Novo ciclo

A distinção entre passado, presente e futuro

A distinção entre passado, presente e futuro

Comunicado importante: Caderno Ensaios termina hoje as suas atividades.

Foram três anos e oito meses praticamente ininterruptos com mais de 300 postagens, nas quais procuramos atender a algumas questões importantes referentes a arte, cultura e política.

Trata-se de uma decisão duramente amadurecida, que ocorre em meio a outros compromissos profissionais. Estes nos levaram a ponderar sobre prioridades e condições de trabalho, não restando lamentavelmente muitas alternativas.

No entanto, o autor deste blog continua os seus trabalhos na revista eletrônica Outras Palavras.

Ali você encontrará a minha coluna em que contribuo com os meus artigos e crônicas.

Saudações!

Apareçam por lá!

Theotonio de Paiva

Para afinar a sensibilidade política

Por Theotonio de Paiva

O batizado de Macunaíma, Tarsila do Amaral

O batizado de Macunaíma, Tarsila do Amaral

Os mitos, por vezes, dizem infinitamente mais sobre um povo, um país, do que a sua própria história. Em sua construção de uma outra verdade, trazem uma provocação terrível que nos obriga à reflexão. A auto-imagem, habilmente construída pelo senso comum, de que éramos um povo acovardado, incapazes de defender os seus direitos mais básicos, parece ter se instalado em nosso tecido social como uma doença auto-imune. Essa expressão nos ocupa corações e mentes, desde muito tempo, a ponto de imaginá-la como natural.

Referendada por toda a sorte de governos, lideranças políticas, ingênuos, raposas espertas, intelectuais perdigotos, jornalistas inescrupulosos, grandes empresários, a construção desse imaginário doentio insinuou-se como uma metáfora da gente brasileira. Como se contra a força não existisse nenhuma resistência e aos homens não fosse dada a capacidade de pensar e escolher.

Num signo curioso, a brava gente é apresentada como um povo indolente, preguiçoso e sem caráter. Deturparam tudo. Até a imagem do herói nacional, Macunaíma, que Mário de Andrade inventara na sua rapsódia, a partir das lendas indígenas do alto Amazonas.[1] Na verdade, a figura do herói dizia uma coisa, mas foi retorcida como uma camisa, e virou outra realidade substancialmente diversa.

E o que pensava o escritor modernista? Ele via emergir um sentimento do trágico ao se dar conta de uma nação sem alma, cujo povo, o brasileiro, não teria “caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. [2] Não é difícil perceber que nada tinha a ver com a ideia de um sujeito escroque e salafrário.

Não há dúvida de que esse traço perverso de dominação vocaliza com finura a noção de que “uma nação não é somente uma entidade política, mas algo que produz significados – um sistema de representação cultural”.  [3] De todo modo, aquela condição macunaímica, apropriada sem grandes esforços, pelos setores hegemônicos, parecia reservar uma espécie de conformismo genético que se estenderia para as gerações futuras. De modo inabalável, desenhava o perfil previsível de um povo.

No entanto, essa mesma representação trazia algumas perguntas incômodas dentro de si: em que base se sustentava? Teria sido muito difícil conhecer as falas subterrâneas desse mesmo povo? Que insurgências esse povo alimentava? A sua explosão, enquanto potência, contida em jaulas invisíveis, como em diversas ocasiões se deu a perceber, de que maneira fora tragada? Como misturaram todas essas possibilidades para gerar uma resultante próxima de zero, confusa, despolitizada? E, curiosamente, de que maneira, como num passe de mágica, teria se insurgido do nada?

As noções retiradas de uma história pouco difundida e sorrateiramente embaralhada provavelmente não deixavam entrever os mecanismos de construção empregados. Os olhos atentos, pegos no passado, o mais cuidadoso possível em não apagar as diferenças e contradições, certamente indicariam que aquilo a que chamam de violência não estava por vir. Era algo intrínseco em nossa formação social.

Novamente, a corda do medo se soltou. Embora sejam inegáveis as manipulações e infiltrações perversas de grupos orquestrados, e um deslumbramento midiático de setores médios da sociedade, não há como deixar de identificar que as perdas irreparáveis, no acúmulo dos séculos, foram contabilizadas: não rendiam dois tostões. Basta imaginar a menina que olha pela janela e vê o rio que margeia a sua casa, coberto de dejetos, praticamente sem vida, com automóveis, entulhos, objetos roubados, cadáveres, muitos cadáveres, e um cheiro pavoroso que as narinas delicadas são incapazes de entender como uma produção humana.

