Os que mandam no mundo

Por Mauro Santayana, via  Jornal do Brasil

As grandes crises econômicas mundiais trazem o desemprego e a miséria, e atingem também os investidores. Houve milionários que, vítimas de sua própria ambição e dos especuladores, chegaram ao suicídio, como na queda vertiginosa da Bolsa de Nova York em 1929. Mas as grandes crises são “o sonho feito realidade para aqueles que querem fazer dinheiro”, como revelou um corretor de valores de Londres, Alessio Rastani, em entrevista à BBC, que, reproduzida pela internet, está surpreendendo o mundo. Ele afirmou também que havia sonhado três anos com uma recessão como a atual. Rastani é auto-identificado pelo seu site na rede mundial como hábil operador, consultor no mercado de capitais e conferencista que percorre o mundo, a fim de orientar os investidores. Ele declarou à emissora britânica que quem manda no mundo, porque manda nos governos, é o grande banco de investimentos Goldman Sachs.

Rastani não citou diretamente o jornalista francês Marc Roche que, no ano passado, publicou um livro forte, e sobre o qual os grandes meios internacionais de comunicação quase nada dizem, com o título de La banque:Comment Goldman Sachs dirige le monde (Albin Michel, Paris, 2010). Roche é, há mais de vinte anos, correspondente de Le Monde, na City de Londres, o que lhe possibilita acompanhar os grandes movimentos das finanças internacionais.

O livro demonstra que o banco americano conseguiu atuar junto ao governo de grandes países, mediante a infiltração de seus ex-dirigentes, ao mesmo tempo em que cooptou ex-governantes para participar de suas grandes decisões, em operação que, de acordo com o livro de Marc Roche – em entrevista à televisão, o escritor os chamou de imorais – sugere corrupção e suborno em escala global.

Entre outros, Marc Roche cita o atual presidente do Banco Central da Itália, Mario Draghi. Draghi, como representante da Itália, participa do board do Banco Central Europeu e é cotado para suceder a Trichet, na presidência da instituição. Foi vice-presidente e diretor executivo do Goldman Sachs para a Europa (e também diretor do Banco Mundial). Outro italiano, Mario Monti, é conselheiro atual do Goldman, para assuntos internacionais, e foi comissário da União Europeia para o mercado interno e para os assuntos de concorrência. Nesses cargos, Monti defendeu ardorosamente a divisão de todos os serviços públicos em empresas médias e sua privatização.

Em sua tática de recrutamento, Goldman Sachs cooptou também Otmar Issing, ex-diretor do Bundesbank — o Banco Central da Alemanha — e ex-economista chefe do Banco Central Europeu, para o seu conselho diretor. Dirigentes do Goldman ocuparam posições destacadas no governo norte-americano, e ainda ocupam. Robert Rubin, de sua diretoria executiva, foi secretário do Tesouro de Bill Clinton, de 1995 a 1999; Henry Paulsen, ex-presidente do Goldman, foi nomeado secretário de Tesouro de George Bush, em 2006. Ainda nos Estados Unidos: o atual secretário do Tesouro, Tim Geithner, escolheu, como seu chefe de gabinete Mark Patterson que, durante dez anos, foi o chefe dos lobistas do Goldman Sachs junto ao Congresso dos Estados Unidos.

Até mesmo na África, o Goldman tem os seus tentáculos. Olusengun Aganga, que dirigia o serviço dos hedge funds, foi nomeado ministro de Economia do atual governo da Nigéria. Tito Mboweni, presidente do Banco Central da África do Sul, de 1999 a 2009, foi contratado pelo Goldman como seu conselheiro internacional, em maio do ano passado. Como registra o autor do livro, o Goldman conseguiu manipular os governos, de Mandela a Bush. Um só ato mostra a capacidade de cooptação do Goldman Sachs. Quando secretário do Tesouro de Bush, seu ex-presidente, Henry Paulsen, decidiu que o Tesouro socorresse com 60 bilhões de dólares a seguradora AIG, falida pelas operações da bolha imobiliária. A primeira dívida da AIG a ser saldada, de 29 bilhões de dólares, foi exatamente com o Goldman Sachs.

odas essas revelações, não contestadas pelo Goldman Sachs, mostram como atuam as grandes instituições financeiras. Elas só podem assim agir, porque os estados nacionais – hoje chefiados, salvo poucas exceções, por servidores do neoliberalismo – renunciaram à sua responsabilidade essencial, de promover a justiça e impedir o saqueio dos bens comuns pelos criminosos, muitos deles de enganosa respeitabilidade acadêmica, como são os principais dirigentes do Goldman Sachs.

