O mundo de Mário de Andrade

Telê, a principal responsável pelo acervo, fala sobre a obra do escritor - Foto: Daniel Garcia

Telê, a principal responsável pelo acervo, fala sobre a obra do escritor – Foto: Daniel Garcia

Talvez não exista algo similar no Brasil. O arquivo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo, tem os manuscritos, as fotografias, as matérias de periódicos, os recortes, a correspondência, os quadros do escritor. Há também manuscritos de outros escritores. “Mário dialogava com os companheiros modernistas que mandavam a ele manuscritos de obras ainda a publicar”, conta Telê Ancona Lopez

Telê Porto Ancona Lopez, titular de Literatura Brasileira na FFLCH-USP, devotou sua vida à curadoria do Arquivo Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Coordenou o projeto temático Fapesp, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras (2006-2011). Nesta entrevista à Walnice Nogueira Galvão, publicada originalmente na Teoria e Debate, a principal responsável pela manutenção do acervo de Mário de Andrade nos fala sobre o seu trabalho com a obra do escritor..

Conte para nós como você foi parar na pesquisa da marginália (anotações autógrafas na margem dos livros) dos livros de Mário de Andrade, e daí para essa maravilha que é o Fundo Mário de Andrade. Hoje, entre suas realizações contam-se inúmeros volumes publicados, teses defendidas sob sua orientação, equipes que se formaram sob sua coordenação, projetos para os quais você arranjou financiamento. Tudo isso começou antes ou depois do doutoramento?

Antes, em 1962. Antes mesmo do meu mestrado, em 1967; meu doutoramento é 1970. O trabalho com a marginália do Mário de Andrade começa em um curso de especialização dado por Antonio Candido, em 1962, na área de Teoria Literária e Literatura comparada da Faculdade de Filosofia, da Universidade de São Paulo, em 1970. Era a análise e a interpretação do poema “Louvação da tarde”, se prolongou naquele belíssimo ensaio “O poeta itinerante”. Ficamos um semestre trabalhando o poema; praticamente em tudo: estrofação, metrificação, sonoridade, imagens, metáforas e símbolos… Nesse curso, Antonio Candido contou pra gente que o acervo de Mário de Andrade permanecia intacto na casa da Rua Lopes Chaves, cuidado pela família, com perfeita responsabilidade: biblioteca, quadros, discos, manuscritos. E nos disse que, na biblioteca do Mário, havia marginália, e que ele a conhecia. Era talvez a marginália mais importante, mais rica, no Brasil. Eu, muito afoita, levantei a mão e propus: “Professor, vamos recolher essa marginália nas férias de janeiro!”. A verdade é que foram muitos janeiros, até 1968, quando demos por terminada a tarefa. Quero lembrar que as aulas de Antonio Candido eram às sextas-feiras, na sala 11, a maior sala, no prédio da Rua Maria Antônia, e que muita gente importante vinha assisti-las, discutir o texto. (Leia depoimento de Antonio Candido sobre a trajetória do acervo)

Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Teles assistiam ao curso, você se lembra?

Claro! Vinha também o Maurice Capovilla. Falava-se também de cinema. E de política, naturalmente!

E também o secretário, José Bento?

Ele não. Em 1962, o José Bento vivia em Ribeirão Preto. Por coincidência, eram amigos do meu pai, lá. Zé Bento, quando se aposentou e voltou para São Paulo, passou a frequentar o Instituto de Estudos Brasileiros. Era um excelente amigo, sempre disposto a responder nossas questões. Sua correspondência com Mário de Andrade, que será publicada por Marcos Antonio de Moraes, oferece a minúcia do cotidiano, na casa do escritor.

E seu trabalho não acabou até hoje… Sei que o estudo da marginália você completou, li seu trabalho.

A reunião da marginália, sim. A reunião e o início do estudo dela foram trabalho de Maria Helena Grembecki, que era minha colega naquele curso de 1962; Nites Feres, que viera de Assis, já uma pesquisadora competente, e por mim, com Antonio Candido orientando as três.

Mas no levantamento da marginália do Mário eram só vocês três?

Nós três. Em 1968, a Vera Chalmers trabalhou nas férias do fim de ano, para nos auxiliar na finalização; conseguimos uma moedinha parca e ela ficou conosco dois meses.

Já era da Fapesp? A pesquisa da marginália foi financiada pela Fapesp, que acabara de ser criada?

Foi. Aliás, a remuneração da Vera Chalmers foi indiretamente da Fapesp; compartilhamos com ela nossas bolsas.

Parece que foi a primeira vez que saiu verba da Fapesp para literatura. Antes só saía para ciência. Antonio Candido propôs vocês três como bolsistas…

A primeira verba para literatura foi, de fato, a do professor José Aderaldo Castello, que viajou pelo Brasil recolhendo a produção das academias coloniais. Em 1963, Antonio Candido pediu verba à Fapesp para nosso projeto. Em 1964, estava tudo encaminhado, mas sobreveio o golpe militar e não saiu nada. Continuamos firmes, trabalhando por nossa conta. Dávamos aula para sobreviver e, no princípio, íamos à Rua Lopes Chaves duas, três vezes por semana. Depois, quando saíram as bolsas em 1965, íamos de segunda a sexta-feira. D. Lourdes, a irmã de Mário, o marido dela, Eduardo Ribeiro dos Santos Camargo e os três filhos nos recebiam com amizade e carinho; viramos gente da casa.

Quantos anos demorou esse trabalho?

Saímos da Lopes Chaves em agosto de 1968. Portanto, ficamos de 1963 a 1968. Me lembro do Antonio Candido chegando de boina, muito chique, no inverno. Eu levei minha máquina de escrever Olivetti portátil; usávamos também a Remington do Mário, por ele batizada Manuela, e a máquina do “seu” Eduardo.

Em 1967, o professor José Aderaldo Castello, da área de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, nos emprestou a máquina de fotografar/microfilmar por ele inventada para coligir documentos do movimento academicista, sua pesquisa de fôlego, que rendeu dezessete volumes publicados. Essa máquina era fantástica: sobre uma base quadrada, quatro hastes sustentavam quatro lâmpadas e o suporte de uma câmera Leica que usava filme de 12 ou de 24 poses. Era preciso recortar as beiradas com uma tesourinha para encaixá-lo na câmera. Nós nos sentíamos muito importantes, fechadas no estúdio de Mário de Andrade, fotografando no escuro. Essa máquina foi fundamental para concluirmos o nosso registro da marginália.

Vocês três microfilmaram toda a marginália?

Fazíamos a transcrição diplomática datilografando tudo o que o Mário escrevera nas margens, nas páginas de rosto ou páginas em branco dos livros e revistas, até a gente se convencer de que a marginália era mesmo um mundo. Então, o Castello nos socorreu com a sua máquina especial. Para o registro das obras e das notas marginais Antonio Candido estabeleceu duas fichas: a cor de laranja, que eu gostava de chamar de “terra de Siena”, para os dados bibliográficos, e a ficha branca, que repetia esses dados e captava as anotações marginais. Creio que o estudo da marginália foi mais uma frente pioneira de Antonio Candido, no Brasil. Perseverei nesse caminho, trabalhando a criação de Mário de Andrade na biblioteca por ele formada. Venho me ocupando das leituras como matrizes, em diálogos que se explicitam na marginália, ou não. Escrevo artigos, oriento teses e dissertações que exploram a marginália.