O homem cordial, magistralmente intuído por Sérgio Buarque de Holanda, foi grotescamente pervertido. E repetido até explodir os tímpanos, enquanto os “movimentos reformadores” sistematicamente ignoraram a “a grande massa do povo”, com uma ausência quase total de uma “concepção da vida bem definida”, que tivesse amadurecido e, somente aí, pudesse ser implementada. [4]  Muito ao contrário, impuseram as suas concepções e doutrinas, numa predisposição arbitrária e não-consensual.

Mas inquieta, sobretudo, as motivações que insistiam na navegação rio acima da correnteza. Como não compreender que a idéia da cordialidade não abarca apenas “sentimentos positivos e de concórdia”? [5] Era do homem que falava ao coração que o “paulista” queria dizer. Em suas explosões de fúria, em seus gritos, seus desmandos, suas palavras desencontradas ao perjuro, embora doce e meigo com os seus pares e confrades. Esse era o senhor do nosso mundo. Esse é o senhor do nosso mundo.

E seria tão mais fácil entender o óbvio. O sublime pressupõe trabalho.

No entanto, apesar de dizerem muito a respeito de nossa cultura, os mitos sabem encobrir camadas arqueológicas de outros saberes e práticas. Assim como, sabiamente, em nosso comodismo maroto, nos tripudiam e nos enganam.

Nesse sentido, algumas lendas mais encobriam do que revelavam da própria idéia de Brasil. Historicamente tivemos no país uma série de revoltas, movimentos aparentemente reformadores ou não, manifestações, quebra-quebra, atos políticos os quais, em seus mais diversos momentos, procuraram alguma transformação social. Mas não foi só isso. Igualmente utilizaram a força de suas gentes para empregá-las numa espécie de resistência social. Resistência à transformação da própria sociedade.

Por outro lado, a nossa formação social foi construída sob o reino colonial, por meio do império da casa grande e da senzala, muradas pelas pedras rochosas da inquisição. A nossa bandeira, diziam, tinha o verde das matas e o amarelo do ouro que nos roubaram. No entanto, confirmava uma dimensão histórica absurdamente distinta.

Ora, distante daquele ideário romantizado, o pendão da tua terra, que a brisa beija e balança, expressa as cores de duas dinastias: a dos Braganças, com o verde daquela família real portuguesa, e, através do amarelo-ouro, simboliza os Habsburgos, da Casa da Áustria. Nenhuma referência aos primeiros donos da terra e silêncio aos negros e seus mais de três séculos de escravidão e dor. Nada.

O fato é que reinterpretaram de tal forma aquelas cores para as suas dores serem insuportavelmente mais felizes.

Aliás, reinterpretar é um verbo curioso, que as instâncias de poder parecem conjugar com perfeição. No entanto, é importante deixar claro, essa tal relação com uma percepção crítica de um símbolo considerado “sagrado”, jamais existiu em nosso verde-amarelismo, pois operaram sempre com aquele sistema de representação cultural que lhes convinha. Como narcisos às avessas, eles hoje brincam pelas ruas de reinventar a concepção da história. Assim, a cada hino, nos obrigam a atualizar o rito de louvor à nossa dívida imorredoura com o colonizador europeu.

O medo, a força, o gesto terrível, esses sim, fizeram parte da nossa constituição primeira. E se mantiveram como uma expressão intrínseca, fundamental, extasiada a cada novo rubor patriótico. (É importante ter claro e não confundir pátria com nação; patriotada, como já ensinavam os modernistas, com projeto de país. São coisas distintas, que só duramente nos é dado a perceber.)

Enfim, temos um poder de Estado, não de governo, que atua com rara competência, por meio da sua força policial. É importante observar, leitor amigo, a sutilíssima e machadiana diferença.

Com efeito, esse mesmo Estado encontra enormes dificuldades em reconhecer o seu povo. A não ser quando ele se aquieta enquanto massa de manobra, ou torcidas organizadas em frente a aparelhos de tevê, ou, ainda, na condição de dóceis rebanhos, capazes de doar a própria vida por aquele que melhor dramatizar um sentido para a sua existência.