Como estamos no assunto, Wall Street continua cercada pelos “indignados” manifestantes de Nova York, que contam com o apoio de personalidades conhecidas, como Michael Moore, o incômodo cineasta de Farenheit 9/11 e o linguista Noam Chomsky. É um princípio ainda tênue, mas os movimentos sociais são como os rios: nascem em pequenas fontes e vão crescendo rumo ao mar. No Brasil, é ainda tímida a atuação dos intelectuais — e de todos os cidadãos – junto ao Congresso para uma necessária e rigorosa legislação reguladora do sistema financeiro, o principal beneficiário da política privatizadora do governo Fernando Henrique Cardoso.

E para continuar no assunto: a escultura, intitulada O dedo de Deus, de Maurizio Cattelan, irreverente artista italiano — um punho fechado, mostrando o dedo médio levantado, gesto obsceno em quase todos os países do mundo — havia sido retirada da frente da Bolsa de Valores de Milão pela prefeita Letizia Moratti. O novo prefeito da cidade, Giuliano Pisapia, de centro-esquerda, com o apoio dos “indignati” italianos, recolocou-a em seu lugar.

O Tea Party original e o nosso

Por Paulo Moreira Leite, via Época

Mede-se o grau de desenvolvimento político de um país pela transparência de suas disputas cotidianas. Neste sentido o universo  político americano é mais avançado do que o brasileiro.

Um bom exemplo é o Tea Party. Trata-se de um grupo de extrema direita fanatizado, que tem um respeito absoluto e reverente pelo mercado.

Diz acreditar que o indivíduo é a principal alavanca do progresso humano. Condena o Estado acima de quase todas as coisas — menos para realizar  guerras de conquista. Afirma, querendo ser levado a sério, que toda medida destinada a criar um regime de bem-estar social não passa de um esforço na direção de uma ditadura comunista.

É ridículo, como cultura política, e regressivo, como fenômeno histórico. A crise econômica dos EUA, grande parte provocada por essas idéias, é uma demonstração do caráter nocivo deste condomínio conservador. Mas é mais honesto do que ocorre no Brasil.

Nosso Tea Party é difuso, anti-social e não se apresenta como tal. Esconde sua visão de mundo atrás das bandeiras extremistas, que fingem não ser de direita nem esquerda.

Está presente nos partidos políticos, mas também em artigos da mídia e em gabinetes de alto poder econômico e decisiva influencia política.

Seu discurso considera o Estado é uma entidade mal-assombrada que só deveria existir para perseguir os desajustados e os inconformados. Combate toda idéia que poderia levar a uma melhoria na proteção social e denuncia qualquer esforço para diminuir a concentração de renda.

Agindo num país muito mais pobre e desigual do que o original americano, nosso Tea Party faz uma tradução adaptada e empobrecida da mesma retórica.  Procura se esconder atrás de causas universais para esconder que se move em nome de interesses bem particulares.

Nessa versão tropicalizada, alega que tudo o que sobrevive às voltas do Estado não é embrião de comunismo, mas fruto de um roubo. Como os originais americanos, nosso Tea Party adora o setor financeiro. Seus integrantes falam como se fossem anarquistas de direita mas, num tributo (sem ofensa) às mazelas nacionais, seus verdadeiros líderes e inspiradores tiveram vários flertes e até muito mais do que isso nos tempos da ditadura militar.

Em matéria de liberdades públicas, nosso Tea Party confunde liberdade de expressão com direito de venda. É contra todo e qualquer protecionismo, a menos que se destine a proteger seu mercado.