Depois que vocês terminaram esse trabalho de pesquisa em 1968, passaram a redigir os mestrados?

Em 1966, o Antonio Candido chegou da França e disse: “Todo mundo tem de fazer mestrado”. E nós não sabíamos muito bem o que era mestrado, mas fomos descobrindo… Então, fizemos os três mestrados, focalizando a marginália. Em 1967, foram o da Nites Feres e o meu; em 1968 o da Maria Helena Grembecki. O meu foi O se-sequestro da Dona Ausente: reconstrução de um estudo de Mário de Andrade a partir de sua marginália. Não se conhecia os manuscritos desse inédito que veio à tona durante a organização do arquivo, na década de 1970. Depois, entre 1998 e 2001, Ricardo Souza de Carvalho, meu orientando e bolsista da Fapesp, ancorado nos manuscritos, preparou a Edição genética de O sequestro de Dona Ausente de Mário de Andrade, uma excelente dissertação defendida na FFLCH. Trabalhou com a marginália e com o dossiê do manuscrito. O mestrado de Nites foi sobre as leituras em francês de Mário de Andrade, leituras formadoras do modernista; o de Maria Helena cuidou de Mário e a revista francesa L’ Esprit Nouveau. Entre 2005 em 2008, Lilian Escorel, minha orientanda e bolsista da Fapesp, mergulhou nesse tema em seu doutoramento, agora publicado, A revista L’Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas e na poética de Mário de Andrade.

Então, defendidos os mestrados, o que aconteceu, qual foi a próxima etapa?

Foi a transferência do acervo de Mário para a USP, perspectiva para lá de lúcida traçada por Antonio Candido. Em 1968, ele e o professor Castello, então diretor do Instituto de Estudos Brasileiros propuseram ao governo do estado a compra do acervo para a Universidade de São Paulo. Para figurar no patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros. Vieram especialistas para a avaliação e eu secretariei o processo todo. Houve até a parte engraçada. Começaram a aparecer, na casa da Lopes Chaves, pessoas de terno e gravata, muito circunspectas. O secretário da Cultura, nos garantia que o Mário era tão importante quanto os jogos abertos do interior, ou o reflorestamento. E a gente firme ali. Porque o acervo tinha que ir para a universidade. Deu certo. A família recebeu um valor simbólico pelo que foi, de fato, negociado: a coleção de quadros e a biblioteca.

E a coleção de arte popular também.

Também, mas o arquivo foi doado.

Em cima disso tudo? Foi uma espécie de brinde.

Bem mais que isso. Uma oferenda que marcou a alta compreensão do valor e do destino desse arquivo, por parte da família Mário de Andrade.

Como você dimensiona isso? Em termos da variedade e quantidade, como é que fica o total?

O acervo de Mário de Andrade, um intelectual cultor da memória e documentalista de si próprio, constitui uma rede sem remate, na qual as informações se correlacionam. Equivale a uma profusa e fragmentada autobiografia, cuja montagem se multiplica nos enfoques que documentos de vários tipos e natureza proporcionam. Correspondência, manuscritos da criação nas áreas do polígrafo, manuscritos de outros escritores e de músicos, programas musicais, discos, fotografias, matéria extraída de periódicos, cardápios, papéis de teor  pessoal e burocrático, a biblioteca com mais 17 mil volumes e extensa marginália, a pintura, os desenhos e as gravuras, as peças de extração popular, enfim, um prodigioso número de registros guarda uma precisa cronologia que vai dos últimos anos século 19 até fevereiro de 1945, quando Mário de Andrade morre, as 51 anos.

Sou ruim de números, mas há no ABC do IEB, uma bela publicação organizada pela professora Anna Lanna, em 2010, o total dos documentos existentes no arquivo, na biblioteca e na coleção de artes visuais do Acervo Mário de Andrade. Fui curadora do arquivo até 2008 e coordenei a classificação das séries. Um banco de dados, preparado por Fred Camargo nestes três últimos anos, alarga o alcance dos documentos em todas as séries. Entre 2006 e 20011, o projeto temático Fapesp, sob minha responsabilidade, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras, no qual tive, como coordenadores associados, os professores Marcos Antonio de Moraes e Flávia Toni, classificou um total de 130 títulos de manuscritos. O projeto visou um “catalogue raisonné”, exemplificado na nossa revista Marioscriptor. Os dois números dessa revista eletrônica do projeto temático estão no site do IEB-USP.

Não tem nada de similar no Brasil? Em porte?

Talvez não. O que existe neste arquivo, em termos de séries, é importantíssimo. Como eu disse, há os manuscritos, as fotografias, matérias de periódicos, os chamados recortes, uma riqueza inesgotável em termos de documentos e possibilidades de pesquisa, de exploração. Os manuscritos de Mário de Andrade não se restringem à série que os organiza fisicamente; estão também nos recortes de textos do escritor na imprensa, rasurados como exemplares de trabalho; estão na marginália, na qual se flagra poemas e artigos esboçados e se localiza a possível primeira versão fragmentada de Macunaíma. Estão ainda na especialíssima série Manuscritos de outros escritores, na qual, dialogando com poetas e prosadores nas margens dos textos enviados para sua leitura e análise, Mário aparece como coautor, em suas sugestões. “Aconselho-te a dormir sobre o livro – REFLEXÃO”, ele observou, por exemplo, na margem do manuscrito de Cocktails, do poeta Luís Aranha, em 1922, e, aliás, deixou um projeto para a capa do livro. Márcia Jaschke Machado, minha orientanda, preparou um bonito catálogo analítico, anotadíssimo, dos manuscritos brasileiros nessa série.

Até que ponto vai a organização do próprio Mário? Quando você fala em manuscritos de outros escritores, por exemplo, é uma organização sua ou de Mário?

É uma classificação que propus decalcada numa divisão original, considerando a particularidade do arquivo. A classificação que coordenei no IEB, apoiada na arquivística, partiu da análise do arquivo. Concretizamos essa organização, eu e os pesquisadores que comigo trabalharam na equipe Mário de Andrade do IEB. Mário de Andrade era organizado: os manuscritos de outros escritores, na casa dele, ficavam juntos em uma estante, no hall do andar superior. Não havia, contudo, uma listagem ou uma ordenação. A identificação vinha dos próprios autores, em autógrafo ou datilografia. Desenvolvi metodologia para classificar manuscritos, à luz da arquivística, da codicologia e da crítica genética, procurando compreender o processo criativo para ordenar os documentos nos dossiês. Esse é o aporte teórico novo que marcou a classificação dessa série e dos Manuscritos Mário de Andrade.

E ainda há a correspondência passiva, oito mil cartas que ele recebeu.

A correspondência existente no Arquivo Mário de Andrade foi integralmente processada; o catálogo eletrônico, concluído em 2003, com respaldo financeiro da Vitae, está em um CD-ROM e no site do IEB. As 8 mil cartas significam o conjunto: a correspondência passiva, a ativa, que reúne cartas não remetidas, cópias guardadas, bem como originais doados pelos destinatários ou suas famílias, e a correspondência de terceiros, preservada por Mário. O professor Marcos Antonio de Moraes vem trabalhando incansavelmente para obter a correspondência ativa completa de Mário e publicá-la, na ligação com a passiva. É um projeto vinculado ao CNPq.

Mas você não chegou a mencionar o que tinha no arquivo.