No entanto, grandes parcelas da população são tratadas de uma forma imbecilizante, como se a discussão política fosse um mal. Talvez seja mesmo, é fato reconhecer. Nada é mais inoportuno do que pensar. E não é mais oportuno conceber o povo como tolo e infantil? Todos os governos ditatoriais pensaram assim. Todos, sem exceção.

Como dizia aquele pernambucano, já falecido, ao povo, basta estar submisso e aceitar um “governo másculo e corajosamente autocrático”. [6] Ou, dito de outra forma, se este cardápio não convier, cabe ao mesmo povo ser sustentado através do sadismo do mando, conforme reza a tradição conservadora no Brasil.

E, em nome de uma pátria e de um povo, que só existe na miragem dos homens, permanecerem fiel aos cultos masoquistas e sentimentais.

Importante notar que essa expressão de uma idéia de povo, não foi construída ao acaso. Foi necessária muita inteligência, uma dose refinada de maquiavelismo, e o emprego racional de uma força bruta para fazer voltar a roda da história e seguidamente conformar leis e constituições, em proveito das oligarquias e pretensões das (várias) metrópoles.

Os exemplos são inúmeros. Nesse sentido, no início do século passado, após a conquista da anistia, pelos marinheiros da revolta da chibata, que sofriam inúmeros castigos e penalidades, já objeto de reflexão aqui, neste site, os oficiais ordenaram o desarmamento dos navios e expulsaram dezenas de ex-amotinados, desrespeitando a concessão dada pelo próprio Estado. Há um desdobramento terrível com várias questões envolvidas, culminando com a notícia de mais de trezentos mortos. A figura de Tiradentes, o único homem do povo, num levante de poetas e donos de terra. Ao redor do seu pescoço, uma corda pendurada acertava a vingança do poder imperial. Estraçalhado os seus membros, depois de morto, salgariam a terra, com a anuência forçada do povo, obrigado a concordar de antemão com tudo aquilo. Ao vê-lo passar, deixavam-se estar, com os braços sobrepostos à bandeira de Portugal, no peitoril das suas janelas.

Os terrores de Canudos, com os seus remanescentes, após a devastação implacável; as experiências dos quilombos que transcendem em muito ao passado escravista; os relatos de Graciliano Ramos nas prisões do Estado Novo e tudo o que essa experiência inspirada no fascismo italiano significou; a Revolta dos Malês, em Salvador, na Bahia do século XIX; bem como aquela que ficou conhecida com a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, magistralmente reinventada por Lima Barreto no seu Recordações do Escrivão Isaías Caminha. E as seqüelas esfumaçadas pelas visões do inferno que os porões da ditadura ofereciam a empresários de vários ramos de negócio, cujos estímulos aos seus fetiches, naquela liturgia servida pelos jornais da época, contavam-se como sagração de um novo tempo.

Atualmente, num final de outono, início de um inverno nesse país tropical, em que as estações são pouco delineadas, constata-se um sentimento fascista que se nutre da insatisfação popular. No entanto, é importante, como disse um jovem jornalista, saber afinar a sensibilidade política. A nossa e a dos outros, pois do contrário é fácil. A grande massa vive uma indignação histórica. As suas artérias estão obstruídas como as das ruas e avenidas. As contradições se avolumam.

Por conseguinte, há uma incrível dificuldade de percepção dessa situação emblemática. Por todas essas condições, gerou-se um estado de aparente letargia enquanto os termos difusos são processados em condições encobertas pela exaltação lírica do povo. Muito tempo de falta de consciência política produziu uma ferida aberta descomunal. A água estava represada, turva, e agora mais gente veio para as ruas do Brasil. E terminou o tempo de se vender versões e ilusões fáceis.

Talvez possamos com isso compreender esses significantes como capazes de produzirem novas verdades, algumas profundas e duras, sobre a nossa trágica história, acobertada docemente pelo manto de uma carnavalização mal-compreendida, ao expurgar a violência e o caráter irreverente do cômico. Talvez, com isso, amadurecemos a ponto de promover uma discussão sobre algumas questões de fundo. Em especial, aquelas que ocultam as razões da violência e da insensibilidade política, sustentando, desde o Brasil colônia, estruturas sociais e modelos de exclusão.