Mas alimenta uma doutrina contra uma intervenção dos poderes públicos, mesmo que patrocinada por autoridades escolhidas pelo voto popular, para modificar a distribuição de renda e assegurar benefícios aos brasileiros que não tem renda para adquiri-los. Acham que combater a desigualdade social é ir contra a natureza humana.

Por coerência, nosso Tea Party é contra um regime de saúde pública, que considera errado  num país grande e baixa renda per capta como o nosso. Os sistemas públicos tendem a nivelar as pessoas e, de seu ponto de vista, isso é ruim.

Os mais atirados dizem que o SUS é uma utopia socialista, inviável em função de nossa renda per capta — seguindo um raciocínio que leva a crença de que o salve-se quem puder deveria virar artigo da próxima Constituição.

Os mais preparados preferem a linha policial. Alegam que todo aumento de gasto nessa área será desviado e roubado. É irracional e irreal, mas funciona. Um número impressionante de brasileiros acredita nisso sem fazer contas simples.

É difícil saber quem rouba de quem quando se constata que nossa saúde privada consome 55% de todos os gastos com saúde do país mas só atende 25% da população. É um imenso e escandaloso programa de transferência de renda ao contrário. Todo dinheiro gasto com saúde pelo cidadão comum pode ser descontado do imposto de renda, privando o Estado de recursos que seriam úteis para a educação, para as obras públicas e até para a saúde. Mas estamos falando de ideologias, não de realidades.

Uma pessoa que tem um plano de saúde privado razoável irá gastar em torno de R$ 400 por mês ou mais.  São R$ 4800 por ano. Nem em dez anos deixaria uma quantia equivalente se tivesse de pagar uma contribuição de 0,1% em sua movimentação financeira como contribuição a saúde.

Continuaria tendo direito à assistência médica mesmo que perdesse o emprego e não tivesse um centavo no banco. E faria parte de um sistema onde aqueles que têm mais pagam mais. Pode não ser correto do ponto de vista da igualdade alimentado pelo Tea Party. Mas é o justo conforme o padrão ético de muitas pessoas e toda escola progressista de diminuição da desigualdade.

Com freqüência, sempre que tem de enfrentar uma cirurgia delicada o cliente de um plano privado tem de travar uma longa batalha para valer seus direitos, que nem sempre serão respeitados. Nem todos os remédios nem tratamentos que sua doença exige serão oferecidos de forma gratuita. Como acontece também no SUS, poderá ser forçada a lutar por eles na Justiça. Mas o cidadão do plano privado não acha que está sendo roubado quando paga sua mensalidade.

Tampouco fica inquieto quando seus médicos fazem greve para denunciar ganância patronal.  No fundo, recusa-se a acreditar numa realidade matemática: os planos de saúde só podem ficar de pé enquanto não precisam entregar os serviços que cobram. No dia em que você precisa mesmo desses serviços, é expelido dos planos, ou forçado a pagar mensalidades inviáveis para a maioria das pessoas da mesma faixa de risco. Não é maldade. É plano de negócios.

Um raciocínio parecido aplica-se a Previdência Social, cuja falência é anunciada periodicamente como uma fatalidade técnica — mas que tem apresentado uma contabilidade menos complicada ano a pós ano, graças a uma política oficial que faz o óbvio e apenas ele: defende os empregos formais, facilita o registro em carteira e multa a empresa que não cumpre suas obrigações.

Nesse terreno difícil, o Tea Party deixa no ar a sugestão de que a aposentadoria privada é uma alternativa séria e que a Previdência, quanto menos dinheiro tiver, menos roubará. O problema é que as previdências privadas até podem ser úteis para quem pode pagar por elas, mas todo analista sério sabe que nenhuma oferece os mesmos benefícios, pelo mesmo preço, como o INSS.

Há uma boa razão para nosso Tea Party assumir uma identidade esquiva e fugidia. Seu discurso pode até existir nos Estados Unidos, país com uma história muito diferente da nossa, onde a economia privada atingiu uma força sem paralelo na América ou no Velho Mundo. No Brasil, com uma condição histórica muito diferente, um grau de desigualdade maior e carências também maiores, o Estado oferece um padrão mínimo de assistência que não é desprezível, embora seja totalmente insuficiente. Nessa geografia, o Tea Party só pode atuar na sombra, procurando causas universais para interesses bastante privados.

