o caminho do século seguinte.

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EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA (3), via Jornal do Brasil

O Iluminismo conduziu o mundo, durante o século 19 e a maior parte do século 20. A oposição que sofreu, no início dos oitocentos, com o Romantismo, foi débil, e só se manifestou de forma mais forte nas artes, sobretudo na literatura. Hegel e Marx, nas ideias sociais, ou seja, políticas, são dois dos maiores frutos do século 18. Um se seguiu ao outro, e de seu pensamento surgiram os grandes movimentos revolucionários do século passado. Apesar disso, os resultados mais espetaculares das luzes parecem ter ocorrido na ciência e na tecnologia.

O espírito do mundo moderno é o da ruptura de todos os limites, na investigação do Cosmos, na velocidade das comunicações e dos transportes, na duração da vida.

Galileu tem uma frase inquietante: “Muita prudência, muitas vezes, quer dizer muita loucura”. A razão, sendo o uso da mente para a construção da autonomia, já representa, em si mesma, uma violação da natureza instintiva da espécie: talvez nessa intuição, Chesterton tenha afirmado que “louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão” – o que significa entender que a aparente loucura pode também significar muita prudência.

No que se refere à política — que é a mais necessária das atividades humanas — o século passado foi o da exacerbação de um confronto milenar, que está nas glândulas da espécie, e que constitui o eixo das civilizações: o do egoísmo contra o altruísmo, dos ricos contra os pobres, dos fortes contra os débeis. É assim que poderemos ver em São Francisco de Assis a constatação de Chesterton — de resto um de seus grandes devotos — de que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não havia outra forma para que a sociedade de Assis do século 13 pudesse ver a conduta do jovem Bernardone, ao renunciar à vida confortável que a riqueza lhe permitia, romper com o pai, e lhe devolver as roupas luxuosas que vestia e, com o manto pobre de monge que o bispo de Assis lhe deu para cobrir a nudez, partir para outros atos de aparente loucura, nos quais se escondia a mais pura razão. No século 20 tivemos testemunhos desta conduta, tida como insana, na solidariedade radical, em nome do Humanismo — que é sempre cristão, ainda que se identifique como agnóstico ou ateu — e tanto mais cristão quanto menos acredite na recompensa eterna.

Foi assim que tivemos, entre outros, o forte testemunho de Simone Weil, nascida judia, convertida ao marxismo e, em seguida ao cristianismo, e que ao Vaticano conviria mais fazê-la beata e mártir do que conferir santidade ao espanhol Balaguer. Simone abandonou, ainda menina, as comodidades da família, viveu entre os oprimidos, quis participar da luta na Espanha, um acidente a excluiu da atividade revolucionária, e sua renúncia a viver melhor do que viviam os mais pobres a levou à morte prematura, aos 34 anos, com tuberculose. São loucos, como Francisco e Simone, e muitíssimos outros, anônimos, que, no decorrer da História, perdem tudo, menos a razão.

O Iluminismo, que significara um outro salto da razão, não só trouxe os movimentos de solidariedade, como não conseguiu impedir a evolução industrial, graças à inteligência técnica e a ascensão da burguesia capitalista, e a exacerbação do imperialismo britânico e do colonialismo europeu, e a submissão da maioria da população do mundo aos opressores. Em nome de equivocada interpretação biológica, surgiu o mito da superioridade racial, e levou à estupidez do fascismo e do nacional-socialismo, com as duas grandes guerras mundiais, os milhões de mortos, e os conflitos continuados, sempre conduzidos pelos mais fortes contra os mais débeis.

Entre a invasão da Etiópia pela Itália, em 1935, e recente intervenção militar na Líbia pelos países europeus, não há diferença essencial: é a arrogância dos que se acham superiores e que, por tal razão, se sentem com o direito aos bens naturais do mundo, sobretudo as fontes de energia, como o petróleo.

A luta contra o totalitarismo dos anos 30 convocou os intelectuais do mundo inteiro, a partir da Guerra Civil da Espanha. O engajamento da inteligência ainda continuou, na resistência contra os nazistas e, ainda mais dura, contra os capitulacionistas e traidores, como ocorreu na França, nas lutas contra os golpes militares na América Latina, no combate aos crimes cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã, no combate contra o novo racismo europeu. Embora muitos ainda permaneçam nas trincheiras da razão, o novo Liberalismo dos anos 80 conseguiu encabrestar a inteligência e afastá-la das preocupações políticas.