A correspondência estava em pastas lacradas; havia uma organização inicial, discutível, que não conservamos, mas registramos. Esse registro nos auxiliou, pois, no caso de carta sem data, contígua a outra, datada, podia-se inferir o ano, o mês etc. Outros conjuntos ou séries do arquivo estavam fisicamente separados, mas não havia um inventário, uma listagem, uma organização precisa.

Estavam em caixas ou em outro tipo de ordem?

O material do arquivo estava originalmente em envelopes e pastas de cartolina, muitas delas reaproveitadas, isto é, portando títulos sobrepostos a indicações riscadas. Mário não usava caixas. A mudança do acervo para o IEB foi feita em caixas que conseguimos no supermercado vizinho. Foram preenchidas mantendo a sequência original das obras na biblioteca. Não se seguiu regra para o transporte e nem havia recursos financeiros para isso. Nem se pensava em seguro, com avaliação dos bens a serem deslocados. Hoje, felizmente, há regras, rigor. Hoje, com o que se conhece e se obedece, nossa cabeça não nos permitiria fazer algo semelhante. A Nossa Senhora da Glória, da coleção de imagens religiosas do Mário, veio para a USP embrulhada em um cobertor, viajando no meu colo, no banco de trás do Morris do professor Castello. Tivemos muita sorte, nos nossos cuidados; nada se perdeu, nada foi danificado. Enfim, o acervo de Mário foi recebido com emoção, no IEB, bem me lembro. Dona Brasilina, funcionária da copa, creditou a sorte aos santos barrocos, pois temia Exu e Xangô que também vieram. Todo esse panteão sincrético está organizado seguindo as formas mais atuais de conservação e figura no catálogo preparado por Marta Rossetti Batista, um livro notável. No IEB, a biblioteca ficou inicialmente tempo na ordem original e as bibliotecárias apenas conferiam, ajustavam. Depois começaram a organizar.

Esse foi o seu primeiro projeto coletivo?

De certo modo sim, embora não se tivesse traçado um plano geral. Eu pedi que constasse, das fichas de catalogação, a participação das obras na marginalia e isso foi feito. A biblioteca foi organizada ao mesmo tempo que a coleção de artes visuais, esta sob a coordenação de Marta Rossetti Batista, e o arquivo, por mim com a colaboração da Equipe Mário de Andrade voltada para a formação de pesquisadores. Prestei concurso no IEB em agosto de 1968 e o primeiro trabalho foi recuperar, fichando e microfilmando, a produção de Mário de Andrade na coleção dele do Diário Nacional (1927-1932). Crítica de literatura, artes plásticas e música; crônicas, poesia e ficção. Ali descobri o cronista da coluna Táxi. Em 1972, ocorreu a primeira grande exploração do acervo de Mário, aliás de todo o acervo do IEB, para a exposição comemorativa dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Marta, Yone Soares de Lima e eu, com ajuda de José Miguel Wisnik e Carlos Augusto Calil fizemos a exposição Brasil: 1° Tempo modernista: 1917-1929. Os documentos que levantamos renderam-nos o volume de título homônimo, na elegante diagramação moderna criada pela Marta Rossetti Batista, em 1973. Fomos convidadas para a inauguração da mostra, em Paris, promoção do Itamarati. Recusamos o convite, nesse tempo da ditadora, e preparamos uma jovem escolhida fora da universidade. Desavisada, ela insistia em dizer CEdras, em vez de Cendrars.

O material de recortes era de autoria de Mário ou variava?

É todo um conjunto ou a série Matérias extraídas de periódicos que guarda uma parte da produção jornalística de Mário, contendo até rasuras a lápis e a tinta, uma parcela da crítica sobre ele e um grande número de textos de e sobre literatura brasileira, estrangeira; sobre folclore, geografia, história, música, artes visuais, tudo. Mário de Andrade era atualizadíssimo; recebia de amigos recortes de jornais e revistas da Europa e da América Latina.

E como foi o primeiro projeto coletivo que você montou? Contou com ajuda de Castello? Depois que você fez doutoramento começou a ter orientandos e a dirigir pesquisas dos outros, certo?

O professor Castello, que foi diretor do IEB durante  catorze anos, e eu conversávamos bem sobre os projetos que envolveram o arquivo e a biblioteca de Mário de Andrade. Depois do meu doutoramento, tendo me tornado também docente da área de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, em 1972, passei a conjugar minhas atividades lá com o meu trabalho no IEB. Para organizar o arquivo de Mário, montei projetos coletivos que se ligaram a bolsas e verbas da Fapesp e do CNPQ. Para o arquivo, inventei uma caixa de armazenar documentos, na qual a tampa superior, uma vez aberta, pode conter os fólios já consultados, impedindo a dispersão deles, na mesa. As primeiras caixas foram executadas por presidiários e era muito triste vê-las chegar, sob guarda armada. As atuais foram fabricadas, conforme o modelo, pela Adriana Belarmino, uma expert. São azul cobalto, coisa fina. Como orientadora, procurei duplicar, para o IEB, documentos que perfaziam o corpus de mestrados e doutoramentos fora dos estudos sobre Mário de Andrade.

E qual foi o primeiro?

Minha primeira mestranda, Yoshie Sakyiama Barreirinhas, que reuniu o jornalismo de Menotti Del Picchia vinculado à propaganda do modernismo de 1920-1922, organizou paralelamente, para o Setor de Arquivos do IEB, fac-similes dos textos que levantou. De sua dissertação, O Gedeão do Modernismo: Menotti del Picchia no Correio Paulistano: 1920-1922, tirou ainda a coletânea de título homônimo, publicada pela Civilização Brasileira, em 1982. Nesses dois últimos anos, o elenco dos textos embasou o projeto de pós-doutoramento de Ana Paola de Andrade, que supervisionei. Anna Paola, bolsista da Fapesp, estudou particularmente os reflexos do futurismo na propaganda modernista em Menotti. Fez um livro e palestras na Universidade de Roma e na de Milão, em 2012. Minha primeira doutoranda e também minha primeira bolsista da Fapesp, foi Carmem Lydia Souza Dias. Para sua tese, Paixão de Raiz: o Regionalismo de Valdomiro Silveira, defendida em 1989, conseguimos, emprestados gentilmente pela família, os manuscritos, as primeiras edições de obras e os textos na imprensa. Carmen Lydia, ao lado do ensaio que escreveu, realizou a transcrição de contos inéditos, que depositou no IEB.

Quanto à exploração do acervo de Mário, em 1980, houve o mestrado de Neusa Quirino Simões, uma freirinha muito simpática que auxiliava D. Paulo Evaristo Arns. Seu título é Estudando a Marginália: Mário de Andrade e a Ficção Brasileira. Antes disso, numa espécie de aquecimento ou iniciação à pesquisa, ela coligiu as dedicatórias a Mário de Andrade de poetas e ficcionistas brasileiros, em obras na biblioteca dele. Esse trabalho foi parcialmente revisto, no final da década de 1990, por Marjorie Hummel e agora, neste ano, Leandro Raniero Fernandes, pesquisador da nossa equipe, finalizou a revisão, fez cópias fac-similadas de tudo e está concluindo um belo livro. As dedicatórias que, nas bibliotecas dos escritores marcam fortemente a vida literária, no caso de Mário, põem em cena, especialmente, seu ofício de crítico em jornais e revistas, os diálogos com seus pares poetas e prosadores e a atuação do mentor dos moços. Mostram também presentes como este importantíssimo presente de aniversário, recebido pelo escritor em 9 de outubro de 1925, das mãos de Luís Aranha, amigo no grupo modernista de São Paulo. É um exemplar da edição de 1914 de Rã-txa-hu-ni-ku-i: Gramática, textos e vocabulário caxinauás, obra magna de Capistrano de Abreu. Na dedicatória, que simplesmente reitera a amizade, eu encontro a presença indelével de Paulo Prado, discípulo de Capistrano, alimentando o interesse etnográfico daquele buscava um sentido nacional para nossa literatura e que logo estaria esboçando seu Macunaíma nas margens do lendário indígena recolhido pelo etnólogo Koch-Gruenberg. Analisei o valor dessa dedicatória em uma disciplina de pós-graduação sobre os vestígios da criação de Macunaíma, na biblioteca de Mário de Andrade.

