Os intervencionistas de novo modelo

Por Arno J. Mayer, no Counterpunch, via Via Viomundo

Por um momento parecia que a era imperial-colonial da Europa ocidental tinha chegado ao fim e que os benefícios e fardos transferidos para os Estados Unidos estavam também próximos de ser liquidados. Mas descobrimos que se trata de um grosseiro erro de avaliação histórica.

O Ocidente, como um todo, não abandonou sua “missão civilizatória” inspirada por deus nem deixou de ouvir o profundo chamado interior para “carregar o fardo do homem branco”. Há alguns anos os neoconservadores americanos e a direita religiosa proclamaram seu “Projeto para um Novo Século Americano” e a universalização da “Agenda da Liberdade”. Eles diziam abertamente o que muitos outros continuam a pensar ou dizer em voz baixa no mundo euro-atlântico. Na verdade, o Primeiro Mundo dobrou a série de bandeiras nacionais primeiro sob a bandeira da OTAN e em seguida sob a da ONU. E assim leva adiante sua missão imperial com a ajuda dos “capacetes azuis” das Nações Unidas; é ajudado e encoberto por uma galáxia de ONGs; e usa tribunais internacionais especiais para tentar derrubar ou derrotar líderes civis e militares sob a acusação de crimes contra a humanidade e dos pecados capitais da corrupção desenfreada.

O Ocidente é onipresente no estrangeiro: Iraque, Afeganistão e Paquistão; Egito, Líbia, monarquias e emirados do Golfo; Nigéria, Sudão, Iemen, Somália, Costa do Marfim. O princípio da intervenção pisoteia aquele da soberania; e a essência da guerra civil é redefinida: a tentativa de um governo de fazer cumprir a lei e a ordem com perda de vidas agora é algo próximo da perpetração de crimes contra a humanidade.

É, naturalmente, melhor não considerar quem desenhou as fronteiras de todos estes estados potencialmente des-soberanos e quem instalou seus regimes e estabeleceu tantas dinastias, reais ou não reais.  Nem é preciso relembrar o papel do Ocidente na derrubada do primeiro-ministro Mohammed Mossadegh e o investimento do Shad Mohammed Reza Pahlavi no Trono do Pavão, que abriu caminho para o aiatolá Ruhollah Khomeini e o presidente Mahmud Ahmadinejad no Irã; a campanha contra o general Abdel Nasser, que abriu caminho para Anwar Sadat e Hosni Mubarak no Egito; a remoção do presidente Salvador Allende em favor do general Augusto Pinochet, no Chile; e o apoio total ao presidente Fulgencio Batista, que levou ao triunfo de Fidel Castro em Cuba.

Este novo modelo intervencionista do Ocidente se tornou manifesto no Velho Continente entre as duas guerras mundiais: a intervenção na guerra civil revolucionária da Russia seguida pelo cordão sanitário e pela quarentena em torno do regime soviético que serviram à ascensão de Stalin; a indulgência inocente com os nacionalistas na guerra civil espanhola, que auxiliou a vitória de Franco. E então, depois de 1945, as intervenções conservadores do Ocidente nas guerras de independência anticoloniais da Indochina, Argélia, África do Sul, Quênia, Indonésia, Congo belga e Angola portuguesa.

Até hoje o império é lucrativo, talvez nem tanto para o Tesouro público, mas sempre para interesses discretos, alguns deles vitais e poderosos. O nome do jogo é extração e exploração dos recursos naturais, mais notavelmente o petróleo, os minérios e os metais. Essa corrida a recursos não-renováveis convida e dá forma às elites locais, essencialmente associadas aos negócios imperiais.  Essa colaboração entre agentes imperiais e elites locais, algumas delas ocidentalizadas, é o nexo dos governos autocráticos e da corrupção, inclusive da fuga de capitais às custas da população nativa em geral.

Na verdade, é mais que hipócrita ficar em silêncio quando os parceiros imperiais do euro-Atlântico passam a vilificar e colocar em julgamento ou executar gente como Saddam Hussein, Hosni Mubarak, Muammar al-Qaddafi, e — deus nos livre ou deus nos ajude — Bashar al-Assad, rei Abdullah da Casa de Saud, rei Hamad Isa al-Khalifa do Bahrein, Ali Abdullah Saleh do Iemen e tutti quanti.

No fim, no entanto, o Ocidente ainda se acha no direito de proclamar a vitória da justiça poética. Afinal, Mubarak matou 800 “civis inocentes” no início da primavera árabe do Egito e depositou e investiu muito de sua fortuna corrupta no Primeiro Mundo — possivelmente com Warren Buffet, George Soros, Citibank, Barclays, BNP Paribas, Deutsche Bank, UniCredit e UBS. Não apenas Mubarak e Qaddafi, mas vários de seus colegas potentados regionais cometeram crimes contra a humanidade, sem falar das igualmente ultrajantes violações da ‘moralidade’ do Ocidente, nas quais se inclui a moralidade sem manchas do capitalismo financeiro.