É assim que se explica que a França de Clemenceau e Leon Blum, de De Gaulle e Mitterrand, esteja hoje entregue ao pigmeu Sarkozy, e que os Estados Unidos de Roosevelt e Eisenhower, depois da tragédia dos Bush, assista à erosão veloz da grande esperança que foi Obama. Lembre-se a Espanha, condenada a se entregar novamente à direita, saudosista do franquismo, depois da claudicação de Zapatero. Não falemos na Itália, governada por um bufão, e, ainda assim, com a petulância de nos dar lições morais e recorrer ao Tribunal de Haia contra o exercício da soberania brasileira.

Enfim, o mundo, sendo sempre o mesmo, piora — e reclama nova articulação da inteligência para a restauração do compromisso da espécie humana com sua própria sobrevivência, que os materialistas atribuem à razão, e os cristãos radicais identificam na santa loucura do amor solidário, como o do Poverello de Assis.

Indignados de todo o mundo: uni-vos!

Praça do Sol, 18 de maio: milhares exigem outra política; as lutas da juventude contagiam o Velho Continente

Enquanto estiver na fase da simples negação das medidas adotadas pelos governos, não haverá tanta dificuldade quanto a partir do momento em que os indignados passem a ser chamados a dizer o que sugerem como propostas ou sugestões para uma ordem social e econômica mais justa. Via Carta Maior.

Paulo Kliass

Até poucos dias atrás, antes da retomada da mobilização na Grécia, a bola da vez parecia estar com a Espanha. E com toda a sua rica diversidade política, cultural, social. Os gritos eram bradados em catalão, em basco, em galego, em castelhano. Da mesma forma, os escritos dos cartazes e das faixas. Talvez pudéssemos sintetizá-los todos em “Não nos representam!”.

Ao longo dos últimos meses, o cenário mundial tem apresentado algumas novidades em termos de mobilização política. Por um lado, foram todas as manifestações observadas nos países árabes e do norte da África, caracterizadas essencialmente por reivindicações de natureza democrática face a seus governos. De outro lado, tem crescido o volume dos protestos que atingiram os países europeus mais duramente afetados pelas exigências de austeridade e rigor na ortodoxia dos ajustes econômicos por parte da União Européia (UE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Foram os casos da Irlanda, da Grécia, da Islândia. E agora, a Espanha.

Muitos analistas tentam se debruçar com mais detalhe sobre esse momento e o conjunto de tais manifestações. A primeira tentação é inescapável. Comparar o primeiro semestre de 2011 com a famosa primavera de 33 anos atrás, quando a onda de manifestações atingiu um conjunto imenso de países por todos os continentes. Protagonizado por estudantes e trabalhadores, o movimento de 1968 mobilizava multidões em cidades e regiões tão diversas quanto distantes como Paris, Praga, São Francisco, Tóquio, além das mobilizações ocorridas inclusive no Brasil, já sob o regime militar do golpe de 64.

Porém, as diferenças também são significativas. O movimento de 68 tendia a expressar mudanças em operação na base das sociedades àquela época. A pauta da nova geração falava de um novo modo de vida, apresentava a crítica ao modelo da sociedade industrial e de consumo. Denunciava as iniciativas bélicas, simbolizadas na operação norte-americana no Vietnã. “Faça amor, não faça guerra!”. As flores nas bocas dos canhões. Na pauta e na essência das manifestações, mudanças comportamentais e a liberação de costumes como as drogas, o sexo, o rock and roll. O Festival de música de Woodstock entrou para a história como um dos símbolos daquele novo tempo que se iniciava.

Nos tempos atuais, a hegemonia do pensamento liberal e a falência dos regimes dos países socialistas tornam menos evidente a aceitação generalizada dos princípios de solidariedade presentes nos movimentos de protesto. Infelizmente, ao que tudo indica, as sociedades estão mais marcadas pelo sentido da postura individual e menos para ações coletivas. E a questão comportamental parece mais influenciada pelas inovações tecnológicas proporcionadas pelos contatos via celular e internet do que pela essência das atitudes e proposições libertárias dos movimentos precedentes. Uma das principais tarefas reside na divulgação e no convencimento de outros setores sociais, bem como no combate ao conteúdo conservador dos fundamentalismos de todos os gêneros (religioso, moral, político, cultural, etc) que marcam nosso tempo.