Em busca da razão perdida

Caderno ENSAiOS publica excelente artigo do jornalista Mauro Santayana. Dividido em três partes, trata-se de uma análise instigante sobre a trajetória do intelectual na modernidade frente aos seus diversos desdobramentos políticos.

EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA, via Jornal do Brasil

Por Mauro Santayana

O presente sempre angustiou os homens, desde que há registros históricos, e sempre houve os que temiam o futuro, tanto quanto os que nele punham a esperança da espécie. Da mesma forma, não faltaram, e ainda não faltam, os que sonham com o retorno à improvável Idade do Ouro, que permanece arraigada na alma dos homens, e encontra a sua versão mais radical dentro das fronteiras do paraíso bíblico.

Sofrer e sonhar, esperar e temer, lutar e resistir, são as condições que o ato de viver nos impõe. A vida não é projeto dos deuses, nem condenação cósmica. A vida é feita pelos homens, e só por eles, e a história, com seus acertos e desatinos, não é bruxa, nem fada: ela é decidida, em cada minuto, pela vontade dos homens e pelos fatos que essa vontade determina.

O que torna mais pesada a angústia de nosso tempo é a magnitude dos problemas sociais. O mundo inflou nestes últimos 200 anos, com o consumo exacerbado dos bens não renováveis, pelo menos de acordo com os nossos conhecimentos atuais, e suas consequências. Uma coisa é resultado da outra: as descobertas científicas tornaram mais fácil a exploração da natureza e o aumento da população, mediante o aprimoramento da medicina, melhor nutrição, mais conforto. Infelizmente, tais conquistas da inteligência não se fizeram universais.

A fome e as endemias convivem com a ostentação e o luxo dos muito ricos. Embora em certas regiões do mundo a miséria seja estatisticamente maior, não há cidade imune da qual o sofrimento insuportável tenha sido expulso. Enquanto um só ser humano não tiver direito ao pão de seu dia, à dignidade de um teto para a noite, ao respeito de seu semelhante, o mundo continuará sendo inóspito.

Assim como, no século 18, alguns pensadores discutiam o envelhecimento das ideias do Renascimento (embora o termo só viesse a ser criado por Michelet bem depois, em meados do século 19), há algumas décadas que o Iluminismo vem sendo analisado por autores importantes. Alguns pensadores marxistas encontram, em seus postulados, os germes do totalitarismo, ao mesmo tempo em que os nazistas e os fascistas continuam a atribuir à Revolução Francesa (que foi a sua expressão política) a origem das ideias, que consideram desprezíveis, como as da igualdade, da liberdade e da imperfeita democracia moderna.

Seria bom que retornássemos ao Iluminismo, e examinássemos seus acertos e suas falhas. Consequência natural do Renascimento, o Iluminismo foi um dos grandes momentos da inteligência dos homens. Ele se iniciara no século 17, e estava associado ao crescimento da burguesia como classe emergente e aspirante ao domínio político dos estados europeus. Antes que os franceses lhe dessem o grande impulso com a publicação da Enciclopédia, obra titânica do esforço pessoal de Diderot, o Iluminismo já crescia com os ingleses Milton, Locke, Hobbes, que associaram suas inquietações humanísticas aos projetos políticos, sem os quais a filosofia é inútil diversão da mente.

Se fosse possível resumir o sumo da razão do Iluminismo, talvez a encontrássemos ainda no século 17, com a frase linear de Spinoza, quando, em seu Tratactus theologico-politicus, diz que, ao examinar a vida, o comportamento e as crenças humanas, é necessário non ridere, non lugere, neque detestare, sed intelligere. Não devemos rir, nem lamentar ou detestar, mas entender. O Iluminismo, ao separar a inteligência da fé e distinguir a ciência — ou seja, o conhecimento — da religião, foi a busca do entendimento, o retorno à filosofia prática dos grandes gregos.