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Este trabalho é dedicado à equipe de jornalismo e produção da Pós TV [http://www.postv.org/].


[1] O lendário foi recolhido inicialmente pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. Publicado em 1924, aparece como Mythen und Legenden der Taulipang und Arekuná Indianer.

[2] Andrade, Mário de. “1º Prefácio”. In: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 217.

[3] Hall, Stuart. Identidade Cultural. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, Col. Memo, 1990, p. 54.

[4] Holanda, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 160-1.

[5] Idem, p. 205.

[6] Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 41a. ed. São Paulo, Record, 2000, p. 123.

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O trem da história

Sonho de consumoPor Celso Vicenzi*

De tempos em tempos, Florianópolis costuma sediar encontros para debater o sistema de transporte e o que fazer para melhorar a mobilidade urbana. Nossas autoridades adoram posar de planejadores modernos. Há muitas soluções possíveis, sem dúvida, mas a melhor delas foi inventada no século XIX. Chama-se trem. Na Europa, nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos, há de todos os tipos e modelos, principalmente a diesel e elétricos. Alguns circulam até com pneus de caminhão. Andando na superfície ou embaixo da terra, são um meio de transporte imprescindível para médias e grandes cidades.

Em Lisboa, bondes – ou “elétricos”, como denominam os portugueses – dividem o mesmo espaço das ruas com carros e ônibus. Sem conflitos. E ainda tem o metrô.

A cidade do Porto, ainda em Portugal, tem praticamente o número de habitantes de Florianópolis, e possui 60 quilômetros de linhas férreas em superfície – em boa parte junto com os automóveis – e nove quilômetros subterrâneas. Por que cidades como Porto e centenas de outras conseguem construir linhas ferroviárias viáveis e no Brasil se aceita a eterna desculpa de que o custo é muito elevado? Quanto custam os engarrafamentos para o país? A poluição? O gasto de combustível? Os acidentes de trânsito? As mortes no trânsito? Os feridos mutilados para o resto de suas vidas? Isso sem falar no tal “custo Brasil” para o transporte de mercadorias. Agora nossas autoridades, políticas e empresariais,  descobrem a urgência de uma “ferrovia do frango” para viabilizar toda uma cadeia de produção agropecuária. Há muito tempo, perdemos o trem da história.

Algum dia teremos que parar de promover debates “marqueteiros”, parar de apresentar maquetes que nunca saem das mesas e começar a implantar mais ferrovias, transporte aquaviário e vias rápidas para ônibus. E pagar o preço pelo atraso. Vai custar caro, sim. Mas vamos lamentar até quando? Até quebrar o país e inviabilizá-lo econômica e socialmente? Pequim tem hoje 442 quilômetros de linhas de metrô e começou a construí-las em 1965. São Paulo deu início logo depois, em 1974 – mais ou menos na mesma época da Cidade do México (1969). Hoje, os paulistanos dispõem de pouco mais de 70 quilômetros. A capital mexicana tem 200 quilômetros. Os custos são elevados tanto aqui quanto lá. Mas eles fazem, nós vamos ficando pelo caminho. Até mesmo em rodovias. No Brasil, apenas 12,9% das rodovias são pavimentadas. Na Argentina são 30%, no Chile 20%. Melhor nem comparar com a Índia (47%) ou México (50%).

Os trens cruzam os Estados Unidos de norte a sul, de leste a oeste. Europa e América do Norte possuem 70% das ferrovias do planeta. Trens que andam entre 200 e mais de 400 km/h e já competem com os aviões como opção de transporte rápido. Numa única estação de trem – Termini – em Roma, há 29 plataformas que ligam a capital romana às principais cidades do país. Há linhas na Europa que atravessam países. E nem é preciso mencionar a ligação Paris-Londres, que se dá ao luxo de ter 50,5 quilômetros de túneis embaixo do mar – atravessando o Canal da Mancha.

