Resistencia, capital da leitura

Por Eric Nepomuceno, via Carta Capital

Uma vez mais – a quarta nos últimos sete anos – os ventos da vida me trouxeram a Resistencia, capital da província do Chaco, nordeste da Argentina, onde acontece o 16º Fórum Internacional para o Fomento do Livro e da Leitura. Por trás desse nome extenso e pomposo se esconde um dos eventos literários mais interessantes da América Latina. São três dias de emoção para os participantes, e de descoberta para o público.

Longe das lantejoulas e do frenesi de eventos sociais disfarçados de festivais literários, ou de feiras que são muito mais de negócios que de literatura, Resistencia, uma cidade amena, com laranjeiras e esculturas plantadas nas calçadas, recebeu, ao longo dos últimos 16 anos, mais de 500 escritores, editores, jornalistas, professores, bibliotecários e especialistas em programas de difusão da leitura vindos de duas dúzias de países. Já passaram por aqui nomes de primeira linha da literatura latino-americana contemporânea, e agora mesmo fazem rodízio, entre oficinas literárias, mesas-redondas, conferências e sessões de leitura, escritores de prestígio consolidado no âmbito do continente, como o cubano Eduardo Heras León, o peruano Alonso Cueto ou as argentinas Cláudia Piñeiro, Samanta Schweblin e Graciela Bialet. A portuguesa Rosário Alçada Araujo, festejada autora infantil em seu país, veio ver de perto o que acontece aqui. José Castilho Marques Neto, que até há pouco dirigiu o Plano Nacional de Leitura brasileiro, fez a conferência de abertura.

Na platéia chamam a atenção batalhões de professoras de origem muito simples, de alunos de áreas de carência total, que pela primeira vez na vida ouvem (e fazem perguntas) a escritores, ilustradores, jornalistas. Não há glamour algum: o que há é, nos olhos do público, o lampejo do descobrimento.

Quem organiza o evento é Mempo Giardinelli, um dos mais conhecidos autores latino-americanos da sua geração, autor de um livro memorável chamado ‘Luna Caliente’ e ganhador do prêmio Rômulo Gallegos com ‘O santo ofício da memória’. O que diferencia tanto este Foro, realizado pela Fundação Mempo Giardinelli, da infinidade de eventos dedicados ao livro e à leitura no continente? Bem, talvez o fato de não ser um evento isolado, mas que integra uma incansável linha de ação levada adiante por Mempo e seu pequeno batalhão de Brancaleone. E também ao fato de ser realmente dedicado à leitura.

O Chaco é uma das províncias mais pobres e exploradas da Argentina. Foi riquíssima, até que seus bosques imensos foram sumariamente varridos do mapa e transformados primeiro em carvão, e depois em planícies cobertas de soja. O desemprego é enorme, comparável à miséria e à destruição do meio-ambiente.

Pois nesse cenário de quase desolação Mempo Giardinelli criou sua fundação e passou a dedicar esforços a incentivar a leitura. ‘Nós somos o que lemos e o que deixamos de ler’, diz ele com razão. Para mudar a realidade e tomar consciência da necessidade dessa mudança, ele inventou de incentivar as crianças em primeiro lugar, e os jovens e adultos depois, a ler. Grupos de senhoras aposentadas, todas elas de vida dura e escassos recursos, se transformaram em ‘avós conta-contos’: vão às escolas públicas contar histórias para as crianças. De escolas, a missão se estendeu a hospitais, centros comunitários, refeitórios de grupos de assistência social. E, ao mesmo tempo, a Fundação passou a realizar seminários de altos estudos literários e de incentivo à leitura, trazendo para esta província pobre e atrasada luminares de universidades do mundo inteiro. Resultado: muitas das ações levadas adiante, contra vento e maré, aqui em Resistencia passaram a ser adotadas em outras províncias argentinas.

É verdade que o cenário social do Chaco não mudou. Mas em suas escolas de pobres as crianças lêem, em seus colégios públicos os alunos lêem. E descobrem, através dos livros, que existe, sim, uma outra realidade possível, e que o desafio de todos é chegar até ela.