A inteligência, tanto no Renascimento quanto no Iluminismo, esteve a serviço da política, em seu melhor e em seu pior sentido. É provável que a exaustão da inteligência, que encontrou o momento alto na Idade Moderna com a Enciclopédia e os excelsos pensadores do século 18, seja responsável pela assustadora crise dos estados contemporâneos.

No Renascimento, os príncipes se cercavam de intelectuais, os uomini d’ingegnio, como foram Dante e Da Vinci, da mesma forma que buscavam seus chefes militares, os condottieri, entre eles, Castruccio Castracani, um dos modelos de Maquiavel, e os lendários Sforza. Durante o Iluminismo, os pensadores não estiveram perto do trono, porque eles estavam, como servidores da razão, contra o Estado absolutista, principalmente na França dos últimos Luizes.

Para entender a anemia política dos estados de nosso tempo, é necessário examinar o desengajamento da maioria dos intelectuais de hoje, sem esquecer que a própria inteligência se encontra em crise.

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EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA (2), via Jornal do Brasil

As grandes revoluções humanas não surgem espontaneamente. Elas, de certa forma, existem como possibilidade desde o início da História, mas são contidas pelas forças reacionárias. As ideias que as suscitam permanecem latentes, na obra de um ou outro pensador, seja nos ensaios, no teatro, nas narrativas épicas ou na poesia. Em alguns momentos, ganham força, mediante a discussão e o debate, e triunfam, mesmo que, algumas vezes, de forma efêmera.

As ideias, sem embargo de sua energia própria, dependem da ação. Os intelectuais, dizia, sem muita justiça, um dos precursores do Iluminismo, Erasmo de Rotterdam, são naturalmente medrosos. Isso só é válido para uma minoria, e de menor dimensão. A regra tem sido outra. Foram numerosos os homens de pensamento que tombaram em pleno combate, nas prisões ou nas terríveis condições da clandestinidade.

Sem ir longe no passado, o século 20 foi exemplar nessa necessidade da inteligência em se fazer ação, como ocorreu na memorável resistência contra os nazistas, os fascistas e os franquistas — e na luta pela autodeterminação dos povos contra o totalitarismo imperialista. A política é a práxis da razão, e, sem ela, o pensamento permanece encapsulado na teoria, ou, seja, na contemplação.

O grande motor do século 19, o do fulgor do Iluminismo, foi L’Encyclopédie, dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Tratou-se de uma empresa, que nasceu com o interesse comercial de editores franceses — chefiados pelo maior deles, na época, Le Breton — empenhados na tradução da Cyclopaedia, dicionário universal inglês de Ephraim Chambers. Le Breton convidou D’Alembert e Diderot para a tarefa. Ambos entenderam que não bastava a tradução de um dicionário que, circulando desde 1728, já se encontrava perempto, e se limitava a uma erudição de natureza clássica, distanciada das inquietações práticas de 1747.

Se o dicionário de Chambers tratava das artes e das ciências, Diderot acrescentou, para a sua enciclopédia, os verbetes sobre os ofícios profissionais. Dedicou grande parte às ilustrações, que, sobretudo no caso dos ofícios, contribuíram para que a obra servisse como manual de instruções.

Perseguida pela Igreja, uma vez que era essencialmente materialista, e incluída no Índex; mal vista pela monarquia, por reivindicar as liberdades políticas, a Enciclopédia passou por inúmeras dificuldades e chegou a ser proibida. Diderot foi preso por algum tempo, D’Alembert desistiu de ser o coeditor, a partir do volume oitavo, e os últimos tomos foram impressos e distribuídos clandestinamente.

O custo era altíssimo. Quando relembramos que a composição, tipo por tipo, era manual, e as chapas, armadas uma a uma, em operação demorada, podemos imaginar o dinheiro necessário apenas para o trabalho tipográfico. Mais de 2 mil gráficos trabalharam durante os vinte e um anos de edição, transcorridos entre o primeiro e o último dos 28 volumes, 11 deles só de ilustrações.