Quais os projetos mais importantes que você coordenou? E as teses, os livros que saíram desse trabalho?

Quando a gente está orientando, todos os projetos são muito importantes… entusiasmantes! E, na minha caminhada de orientadora e supervisora, tenho contado, a maioria das vezes, com o apoio da Fapesp, do CNPq e da Capes.

Os trabalhos relativos a Mário deixam-me acrescentada. Acompanhei o mestrado de Raúl Antelo, hoje um crítico renomado. Sua dissertação mestrado, Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade Lê os Hispano-Americanos, está publicado. Estive ao lado de Marcos Antonio de Moraes, na pesquisa para sua dissertação, Diálogo Epistolar Mário de Andrade/Manuel Bandeira, ganhador do Prêmio Jabuti e primeiro degrau na trajetória deste grande especialista nos estudos sobre o gênero epistolar. Com Angela Teodoro Grillo surpreendi-me com o estudo inédito sobre o negro, no âmbito da literatura oral, objeto de seu mestrado; empolguei-me com o mestrado de Raimunda de Brito Batista, que editou a Vida do Cantador, outro inédito, e o de Márcia Jaschke Machado sobre os manuscritos de outros escritores, de que já falamos. E com os doutoramentos de Lilian Escorel sobre a leitura impregnante da revista L’ Esprit Nouveau, ao qual já me referi, e o de Tatiana Longo Figueiredo, Café: o trajeto da criação de um romance inacabado de Mário de Andrade, tese que desenvolveu a reflexão teórica a respeito da natureza de um texto nessas condições e a análise do manuscrito. O de Rosângela Asche de Paula, O Expressionismo na Biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação, gratifica-me particularmente: concretizou um sonho meu.

Foram-me instigantes os doutoramentos de Raúl Antelo, Modernismo em Revista, e de Roselis Oliveira de Napoli, 1922-1972: A Semana Permanece; os de Rosse Marye Bernardi, Dalton Trevisan: a trajetória de um escritor que se revê, e de Rita de Cássia Barbosa, O Cotidiano e as Máscaras: a crônica de Carlos Drummond de Andrade. Igualmente as teses de Édison José da Costa, Quarup: Tronco e Narrativa, que mereceu a atenção de Antonio Callado, durante a pesquisa; a de Marta Moraes da Costa, Teatro em Papel Jornal, centrada no Paraná. E devo citar os mestrados de Roberta Sampaio, Edição Fac-similar Anotada e Estudo dos Arquivos Implacáveis de João Condé, e o de Ana Cândida Franceschini, Artistas Gráficos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo: 1956-1967, que também materializaram sonhos meus.

Como supervisora de pós-doutoramentos, dialogo atualmente com Francisco José Lima Rocha, em sua edição de um romance inacabado de Osman Lins, A Cabeça Levada em Triunfo; com Tatiana Longo Figueiredo, em seu mergulho em Mário de Andrade, leitor e crítico, parcela do Fichário analítico, manuscrito estreitamente ligado à marginália. E acabo de assistir a nova edição de O Banquete, obra de Mário da maior importância. Lilian Escorel a preparou.

Mas é outra edição, fora aquela de Jorge Coli e Luiz Dantas?

Esta é bem completa. O livro, que sairá pela Nova Fronteira, contará também com um ensaio do Jorge Coli, convidado. Quando ele e Luiz Dantas fizeram a primeira edição, em 1979, não se conhecia o manuscrito integral de O Banquete.

Esse livro feito sob sua orientação é o Música Final, do Jorge?

Jorge Coli é um amigo fraterno; compartilhamos nossas interrogações e descobertas. Música Final foi a tese de doutoramento dele, orientada pela professora Gilda de Mello e Souza, a grande mestra nos estudos sobre Mário de Andrade.

Tem, por exemplo, o mestrado livro Vida do Cantador, de Raimunda de Brito Batista. E o mestrado, sob sua orientação com o material do arquivo, do que consta?

O mestrado de Raimunda foi a edição da Vida do Cantador, precedida de um pequeno estudo trabalhando o gênero. Pedi que ela investigasse aquela questão das lições, que é matéria da Igreja Católica. ligada à hagiografia. E o Mário constituiu o santo dele, um ser de exceção – seu personagem Chico Antônio.

Para Vida do Cantador tinha o quê? Fichas, recortes?

Não havia fichas. O manuscrito é o que classificamos como exemplar de trabalho. Neste caso, é o texto resultante da junção do texto impresso, recortado da Folha da Manhã, com as rasuras apostas pelo escritor.

Você aumentou em muito a obra completa de Mário de Andrade. Quais foram os livros que você acrescentou à obra, entre os seus e os de seus orientandos? Os que ele tinha em recortes, manuscritos, fichas etc., e acabaram por virar livro?

Fizemos vários títulos, meus orientandos e eu. Lembro o romance inédito Quatro Pessoas, na edição preparada por Maria Zélia Galvão de Almeida, e a edição que fiz de Balança, Trombeta e Battleship, uma novelinha que o Mário começou a escrever na Amazônia, em 1927. Saiu pelo Instituto Moreira Salles, em 1993, no centenário, e agora, no projeto De mão em mão, conduzido por Carlos Augusto Calil, na Secretaria Municipal de Cultura. Também editei O Turista Aprendiz, e cuidei de três edições críticas do Macunaíma. Em 2007 fiquei encarregada da coordenação das edições de texto fiel de obras de Mário de Andrade, no protocolo que une as editoras Agir/Nova Fronteira e o IEB-USP. Os textos são estabelecidos com base nos manuscritos e edições em vida; trazem uma apresentação, estudo crítico e dossiê de documentos concernentes à criação. Preparadores e críticos são convidados e, a cada título, documentos do arquivo de Mário são reproduzidos em fac-símile. Até agora saíram: Macunaíma, Amar, Verbo Intransitivo, Os Contos de Belazarte, Obra Imatura e Padre Jesuíno do Monte Carmelo. Foi entregue à editora e está nas últimas provas, Poesias Completas, trabalho de Tatiana Longo Figueiredo e meu que oferece as obras publicadas, assim como poemas dispersos e inéditos.

O que há sobre o Macunaíma nesse arquivo? O que tem do processo de criação propriamente dito?

No acervo, de fato. O processo criativo de Macunaíma começa, pelo que hoje se conhece, no esboço de capítulos que o lápis de Mário de Andrade depôs nas margens do segundo volume de Vom Roroima zum Orinoco, consagrado à reunião dos mitos e lendas dos índios daquela região, que é Brasil e Venezuela. Esse volume foi editado na Alemanha, em 1924 e chegou à biblioteca de Mário no ano seguinte ou em 1926. Nessa primeira versão fragmentada do romance, na marginália, percebe-se que o escritor leitor frequentava também Barbosa Rodrigues e outros estudiosos.