Até quando ouviremos a desculpa da falta de dinheiro? O Brasil é a oitava economia mundial. Países com PIB muito inferior possuem infraestrutura de transporte bem mais organizada. Por aqui, sobra desperdício. Nos damos ao luxo de ter um potencial de 40 mil quilômetros de vias navegáveis e utilizamos apenas 10 mil quilômetros. Temos 8 mil quilômetros de costa marítima, uma das maiores do mundo – ainda pouco usada.

No subsídio a automóveis, táxis e motos, o Brasil gasta a cada ano entre R$ 10,7 bilhões e R$ 24,3 bilhões – ou 86% de todos os subsídios das três esferas de governo (Manoel Schindwein, www.desafios.ipea.org.br). Sobra para o transporte público apenas 14% – ou algo em torno de R$ 2 bilhões. Em resumo: concedemos subsídios para aumentar os engarrafamentos nas  médias e grandes cidades e, com isso, gastar cada vez mais em duplicações de ruas, avenidas e rodovias, túneis e viadutos.  Sem falar em desapropriações para abrir espaços à sua majestade, o automóvel.

Está na hora de debater a quem pertence o espaço público. A toda a população, evidentemente. No entanto, apenas 20% dos usuários das vias públicas das grandes cidades são responsáveis pela ocupação de 80% delas. O espaço público foi privatizado para o automóvel, enquanto a maior parte da população, que não tem dinheiro para motos e carros, gasta cada vez mais tempo para ir de casa para o trabalho, em ônibus e trens precários. A ordem, na lista de prioridades, precisa ser alterada. Ônibus devem ter corredores livres. Ciclovias e linhas de trem — principalmente de superfície – precisam ser criadas e/ou ampliadas. Se duplicam e quadruplicam vias, por que nunca acham espaço para trens e bicicletas?

Em Londres, paga-se para andar de carro no centro. Em Cingapura, para comprar um carro é preciso provar que se tem onde estacioná-lo e ainda pagar uma taxa de US$ 11 mil para um período de 10 anos. O uso do automóvel precisa ser desestimulado, ao mesmo tempo em que se aumenta a eficiência e a comodidade do transporte público. Não há mágica. No espaço público, a prioridade deve ser do transporte público.

E, se não quisermos perder novamente o trem da história, é melhor começar logo a pôr o país nos trilhos. Literalmente.

* Celso Vicenzi é ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia (1985), com passagens por rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Lançou Gol é Orgasmo, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul.

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Virada política

Brasília

Brasília, no dia 17 de junho de 2013

por Lincoln Secco*

O Brasil mudou. Excetuadas as passeatas festivas ou marchas evangélicas, desde a Campanha pelo impeachment em 1992 não havia manifestações de rua com tantas pessoas simultaneamente em várias cidades do país. É verdade que as atuais não se comparam em número, finalidade e abrangência com as Diretas Já, que ainda continuam sendo o maior movimento de massas da história do Brasil (embora ainda não saibamos a amplitude que os protestos atuais poderão tomar). Mas elas são o quarto movimento de politização em massa dos últimos trinta anos.

No primeiro deles, as greves do ABC em 1978-1980 permitiram a criação do novo sindicalismo, do MST, do PT e da CUT. O PT questionou a estrutura tradicional dos partidos comunistas e foi em seus primeiros anos uma verdadeira federação de núcleos e movimentos com grande autonomia em seu interior. As greves foram derrotadas, mas o PT sobreviveu e cresceu.

O segundo momento foi uma Revolução Democrática que pôs fim ao Governo Militar. O processo começou pela campanha das diretas, mas foi filtrado pela lógica eleitoral que deu ao PMDB um papel proeminente na vida política. A última tentativa de se opor àquela reação conservadora do PMDB foi a campanha da Frente Brasil Popular em 1989. O saldo organizativo foi a constituição do PT como alternativa eleitoral radical de poder.

O terceiro momento (o Impeachment) devolveu à UNE seu papel de liderança dos movimentos estudantis, mas as lideranças se contentaram com a simples troca do presidente Collor pelo seu vice Itamar Franco, o que acabaria permitindo ao seu Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso se tornar depois presidente.

Vimos que nos três momentos houve saldos de organização, mas logo encapsulados pelas forças conservadoras. Durante a década neoliberal dos anos noventa houve um esvaziamento das ruas e o declínio da militância partidária, como se pode constatar pela História do PT. Ainda assim, aquele partido manteve o controle das principais organizações sindicais e movimentos sociais surgidos nos anos 1980.