A Enciclopédia foi empreendimento revolucionário, e disso Diderot tinha plena consciência. A publicação serviu para derrubar os pilares do poder feudal de uma nobreza ociosa e parasitária, que consumia a maior parte dos recursos obtidos com o trabalho dos franceses; serviu como fermento da Revolução Francesa e a derrocada da monarquia; combateu a Igreja, que, sócia privilegiada da opressão e monitora do pensamento, ameaçava os intelectuais com os dogmas e mantinha os néscios submissos, mediante a ameaça do inferno. Como as luzes vinham de várias fontes, Diderot escolheu para o subtítulo da obra a trilogia do inglês Francis Bacon, que assim resumia as operações da mente: Memória, Razão e Imaginação.

Diderot foi mais do que seu diretor intelectual. Coube-lhe buscar os subscritores — o que representava para cada um deles a aplicação de uma pequena fortuna — entre os ricos mais esclarecidos, os pioneiros da indústria e do comércio e alguns banqueiros, como o mais eminente financista de Paris, Jacques Necker, que viria a ser a figura chave na Queda da Bastilha. Durante muito tempo, os enciclopedistas foram acolhidos no salão de Madame Necker, onde as novas ideias eram livremente debatidas.

O autor de A religiosa  agiu, ao mesmo tempo, como pensador, militante político e ativo empreendedor. Usando recursos que hoje encontramos na internet, como a remissão dos assuntos a outros verbetes, a inclusão das fontes de informação e referências bibliográficas, o que hoje chamamos de hiperlink. O texto incitava à ampliação crítica da informação, com o fantástico resultado que a História registra. E a empreitada fascinou todos os que a ela se associaram. O caso mais notável desse empenho foi o de Louis de Jacourt, um intelectual muito rico e de grande saber, que se formara em teologia, em Genebra, ciências naturais em Cambridge e medicina, em Leiden, na Holanda. Jacourt, sozinho, redigiu um quarto de todos os verbetes da Enciclopédia, sem cobrar um centavo pelo seu trabalho. Ao contrário, contratou vários assessores, que o ajudaram na exaustiva pesquisa daqueles tempos, e lhes pagou com seu próprio dinheiro.

Mesmo quando sua distribuição teve que ser clandestina, a Enciclopédia era discutida em todos os salões. Suas ideias estimularam o aparecimento de novos pensadores, que se somaram à elite da razão daquele tempo, formada por homens muitos deles nobres, como foram Montesquieu, Grimm e Holbach. Eles se somaram a livres pensadores, como Voltaire, D’Alembert, Condorcet, Daubeton, Rousseau, Turgot e Quesnay, e a mulheres como Mme. D’Epinay, Sophie Volland, Mme Necker — e a notável proteção financeira a Diderot, de Catarina, a imperatriz da Rússia, para abrir o caminho do século seguinte.

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EM BUSCA DA RAZÃO PERDIDA (3), via Jornal do Brasil

O Iluminismo conduziu o mundo, durante o século 19 e a maior parte do século 20. A oposição que sofreu, no início dos oitocentos, com o Romantismo, foi débil, e só se manifestou de forma mais forte nas artes, sobretudo na literatura. Hegel e Marx, nas ideias sociais, ou seja, políticas, são dois dos maiores frutos do século 18. Um se seguiu ao outro, e de seu pensamento surgiram os grandes movimentos revolucionários do século passado. Apesar disso, os resultados mais espetaculares das luzes parecem ter ocorrido na ciência e na tecnologia.

O espírito do mundo moderno é o da ruptura de todos os limites, na investigação do Cosmos, na velocidade das comunicações e dos transportes, na duração da vida.

Galileu tem uma frase inquietante: “Muita prudência, muitas vezes, quer dizer muita loucura”. A razão, sendo o uso da mente para a construção da autonomia, já representa, em si mesma, uma violação da natureza instintiva da espécie: talvez nessa intuição, Chesterton tenha afirmado que “louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão” – o que significa entender que a aparente loucura pode também significar muita prudência.