Esqueça que enquanto muito do mundo árabe e do mundo não árabe-muçulmano, parte do qual dirigido pela fé, está enlouquecido, o mundo secular judaico-cristão do Ocidente está matando e deslocando não centenas, mas milhares de “civis inocentes” no Iraque, Afeganistão, Paquistão e Líbia. Escolhendo esquecer suas própria guerras civis, o Ocidente zomba do postulado de Montaigne segundo o qual “a guerra civil é um mau menor que a guerra estrangeira”. Seja como for, o Ocidente encoraja e apoia os guerreiros da liberdade do Terceiro Mundo em revoltas de todo tipo, assim como encorajou e apoiou as chamadas revoluções ‘coloridas’ ou de ‘veludo’, mas sob a condição de que os movimentos pró-democracia não fizessem mudanças socioeconômicas ou pró-religiosas.

Nem Moscou nem Beijing desafiam, nem se opõem, ao intervencionismo imperial-colonial sancionado pelas Nações Unidos. Tendo perdido a Guerra Fria, abraçado o turbo-capitalismo e ressacralizado a Igreja Ortodoxa, a Rússia não quer relembrar o preço que pagou por ter sido o principal alvo e vítima da contenção-com-intervenção do Ocidente, alimentada pelo medo epidêmico do comunismo, análogo ao medo atual do Ocidente em relação ao expansionismo islâmico que tem seu Kremlin em Teerã. Da mesma forma, tendo desamarrado o Prometeu capitalista, pirateado do Ocidente, seria vergonhoso da parte da China voltar ao tempo do intervencionismo não apenas dos japoneses, mas acima de tudo dos norte-americanos em seus negócios internos e regionais.

E para melhorar suas respectivas posições no capitalismo neo-mercantilista, a Rússia usa a geopolítica do petróleo e da venda de armas enquanto a China explora seu vasto exército de reserva para abastecer os Walmarts do Primeiro Mundo com bens de consumo básicos-a-preço-de-banana, sem os quais a turma dos baixos salários e os imigrantes não-qualificados que vivem no Ocidente não conseguiriam sobreviver. Nem os empregadores deles.

De quebra, a China tem a temeridade de usar o seu superávit comercial e de manipular sua moeda (o yuan) para desafiar a hegemonia monetária do Ocidente e enfraquecer as finanças públicas, com isso enfraquecendo a capacidade e a vontade do Primeiro Mundo de continuar suas intervenções imperiais no Terceiro Mundo e seu espírito “orientalista”.

Enquanto isso o mundo Euro-Atlântico será chacoalhado desproporcionalmente pelos giros crescentes, frequentes, severos, amplos e repetidos do capitalismo financeiro-mercantilista multinacional, especialmente por causa de uma população que cresce e envelhece rapidamente e coloca pressão sobre críticos recursos naturais não-renováveis, enfrentando preços de alimentos que ficam à mercê de mercados de commodities altamente especulativos. Enquanto no Ocidente as consequências disso podem tomar a forma de movimentos de protesto das classes baixas, no Terceiro Mundo, casa para tantos dos desgraçados da Terra, é mais provável que isso cause desnutrição, fome e epidemias.

Até o presente os pobres urbanos e rurais tem se juntado ou aos rebeldes da praça Tahrir no Cairo ou à turma da Porta do Sol em Madri. Pelo menos no curto prazo, com as críticas focadas exclusivamente nas questões funcionais e não nas questões substantivas da economia e da sociedade capitalistas — apesar da notória busca por alternativas políticas e econômicas — o mundo crescentemente multipolar será governado por agências de classificação competidoras, não pelos governos do G-20.

Isso oferece enorme vantagem,  ao liberar os presidentes, primeiros-ministros, legisladores e pensadores para que se concentrem no desenvolvimento militar das guerras assimétricas, nas quais podem matar o inimigo sem sacrificar seus homens ou mulheres soldados. Estes, de qualquer maneira, tem sido substituídos pelos soldados do setor privado, que quando não estão engajados em batalhas se tornam um cruzamento de forças da paz com exército da salvação.

De qualquer forma, o novo modelo de guerra naval e aérea não tripuladas é infinitamente mais fácil de ser entendido e utilizado por políticos que a economia de modelos estatísticos e matemáticos. Além disso, ao se investirem completamente nas questões militares, os políticos vão garantir que os orçamentos de ‘defesa’ vão continuar a exceder vastamente os de investimentos sociais, também para gerar empregos e lucros no setor armamentista da economia.

Na soma, os líderes políticos do emergente mundo multipolar, com os Estados Unidos ainda numa posição de liderança econômica e militar, poderão competir pelo Prêmio Nobel da Paz como autêntica medida do estadismo de hoje, da mesma forma que o Prêmio Nobel de Economia serve para medir o estreito exercício da ciência econômica, que está morta para as perguntas, os debates e as discussões que envolveram o campo da economia política através dos tempos.

Mesmo diante do sistema internacional e do Grande Oriente Médio em rápidas mudanças, a coalizão euro-atlântica não parece inclinada a fazer Israel entender que não é mais o posto cultural e militar essencial e indispensável do Ocidente no Sudeste asiático, com isso buscando entendimento e cooperação com seus vizinhos em pé de genuína igualdade e de interesses comuns. A era do excesso de confiança e de construir nações já se foi e chegou a hora de salvar Israel de si mesmo.

Arno J. Mayer é professor emérito de história na Universidade de Princeton. Ele é o autor de  The Furies: Violence and Terror in the French and Russian Revolutions; e Plowshares Into Swords: From Zionism to Israel (Verso).