Quando o PT foi jogado no canto do ringue durante os escândalos de 2005 a Direita midiática esperava manifestações populares que nunca aconteceram. Lula governou oito anos sem enfrentar uma situação como a atual.

Mas agora a política mudou. Fatores internacionais (crise de 2008, Primavera Árabe, movimento dos indignados), aliados a transformações tecnológicas que permitem a ação em rede e a comunicação em tempo real por telefones móveis também respondem pelas mudanças. Mas nada disso aconteceria se o PT houvesse mantido sua hegemonia nos protestos de rua como acontecia antes.

Burocratizado, governista, ele não demonstrou capacidade de se inovar e voltar às ruas. Mantém uma estrutura invejável, um líder carismático e o sólido controle de sindicatos e movimentos sociais, mas não são estes que convocam as manifestações. E por mais que tentem, seus concorrentes de extrema esquerda também não controlam nada.

Na Cidade de São Paulo a tomada espontânea das ruas em diferentes pontos da cidade não se compara a nada antes ocorrido. As pessoas simplesmente se apropriaram do que deveria ser delas: o leito carroçável, o direito de se manifestar e de andar à noite com os amigos em segurança. Afinal, não há melhor segurança do que multidões nos espaços púbicos. O que elas fizeram ainda não tem caráter de permanência, mas decerto a tarifa zero permitiria um pouco de trabalho, diversão e arte todos os dias. A forma fez-me lembrar a virada cultural paulistana. Só que agora se trata de uma virada política.

A história nos ensina que cada movimento destes politiza de uma só vez milhares de pessoas. Elas não aprendem com teorias, mas com ações. Só que depois as teorizações, o aprendizado em coletivos permanentes é que consolida o movimento. Daí a pergunta essencial que não se põe agora, mas se colocará num futuro próximo: qual o saldo organizativo destas manifestações?

Se elas terão influência eleitoral futura é o que menos importa. A Direita Midiática já começou vasta operação para se apossar do movimento de massas. Mas ela não terá sucesso porque nada tem a oferecer. As pessoas sabem que ela não apóia nenhuma das reivindicações do Movimento Passe Livre. Mas a vigilância do MPL deve ser redobrada e ele não pode permitir que a massificação dos atos seja submergida na oposição oficial partidária.

O PT também se vê pela primeira vez em sua história confrontado por um movimento de massas. Por mais que militantes petistas e até políticos estabelecidos apóiem, ainda que tarde, as manifestações, é inegável que em São Paulo o aumento de tarifas de transporte determinado por administração do partido foi o estopim do movimento. O PT não é mais o dono das ruas, mas ninguém é.

Os partidos de ultra-esquerda cometeram o erro de nascer cedo demais como rachas internos e sem o batismo que só agora as ruas poderiam ter-lhe oferecido. O perigo é uma manifestação como a atual ter sua voz (como já acontece) ser canalizada pela mídia conservadora que rapidamente percebeu que podia virar o jogo para não perder mercado.

Que os partidos continuam importantes na rotina eleitoral e que haja diferenças entre PT e PSDB pode não ser a crença de vários partidos de esquerda, mas é a de milhões de beneficiários das políticas sociais, do aumento do emprego e do salário mínimo que o PT implantou no Brasil.

O PT é melhor do que o PSDB evidentemente. Só que este partido não pode contar mais com apoio militante que não seja profissionalizado. Suas políticas sociais já dormem sob um cobertor curto que ao se puxar para cobrir a cabeça, os pés ficam de fora. É que quando as pessoas conquistam direitos, elas querem mais. Se a ousadia (ou mesmo o cálculo eleitoral que, afinal de contas, tem sido a única coisa de interesse para seus dirigentes) fizesse o PT defender a tarifa zero, ele criaria o seu segundo bolsa família no Brasil.

Mas o futuro dessa geração nova que vai às ruas diz respeito a outra coisa. Se os partidos saberão interpretar o seu desejo é problema deles. O que o Movimento do Passe Livre apontou é uma questão maior: poderá a autonomia das ruas se expressar em novas formas de organização ou será enjaulada no discurso dos donos da Grande Imprensa?

* Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP

Este texto foi publicado originalmente no Viomundo

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