Em meio a essa multiplicação de experiências alternativas de demonstração de descontentamento com a ordem política vigente, um antigo combatente das causas democráticas e populares resolveu também tomar a iniciativa e lançou o que imaginou que fosse sua “modesta” contribuição. Stéphane Hessel, um francês já com 93 anos, publicou em 2010 um manifesto que intitulou de “Indignez-vous!”. Transformado em livro, está batendo recorde de vendas, com mais de 1 milhão só na França. No Brasil, a Editora Leya Livros lançou uma tradução como “Indignai-vos!” Trata-se de um verdadeiro chamamento a que as gerações atuais se mobilizem e demonstrem a sua discordância com o estado atual de coisas no planeta. O autor pensava sobretudo na questão francesa face à política conservadora implementada pelo Presidente Sarkozy, mas também nas dificuldades em aceitar as medidas originadas pelas obscuras autoridades européias, sediadas em Bruxelas.

No entanto, aquilo que fora concebido como um singelo manifesto de pouco mais de 30 páginas, passa a ganhar uma dimensão política e aceitação inusitadas. Com a ajuda da divulgação proporcionada pela rede virtual, o documento ganhou o mundo. E tornou-se, aos poucos, o símbolo de um movimento que se pretende como a contraposição a tudo o que o processo atual da globalização apresentou até o momento. Um pouco na esteira do espírito altermundista e das experiências do Fórum Social Mundial, espalha-se cada vez mais internacionalmente, junto com o sentimento de que “um outro mundo é possível”. E mostra a incrível energia e disposição de quem lutou quase um século e não se acomodou!

No caso espanhol, fica visível uma negação explícita da forma tradicional das organizações políticas, partidárias e institucionais. Iniciado em Madri e Barcelona como um movimento de protesto contra as medidas restritivas de um sistema de governo (central, das regiões autônomas, das províncias e das municipalidades), seus participantes ocupam locais estratégicos e de alta visibilidade nos espaços urbanos, acampando em praças centrais. Por outro lado, a evolução da conjuntura faz com que emirja rapidamente um sentimento de solidariedade de amplos setores da população. Como se o movimento estivesse a representar alguma novidade ainda submersa na base da sociedade, não captada pelos analistas e pelos próprios ativistas.

A forma de organização é também inovadora. Ao menos nessa fase inicial, os participantes e suas lideranças não escondem que os partidos políticos, os sindicatos e demais associações tradicionais não são bem vindos. A princípio, a idéia tangencia o sentimento libertário e não se aceita a prática da representação e da delegação de poderes. As decisões são todas adotadas em reuniões abertas a todos, em uma espécie de assembleísmo permanente. Não por acaso, está sempre presente a analogia com os modelos da prática política nas sociedades antigas, como a Grécia clássica. Trata-se da busca do ideal da democracia permanente.

Ao contrário de movimentos que tiveram um início similar, os atuais tendem a contar com uma maior participação de diversos setores que não exclusivamente aquele que o imaginário popular e os meios de comunicação apresentam como a “juventude rebelde”. A própria inspiração de um combatente quase centenário como Hessel confirma essa tendência. Nas praças dos acampados e nas manifestações chega mesmo a ser emocionante verificar a solidariedade ativa de aposentados, desempregados de todas as idades, famílias inteiras, estudantes universitários, secundaristas, etc. Um intercâmbio diferente e a aceitação da construção do “novo” a partir desse sincretismo um tanto inédito. A troca de experiências entre grupos tão diversos é impressionante. De um lado, os que já viram e atuaram em não sei quantos movimentos e greves ao longo do século passado, passando pela luta na resistência contra os nazistas ou ao lado dos republicanos na guerra espanhola. De outro lado, aqueles que chegam agora com menos experiência acumulada, mas com sua força e energia políticas, e sobretudo acompanhados do potencial mobilizador oferecido pelo celular e pela rede virtual.

Um outro aspecto significativo foi a afirmação do caráter pacífico e não violento do movimento. Isso tornou-se uma expressão explícita de seus documentos e declarações oficiais, em particular depois da tentativa do sistema de inteligência espanhol de infiltrar as manifestações com supostos radicais em 15 de junho, com o objetivo de desacreditar os indignados junto à maioria da população. Para evitar esse risco, o movimento denunciou tal tentativa da polícia e reafirmou a condenação da violência extremista gratuita, como costuma acontecer em algumas manifestações dessa natureza, a partir da ação irresponsável de pequenos grupos que não representam o pensamento da maioria e só fazem isolar politicamente os movimentos.