Em seguida, vem o que chamei “relíquias do texto”, na minha edição-crítica de 1978, no cinquentenário da obra. São as folhas em autógrafo a lápis preto, remanescentes daquelas versões concretizadas nas férias na “chacra” de um primo, em Araraquara. Mostram o princípio do capítulo 1 na versão feita em “seis dias ininterruptos de rede, cigarros e cigarras”, de 16 a 23 de dezembro de 1926, e na versão subsequente, finalizada no Ano Novo. Juntam-se a dois índices e a dois prefácios, acompanhados de notas para eles. Esse manuscrito representa uma seleção montada possivelmente em 1937, quando sai a segunda edição de Macunaíma, pela Livraria José Olympio. A primeira fora em 1928. Mário, que costumava destruir os originais dos livros seus que via publicados, separou essas páginas para presentear seu amigo Luiz Saia, companheiro de trabalho no Departamento de Cultura. Saia tornou o IEB herdeiro do presente que recebeu. O arquiteto José Saia trouxe os documentos, após a morte do pai.

Pois bem: do processo de criação restaram também, no arquivo, notas de trabalho referentes a termos da flora, da fauna, da topografia do Brasil todo; poucas notas que sobreviveram, a maioria com a indicação “usado”. Na apropriação plasmada na rapsódia que subverteu os padrões do gênero romance, as notas devem ter sido uma infinidade. Talvez houvesse também esboços de capítulos, ao lado delas, quando Mário se pôs a escrever, em Araraquara. Na “Carta pras icamiabas”, capítulo 9 do livro, ele deixa uma pista sobre o início do trabalho, após a leitura do lendário, que tanto o impressionara, conforme se vê em sua correspondência com Drummond, Bandeira e Alceu Amoroso Lima. A pista é a data da “Carta pras icamiabas”: 30 de maio de 1926.

Em 1927 e 1928, Macunaíma teve outras versões, até entrar no prelo de Eugenio Cupolo para a primeira edição que chegou às livrarias no inverno de 1928. Nenhuma foi conservada. Mas, nos arquivos criação, isto é, em documentos fora do manuscrito no dossiê específico, além das declarações em diversas cartas aos amigos, há parcelas que demarcam na viagem de Mário de Andrade à Amazônia, como Turista Aprendiz, entre maio e o princípio de agosto, em 1927, o trabalho em Macunaíma. No verso de um desenho, feito em Marajó, estão termos e situações recolhidos para “Mac” e que foram realmente aproveitados ali. Em O Turista Aprendiz, o diário da viagem que ficou inédito, testemunha-se, com frequência, o entrelaçamento do texto com o da rapsódia, com o romance em elaboração. Nesse diário sobressai o deslumbramento do viajante diante da constelação da Ursa Maior, guia de navegantes, brilhando no céu da Amazônia, terra de Macunaíma que Mário de Andrade elegerá como sede do ócio criador, da preguiça elevada. Essa descoberta muda o desfecho previsto no primeiro traçar dos índices. “Ursa Maior” substitui “Torre Eiffel”, título que me leva a duas hipóteses sobre um capítulo sem texto: o grande final, em Paris ou, uma festa de intensas cores, bem filha de Vei, a Sol, como o Carnaval em Madureira de Tarsila do Amaral. Onde se fixaria também uma enorme réplica da Torre Eiffel, como aquela de precária construção no subúrbio carioca, que domina essa tela pintada em 1924.

Mas, chega de viajar… No arquivo de Mário há ainda os exemplares de trabalho das três edições em vida, de 1928, 1937 e 1944. As rasuras a tinta, no texto da primeira edição, tanto corrigem gralhas, como instituem uma nova versão, obedecida em quase tudo pela de 1937, que deu base à última. Nesse exemplar, o escritor apenas declara, na capa, que desejava rever o texto para novas edições. Faleceu antes, em 25 de fevereiro de 1945. Realizei três edições críticas de Macunaíma e, em 2007, preparei com Tatiana Longo Figueiredo uma edição de texto apurado, acrescida de dossiê de documentos ligados à criação. Temos pronta mais uma, esta com exemplos da crítica quando das edições em vida, e na atualidade.

O manuscrito de Macunaíma foi classificado no projeto temático e teve seu percurso genético exposto no Catálogo analítico dos manuscritos literários de Mário de Andrade, que foi o mestrado de Aline Nogueira Marques, orientado pelo professor Marcos Antonio de Moraes em 2010. Fui co-orientadora desse projeto e orientei o doutoramento de José de Paula Ramos Júnior, que é a análise e a interpretação da crítica sobre Macunaíma, no ano da primeira publicação, agora um belíssimo livro que muito me honra na dedicatória. De Paula recorreu as textos reunidos professora Dilea Zanotto Manfio, da Unesp de Assis, uma pesquisa fantástica que contempla a crítica de Mário polígrafo.

E esse projeto temático Fapesp, levou quanto tempo?

De 2006 a 2011. Seus resultados foram compensadores, bons pra valer! Classificou a tese Manuscritos Mário de Andrade, formou pesquisadores no âmbito da iniciação científica, do mestrado e do doutoramento; acolheu projetos de pós-doutoramento; teve tese publicada e obras de Mário de Andrade, a revista Marioscriptor, disciplinas de pós-graduação sob a responsabilidade do professor Marcos e sob a minha. Foi reportado em palestras e comunicações em reuniões científicas, no Brasil e no exterior. Dialogou com o Institut des Textes et Manuscrits Modernes, no CNRS de Paris (Item), especialmente com a professora Almuth Grésillon.

Você poderia dizer algo sobre o projeto da Correspondência?

A organização da Correspondência de Mário de Andrade estende-se de 1989 a 2003 em vários projetos, financiados pela Fapesp, pela Vitae e pelo próprio IEB. Muitos estagiários deles participaram. Nosso trabalho dialogou com o Item. A organização antecede a abertura da parcela lacrada por 50 anos, devido à disposição testamentária do escritor. Começamos em 1989 a classificar o que não estava interdito. Nesse ano, estava, entre os pesquisadores estagiários, Marcos Antonio de Moraes, meu ex-aluno nas Letras. Para comemorar os 100 anos de Mário, em 1992, Marcos fez seu primeiro livro, dedicado a textos e imagens de postais na correspondência passiva, e a reflexões sobre correspondências. Esse foi o primeiro passo de quem hoje é um especialista em epistolografia e coordena sua própria equipe.

Sua maior descoberta, nesse campo. O Marcos aproveitou o trabalho dele e editou a Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira; dos dois lados.

Fui a orientadora do Marcos nesse mestrado, na verdade um trabalho fraterno. Sua dissertação tornou-se o primeiro livro na Coleção Correspondência de Mário de Andrade, projeto de edições anotadas do IEB com a Edusp, traçado por nós dois. O livro de Marcos ganhou o Prêmio Jabuti. Continuamos cuidando dessa coleção que acaba de mostrar o diálogo epistolar Mário de Andrade & Sérgio Buarque de Holanda, uma edição primorosa, da lavra de Pedro Meira Monteiro. E apresentou a interlocução importante do escritor paulistano com a pintora Tarsila do Amaral, e com a poeta Henriqueta Lisboa, organizadas por Aracy Amaral e Eneida Maria de Souza, respectivamente. A Coleção espera publicar, em 2013, a correspondência com os escritores e artistas plásticos argentinos, com, Luís Camillo de Oliveira Netto, Murilo Miranda, Prudente de Moraes, neto, Anita Malfatti e Ribeiro Couto. Mário & Sérgio Milliet está em andamento. Todos os livros passam pelo confronto dos originais, entregues pelos preparadores, com os manuscritos, na revisão especializada feita por Tatiana Longo Figueiredo.

Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH-USP

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O Poeta do Castelo

Hexecontalito

Pós-Walds

Partido Alto

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Concebido em estreita colaboração com Paulinho da Viola, Partido Alto, de Leon Hirszman, o filme é um significativo documento histórico.

Sincera homenagem à ”expressão mais autêntica do samba”, como Candeia define esse gênero musical, marcado por improvisações, o documentário, rodado em 1976,  além de fixar a manifestação de certa pureza musical, a simplicidade e a comunhão da gente do samba com depoimentos marcantes da velha guarda, firma a posição contra a crescente padronização do samba, imposta pelo mercado.

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Heitor dos Prazeres

Argumento

Matrizes do Samba no Rio de Janeiro

Amor na sala vazia

Da série Pequenos apontamentos noturnos

Por Theotonio de Paiva

AmourVenho de assistir Amour, de Michael Haneke.

Numa tarde chuvosa, olho na saída do cinema para a enseada de Botafogo. E me vejo completamente sozinho numa sala cheia onde não mais se rebobinam as fitas. Não temos mais fitas, reconheço. E me deparo novamente com a dor implacável da nossa existência, da minha existência, da tua existência.

Os anos que se passaram, a decrepitude e a anatomia cruel da morte nos chegam pelas mãos de quem se acostumou a não transigir. Embora com uma inefável compaixão pelas suas criações indefesas, Michael Haneke é incapaz de ceder à tentação barata de mitigar ou amenizar o que se mostra desagradável, por vezes repugnante. É assim e, então, se mostra.

A história de amor e morte dos dois velhos músicos não cabe na tessitura dramática de quem há tempos abandonou a esperança. Tudo soa perturbador. Nada virá dos céus para nos reconfortar como se não pudéssemos saber da terrível notícia. A própria catarse é estrategicamente demovida com o final anunciado no começo barulhento de tudo.

Na tela, dois atores fabulosos no exercício da sua profissão. Emmanuelle Riva, de quem recordo com olhares juvenis, pasmado frente aos seus encantos em Hiroshima mon amour, de Alain Resnais, num roteiro comovente de Marguerite Duras. Lembro dela quando assisti uma cópia já surrada na antiga Cinemateca Macunaíma, no nono andar do prédio da ABI, aqui no Rio. E Jean-Louis Trintignant, cujas lembranças se confundiam em mim numa série de filmes, até se firmar na imagem do beijo em Anouk Aimée, em Un homme et une femme, de Claude Lelouch. E aquela musiquinha intragável.

E os dois, ali, imensos, gigantes, a se revolverem até mais não poder, não mais existir, não mais fazer sentido. Na ausência de tudo, resta o apartamento igualmente vazio, preenchido pela presença da filha, espectadora da tragédia, assim como eu e você.

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Hexecontalito

No meio do caminho

Pequenos apontamentos noturnos

Narrativas de uma memória assustada

Por Izabel Fontes

Do Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

Ao resolver contar a história de sua vida, o escritor argentino Andrés Neuman inicia seu relato se questionando sobre o caráter das recordações, elemento base do trabalho de resgate a que se propõe. Lembrar dói. E é essa dor que o faz perceber que, na verdade, a memória já doía antes de virar narração. O que o motiva é uma necessidade de falar antes que seja tarde, antes de desaparecer silencioso do mundo. Para escrever Una vez Argentina, publicado em espanhol pela editora Anagrama em 2003 e ainda sem tradução brasileira, Andrés recorre a uma memória que lhe pertence – mas não é só sua – para contar a trajetória da sua família e se aproximar de alguma compreensão sobre como foi formando o que é hoje através dos anos. Paralela à história de formação familiar que está no que parece ser o foco da narração, temos a história da memória de um país, de como a violência de sete anos de governo ditatorial, que gerou mais de 30 mil desaparecidos, deixou marcas profundas na vida cotidiana e comum de toda uma nação. O relato se apresenta como uma metonímia da formação do povo argentino, como uma explicação torta de como se chegou ao terror da ditadura militar. Descontínuo, fragmentado e construído a partir de uma grande colagem de recordações próprias e alheias, com tom às vezes trágico, às vezes cômico, a história de Neuman vai, no entanto, muito além de uma novela política, mas é um emocionante relato de aprendizagem e, sobretudo, uma declaração de amor aos ausentes, àqueles que não estão mais aqui. Andrés, nascido em 1977, pertence a uma geração de escritores que não viveu o regime ditatorial, mas que teve a vida inteira definida por ele. Experiência parecida é narrada pelo chileno Alejandro Zambra em Formas de volver a casa (2011), romance que narra as memórias de um escritor que, quando menino, viu a ditadura passar e afetar tudo o que conhecia por realidade e tenta, já adulto, entender o sentido dos episódios isolados que tanto marcaram sua infância. É uma geração que viveu a ditadura sobretudo através da luta dos seus pais e cujos textos têm a missão de dar prosseguimento ao resgate, iniciado ainda na década de 1980, dos anos de regime.

São histórias marcadas pelo luto, pela lacuna deixada por familiares desaparecidos ou mortos pelo autoritarismo da ditadura. Esse luto, que é acima de tudo coletivo, pede explicações, demanda que as histórias pessoais sufocadas pelo regime sejam contadas, que seja atribuída a importância devida àqueles que lutaram e pagaram com a própria vida. O lembrar, ainda que com a memória alheia, passa a ser um ato que restaura laços comunitários e sociais, laços que foram destruídos no exílio ou destroçados pela violência daqueles que governavam. Os rastros da ditadura são bastante visíveis e fortes na literatura produzida nos anos depois do regime, tanto nos anos imediatamente posteriores aos processos de redemocratização, quanto nos anos 2000. São textos narrados em primeira pessoa, entrevistas e romances que buscam dar novos significados à experiência, fazer com que os anos passados sobre o regime militar não passem em branco. No caso de Neuman, o resgate da história familiar, tantos anos depois, assume a função de resgatar as histórias e os vínculos perdidos durante o período do regime militar, lutando contra o cancelamento do passado e impedindo que a catástrofe que está logo atrás passe despercebida. A memória acaba representando o elemento que permite a redenção, que permite que a experiência seja transmitida, processada e atue como elemento criador de novas possibilidades no presente.

Essa capacidade humana de colocar a sua vivência subjetiva na forma de um discurso, de uma narração, e assim de compartilhá-la, seria justamente o fator que caracterizaria a própria experiência. Somente a linguagem é capaz de libertar o aspecto mudo da experiência e é esse o ponto central do famoso texto de Walter Benjamin sobre Nikolai Leskov, escritor russo que teria sido o último dos verdadeiros narradores. As reflexões benjaminianas nos levam até o final da primeira Guerra Mundial, onde está situada a perda primeira do sentindo da experiência, ou o momento onde a narração se separa do corpo, ruptura que teria sido causada pelo horror da guerra que fez com que os homens voltassem mudos dos campos de batalha, impossibilitados de compartilhar suas vivências nas trincheiras, incapazes de alcançar qualquer nível de compreensão dos fatos presenciados. Pela primeira vez, os fatos vividos eram fortes demais para o corpo humano: do passado da guerra, só as nuvens foram conservadas, todo o resto foi destroçado pela chegada de um horror imprevisível, que desorientou os homens, tornando-os incapazes de se mover e de reconhecer o mundo onde viviam. Leskov foi, portanto, o último dos narradores, o último representante de um costume milenar de se transmitir histórias, do apego à experiência que passa de boca em boca, onde a empatia era tão grande que as memórias se tornavam coletivas ao passo que se materializam através da narração. A época de Leskov, portanto, era o tempo em que o que se narrava era o que se vivia, o tempo em que o sentido era pleno, evidenciado pelo total entendimento entre aquele que narra e aquele que escuta: o eu presente em cada história contada era sempre um eu coletivo, compartilhado.