No que se refere à política — que é a mais necessária das atividades humanas — o século passado foi o da exacerbação de um confronto milenar, que está nas glândulas da espécie, e que constitui o eixo das civilizações: o do egoísmo contra o altruísmo, dos ricos contra os pobres, dos fortes contra os débeis. É assim que poderemos ver em São Francisco de Assis a constatação de Chesterton — de resto um de seus grandes devotos — de que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não havia outra forma para que a sociedade de Assis do século 13 pudesse ver a conduta do jovem Bernardone, ao renunciar à vida confortável que a riqueza lhe permitia, romper com o pai, e lhe devolver as roupas luxuosas que vestia e, com o manto pobre de monge que o bispo de Assis lhe deu para cobrir a nudez, partir para outros atos de aparente loucura, nos quais se escondia a mais pura razão. No século 20 tivemos testemunhos desta conduta, tida como insana, na solidariedade radical, em nome do Humanismo — que é sempre cristão, ainda que se identifique como agnóstico ou ateu — e tanto mais cristão quanto menos acredite na recompensa eterna.

Foi assim que tivemos, entre outros, o forte testemunho de Simone Weil, nascida judia, convertida ao marxismo e, em seguida ao cristianismo, e que ao Vaticano conviria mais fazê-la beata e mártir do que conferir santidade ao espanhol Balaguer. Simone abandonou, ainda menina, as comodidades da família, viveu entre os oprimidos, quis participar da luta na Espanha, um acidente a excluiu da atividade revolucionária, e sua renúncia a viver melhor do que viviam os mais pobres a levou à morte prematura, aos 34 anos, com tuberculose. São loucos, como Francisco e Simone, e muitíssimos outros, anônimos, que, no decorrer da História, perdem tudo, menos a razão.

O Iluminismo, que significara um outro salto da razão, não só trouxe os movimentos de solidariedade, como não conseguiu impedir a evolução industrial, graças à inteligência técnica e a ascensão da burguesia capitalista, e a exacerbação do imperialismo britânico e do colonialismo europeu, e a submissão da maioria da população do mundo aos opressores. Em nome de equivocada interpretação biológica, surgiu o mito da superioridade racial, e levou à estupidez do fascismo e do nacional-socialismo, com as duas grandes guerras mundiais, os milhões de mortos, e os conflitos continuados, sempre conduzidos pelos mais fortes contra os mais débeis.

Entre a invasão da Etiópia pela Itália, em 1935, e recente intervenção militar na Líbia pelos países europeus, não há diferença essencial: é a arrogância dos que se acham superiores e que, por tal razão, se sentem com o direito aos bens naturais do mundo, sobretudo as fontes de energia, como o petróleo.

A luta contra o totalitarismo dos anos 30 convocou os intelectuais do mundo inteiro, a partir da Guerra Civil da Espanha. O engajamento da inteligência ainda continuou, na resistência contra os nazistas e, ainda mais dura, contra os capitulacionistas e traidores, como ocorreu na França, nas lutas contra os golpes militares na América Latina, no combate aos crimes cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã, no combate contra o novo racismo europeu. Embora muitos ainda permaneçam nas trincheiras da razão, o novo Liberalismo dos anos 80 conseguiu encabrestar a inteligência e afastá-la das preocupações políticas.

É assim que se explica que a França de Clemenceau e Leon Blum, de De Gaulle e Mitterrand, esteja hoje entregue ao pigmeu Sarkozy, e que os Estados Unidos de Roosevelt e Eisenhower, depois da tragédia dos Bush, assista à erosão veloz da grande esperança que foi Obama. Lembre-se a Espanha, condenada a se entregar novamente à direita, saudosista do franquismo, depois da claudicação de Zapatero. Não falemos na Itália, governada por um bufão, e, ainda assim, com a petulância de nos dar lições morais e recorrer ao Tribunal de Haia contra o exercício da soberania brasileira.

Enfim, o mundo, sendo sempre o mesmo, piora — e reclama nova articulação da inteligência para a restauração do compromisso da espécie humana com sua própria sobrevivência, que os materialistas atribuem à razão, e os cristãos radicais identificam na santa loucura do amor solidário, como o do Poverello de Assis.