No entanto, essas características inovadoras de tais movimentos passam a representam um limite, à medida em que as ações se ampliam e eles passam a ganhar apoio e simpatia de outros setores da população. Uma coisa é organizar acampamentos com muitas centenas e alguns milhares de pessoas. Mas quando se trata de organizar manifestações de centenas de milhares de participantes, em várias cidades espalhadas pelo país, com ações de segurança interna e outras, o movimento passa a exigir de si mesmo outro nível de organização interna e o aperfeiçoamento de mecanismos de representação institucional.

O mesmo vale para a questão política. Enquanto estiver na fase da simples negação das medidas adotadas pelos governos, não haverá tanta dificuldade quanto a partir do momento em que os indignados passem a ser chamados a dizer o que sugerem como propostas ou sugestões para uma ordem social e econômica mais justa. Sim, pois o sentimento de indignação é bastante amplo para exprimir um descontentamento com a ordem atual, mas não pressupõe a mesma unidade de ação e pensamento quanto ao como e o que fazer. Os cartazes e as intervenções tendem a apontar como responsáveis pela crise fatores amplos, que vão desde o sistema capitalista até o processo da unificação européia, passando pelo sistema político espanhol.

Há mesmo muitos intelectuais, artistas, pesquisadores e professores (1) que apóiam as iniciativas, mas parte deles reconhecem as limitações das mesmas. Assim, chamam a atenção para a importância do movimento, mas consideram a necessidade de alguma forma de institucionalização no plano da política (inclusive eleitoral) para tornar as propostas factíveis e viáveis. Caso contrário, os indignados correm o risco de revelarem-se mais uma excelente oportunidade de aprendizado e amadurecimento políticos para seus participantes, mas sem desaguar em nenhuma proposta efetivamente transformadora da ordem atual que pretendem mudar (2). Ou seja, podem entrar para a longa lista dos movimentos de protesto – importantes, sem dúvida alguma – que não lograram apresentar à sociedade uma via de implementação de suas propostas de transformação.

E que sirva como alerta para aqueles que insistem, aqui por essas latitudes mais ao sul, também em ignorar as experiências históricas e suas propostas de origem. Nos dois casos em foco na Europa, um dos aspectos mais relevantes da crítica são os cortes orçamentários para áreas sociais em contratse com o volume de recursos destinados para o saneamento financeiro, o eterno privilegiar do capital contra a maioria da população. E tudo isso sendo levado a cabo e votado nos parlamentos por governos que se dizem socialistas. Como as entidades sindicais ficaram na postura meio de peleguista de nosso conhecido “chapa-branquismo”, a onda de indignação acabou por atropelar partidos e sindicatos.

De qualquer maneira, a simples ocorrência de tais movimentos em sua seqüência atual já representam um elemento inovador na ordem política. E a facilidade com que se espalham pelos continentes faz-nos lembrar o chamamento final do Manifesto escrito por Marx e Engels há mais de um século e meio: “Indignados de todo o mundo, uni-vos!”. Afinal, não têm mesmo muito a perder a não ser a sua desilusão, o seu descontentamento e a sua frustração com a ordem atual de injustiça social, política e econômica.

NOTAS
(1) É o caso da iniciativa de lançamento do manifesto “Una ilusión compartida”, que pretende ser uma cunha no debate político e eleitoral na Espanha, agora com a saída do líder do PSOE, Zapatero. Assinam Pedro Almodovar (cineasta), Ignacio Ramonet (jornalista), Pilar Barden (atriz), entre outros. Ver: www.unailusioncompartida.com.

Registro uma frase emblemática: “La corrupción democrática se ha mostrado como la mejor aliada de la especulación, separando los destinos políticos de la soberanía cívica y descomponiendo por dentro los poderes institucionales. Hay que devolverle a la vida pública el orgullo de su honradez, su legitimidad y su transparencia. Por eso resulta imprescindible buscar nuevas formas de democracia participativa y sumar en una ilusión común los ideales solidarios de la izquierda democrática y social.”

(2) Ver: De uma tendência distinta, contribui também Arcadi Oilveres, presidente da associação catalã Justicia i Pau (Justiça e Paz). Ver: http://www.justiciaipau.org/

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.