A noção benjaminiana de experiência, portanto, afasta-se do senso comum que a coloca como um atributo inerente aos seres humanos, ligado direta e subjetivamente à realidade, sem nenhum tipo de mediação, ou seja, pequenas partes independentes da vida. É a definição da experiência através do discurso. Dentro dessa linha argumentativa, os eventos traumáticos podem ser encarados como a experiência falha por excelência pela sua impossibilidade de serem narrados e acabarem desaguando em um silêncio angustiado. Por outro lado, o processo de luto carrega dentro de si um imperativo que demanda que aquilo que se viveu seja narrado, que a memória possa, finalmente, falar e assim redimir o corpo da dor que ainda carrega. O imperativo da fala, ou o caráter de redenção que a narração da memória carrega, foi retratado alegoricamente pelo escritor argentino Ricardo Píglia em A ilha, uma das narrativas que constituem o romance policial A cidade ausente (2003).

Narrada por uma das personagens como a chave de compreensão de todo o enigma que perpassa e une a ação do romance, a história descreve um lugar onde a linguagem se transforma completamente ao longo de intervalos imprevisíveis de tempo. Não se trata, como é de se esperar, de pequenas mudanças, de atualizações ou de palavras que caem em uso ou desuso ao longo dos anos, lenta e progressivamente: nesse pequeno pedaço de terra perdido no mar, um idioma completamente novo passa a ser usado de tempos em tempos, em um ciclo descontínuo e imprevisível, que pode variar entre dias, meses e anos. A cada novo ciclo, todas as pessoas passam a falar e a compreender imediatamente a nova língua, esquecendo completamente a anterior. O processo acontece de forma natural, sem nenhum conflito e, por isso, a própria percepção do fenômeno só é possível através do olhar de um estrangeiro. A instabilidade linguística à qual a ilha está submetida define por completo a vida ali. No cotidiano, são criadas pequenas confusões e mal-entendidos: cartas chegam com símbolos que não podem mais ser compreendidos, grandes poetas se perdem e as relações humanas mudam, pois é possível que o amor que existia em uma língua se transforme em ódio em outra língua. Dentro dessa mutação eterna, é compreensível que nenhum relato seja possível. Acima de tudo, no entanto, o que os habitantes da ilha e as suas trajetórias nos mostram é que sem a possibilidade de narração não há saudade, não há lamentos e o próprio conceito de verdade só pode ser pensado através da rapidez e da efemeridade. Na ilha, através da existência de um tempo que passa sem narração, nenhuma memória é construída e a vida é baseada na esperança que a linguagem finalmente encontre sua forma definitiva e permita que o próprio mundo assuma também a forma a que está destinado. Mas também se espera que as pessoas assumam as suas formas e possam finalmente se compreender. A linguagem aparece como o caminho para a felicidade, como uma utopia inalcançável e a narrativa como uma promessa eternamente adiada, onde a memória do passado vai, por fim, passar a existir.

E é justamente esse caráter de redenção que os relatos dos anos de ditadura ganham nos primeiros anos após a abertura política. Sobretudo na Argentina, nas décadas de 1980 e 1990, surge uma forte tendência testemunhal, impulsionada pela utopia de não esquecer nada através do recém-conquistado direito à fala. É através da construção de um discurso em primeira pessoa — de uma narração do eu — que pessoas que viram tudo o que acreditavam e até mesmo o que eram serem destruídos pelos regimes ditatoriais e começam a se reconstruir e a se projetar novamente em sonhos e planos para o futuro. A escrita, então, não era mais apenas um recurso literário, mas uma experiência cognitiva, ou seja, a instância de narrar é por si só forjadora de identidade. Em outras palavras, é a materialização do ser escrevendo: eu me torno aquilo que meu discurso estabelece, em um processo duplo. São anos marcados pelo surgimento do testemunho em diversas formas e em diversas mídias: depoimentos, entrevistas, livros de memória, vídeos, romances. A pesquisadora e teórica da literatura argentina Beatriz Sarlos vê esses anos como o surgimento de um novo fenômeno, que chamou de guinada subjetiva. Seriam, dessa maneira, anos marcados pela tentativa da reconstituição da vida através da rememoração da experiência e da revalorização da primeira pessoa como ponto de vista.

No entanto, acompanhando essa urgência pela fala, vem a sensação de que as palavras não são suficientes para expressar a dor vivida. É, como disse Benjamin, o sentimento de que os eventos vividos tornaram-se, por fim, individuais, que ninguém pode jamais entender o que foi sofrido. A situação traumática, desse modo, só existe dentro de um paradoxo: a superação do luto carrega consigo um imperativo que demanda uma narração que vem sempre acompanhada da percepção angustiante de que a linguagem não é suficiente frente ao que foi vivenciado. O desafio, dentro das narrativas de trauma, residiria justamente no contorno desse paradoxo através da busca por alternativas que minem a bruta e crua facticidade da experiência em uma cadeia significante que, ao mesmo tempo em que é fiel aos acontecimentos, expresse ao menos minimamente a vivência subjetiva, sem desaguar em uma metáfora que não comunique nada para o resto da sociedade. É, como bem colocou Neuman na abertura de sua novela, a percepção de que as recordações são sempre dolorosas, mas ainda mais carregada de dor é a perspectiva de desaparecer da terra antes de ter a possibilidade as expressar.

Sob esse ponto de vista, esses textos são produtos de uma vontade de reminiscência, chamando a atenção do presente a tudo aquilo que não se realizou no passado e colocando os dias atuais (e a si mesmos) como produtos diretos de um passado entendido como catástrofe. Entretanto, se no contexto argentino o acerto de contas com o passado já começa no governo de Alfonsín, em 1983, através de uma série de medidas políticas e jurídicas que deram início ao julgamento dos crimes cometidos durante o governo militar, no Brasil a transição à democracia é controlada pelos militares e as discussões sobre os anos de ditadura foram adiadas e relativizadas em um nível que seria inaceitável na Argentina. Idelber Avelar*, professor universitário de teoria literária e autor de Alegorias da derrota — A ficção pós-ditatorial no trabalho de luto na América Latina, ressalta que mesmo no Chile, país cuja lei de anistia funcionou de maneira muito semelhante à brasileira, o acerto de contas com a ditadura avançou muito mais do que no Brasil e condenou cerca de 700 militares desde 2004, enquanto o Brasil ainda está envolto em polêmicas e entraves a projetos como o da Comissão da Verdade. O caráter amnésico e apaziguador da relação brasileira com os anos ditatoriais não tem comparação entre os países vizinhos. No Brasil, mais do que em qualquer outro país latino-americano, os anos do chamado processo de redemocratização foram marcados por uma grande euforia, pela promessa de progresso e pela sensação de que, enfim, tudo estaria bem. Através da proposta de deixar os anos anteriores para trás, fomos empurrados em direção a um futuro onde não existia espaço para a reflexão do passado.

Esse esquecimento passivo acaba sendo refletido na produção literária brasileira, como pode ser visto em algumas memórias e testemunhos que revisitam os anos de regime. Avelar, ao pensar nesse tipo de relato, cita os textos de Fernando Gabeira, onde existe uma forte autocrítica ao passado militante que leva à constatação do progresso, de como a situação efetivamente melhorou e na sensação de que agora sim tudo vai ficar bem. Em O que é isso companheiro, o político e jornalista narra em primeira pessoa os seus anos de militância na luta armada brasileira nos anos 1960, contando a sua versão do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick logo após a declaração do AI-5, ato que suspendia os direitos civis brasileiros. Escrito dez anos depois, no entanto, O que é isso companheiro é marcado por um tom analítico, onde a real necessidade dos anos de violência cometidos é posta em questão e colocada quase como ilusões juvenis. Dessa maneira, no relato que se tornou símbolo do testemunho político no Brasil, que foi transformado em um filme que concorreu ao Oscar de melhor produção estrangeira, a rememoração dos anos de luta contra o regime acaba desaguando na certeza de que as ilusões do passado finalmente ficaram para trás, na necessidade de agora voltar o rosto para frente.

Entretanto, do outro lado, temos o trabalho alegórico e crítico dos anos de ditadura e do próprio esquecimento, cujo melhor exemplo talvez esteja no romance de Silviano Santiago Em liberdade, que forja um diário que teria sido escrito por Graciliano Ramos logo após a sua saída da prisão, na ditadura de Getúlio Vargas. Em uma introdução, o autor mineiro explica como o manuscrito teria ido parar em suas mãos e as razões que o levaram a publicá-lo, além de supostos detalhes do documento (rabiscos, rasuras, formas de organização). Em um extenso levantamento biográfico, Santiago mistura fatos reais da vida de Graciliano, de seus anos passados na prisão e de sua readaptação à liberdade, com reflexões e referências aos assassinatos de Cláudio Manuel da Costa na inconfidência mineira e de Vladimir Herzog nos porões da ditadura. O entrelaçamento da vida dos três mártires, além da narração de fatos da vida do próprio Silviano, acaba mostrando como a história pode se repetir e é um manifesto claro contra a proposta de esquecimento.

OS ANOS 2000

As histórias contados nos anos 2000, ou os relatos da geração seguinte àquela que realmente viveu durante os anos de ditadura, carregam um significado especial. Os autores, que tiveram uma experiência muito particular do regime militar, ou que viram a violência e a luta dos seus pais através das lentes da infância, compartilham um sentimento de incompletude, de que grande parte de suas histórias está omissa ou mal interpretada. Dessa maneira, eles tentam, a cada dia, reconstruir suas trajetórias, dando-lhes novos significados. Nesse processo, estão unidos através da criação de uma trama de peripécias fictícias baseadas em memórias reais, misturando lembranças recentes, distantes e alheias. Se, nos primeiros anos da chamada redemocratização, o caráter de verdade dos relatos era indiscutível, se todas as histórias tinham a sua veracidade confirmada e garantida através do sofrimento, o passar de quase duas décadas traz o questionamento acerca da validade desse pensamento e acaba gerando uma literatura pós-ditatorial ainda mais alegórica, à medida que totalmente baseada na ausência. É, como afirma Idelber Avelar, “uma espécie de epitáfio sem corpos, de canto fúnebre sem sepultura”.

Esses escritores tentam se reinventar através de suas histórias e a ficção aparece cada vez mais misturada às memórias com o objetivo de resgatar a parte de suas histórias que desapareceu junto com os familiares que sumiram misteriosamente, que foi roubada nas salas de tortura e que foi calada de tantas maneiras durante os anos de regime militar. Idelber Avelar, ao ser questionado sobre a especificidade desses romances, coloca que, antes de tudo, poderíamos detectar uma categoria especial de luto, com mecanismos de expressão e organização também especiais. Dessa maneira, “tudo ali funciona para instalar de forma poderosa a especificidade do fardo que vivem os filhos e netos: fazer o luto por pessoas de quem você não possui absolutamente nenhuma reminiscência. Ou seja, um luto que começa com uma espécie de paradoxo retrospectivo, no qual se deve em primeiro lugar construir — não reconstruir, mas construir — o próprio objeto do luto”. Ao propor se reinventar através do discurso, essa geração está afirmando que não acredita mais em uma verdade literal, na possibilidade de existência de uma referência indubitável, mas se percebe como reconstrução literária feita através de fragmentos esparsos, propondo que dentro da análise dos fatos narrados não importa mais a verdade biográfica, mas a reflexão que ela traz sobre o sujeito da escrita.

O exemplo mais claro desse processo talvez esteja no cinema, em Los Rubios, filme da argentina Albertina Carri. Em um misto de documentário e ficção, a diretora busca investigar o que está por trás do desaparecimento e assassinato de seus pais quando ela tinha três anos de idade. Com uma câmera que treme, enquadramentos falhos e imagens de baixa qualidade, o filme joga em vários níveis com as contradições da memória, do que é verdadeiro, do que é ficcional. Nos primeiros minutos do filme, a câmera foca no rosto de uma moça de cabelos castanhos, óculos quadrados e expressão séria que informa: meu nome é Analía Couceyro, sou atriz e neste filme interpreto a cineasta Albertina Carri. No decorrer do filme, portanto, a protagonista — aquela que narra as suas memórias, que entrevista antigos vizinhos em busca das histórias de seus pais e que folheia álbuns fotográficos — é uma atriz. Ao fundo, no entanto, vemos a própria diretora. Dirigindo a sua intérprete, guiando a interpretação, o tom e a velocidade das falas. Em outras palavras, criando uma representação de si mesma através da voz e do corpo alheios e o que resulta isso é a questão que o filme não pode responder: existe uma realidade por trás das distorções da memória? Existe realmente uma verdade a ser resgatada, há um ponto de intercessão entre tantas diferentes versões?

Em um dos últimos planos, Albertina (Analía) lê as anotações de seu diário: “A geração dos meus pais, os que sobreviveram a uma época tão terrível, reclama ser protagonista de uma história que não lhes pertence. Os que vieram depois, como Paula e Andrea, as minhas irmãs, ficaram no meio, feridos, construindo suas vidas entre imagens insuportáveis”. No fundo, o relato de Albertina se encontra com o de Neuman que resgatamos no início do texto. São procuras desesperadas por sentido, tentativas de tornar cada uma das imagens um pouco mais suportáveis. É um resgate da força que foi roubada pela violência militar, resgate também de uma história, de uma imagem refletida pelo espelho.

*Em Alegorias da derrota – A ficção pós-ditatorial no trabalho de luto na América Latina, publicado em 2003 pela editora UFMG, Idelber Avelar analisa o cenário da produção ficcional na América Latina a partir da análise de um corpus de romances selecionados, sobretudo romances publicados nas décadas de 1980 e 1990. Para a elaboração dessa matéria, entrei em contato com o professor da universidade americana de Tulane e o questionei sobre as possíveis mudanças que podem ser identificadas na produção atual, dos anos 2000, e pela gentileza gostaria de agradecer ao professor, cuja entrevista serviu de inspiração e guia para a elaboração desse ensaio.

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