Cidades: commodities para consumo?

O Caderno ENSAiOS reproduz entrevista do antropólogo Marco Antonio Mello, coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana (Lemetro) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ,  publicada originalmente na edição desse mês do Jornal da UFRJ.

Trata-se de um depoimento extremamente lúcido, prestado ao repórter Coryntho Baldez, sobre as grandes questões de uma metrópole como o Rio de Janeiro.

Dessa maneira, o blog procura dar conta de um dos seus principais objetivos: articular o pensamento da academia com a grande rede. Boa leitura.

Marco Antonio Mello

Marco Antonio Mello

Da reforma urbana do prefeito Pereira Passos, no início do século XX, até os atuais projetos de revitalização de bairros decadentes, o Rio de Janeiro vem sendo produzido com o deslocamento dos pobres de áreas tidas como nobres. Foi como alternativa à captura da cidade pelo projeto de “modernização capitalista” que surgiram e cresceram as favelas da cidade, na análise do antropólogo Marco Antonio Mello, coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana (Lemetro) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ.

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, o pesquisador explica a origem do termo favela – “que passa a ser definida sempre negativamente em relação à cidade formal” – e afirma que as relações entre esses territórios e o asfalto estão mais polarizadas. “Antes, não havia uma fronteira tão simbolicamente estruturada em torno do medo e da ideia de ‘eles e nós’”, avalia Marco Mello, doutor em Antropologia, com  pós-doutorado em Sociologia na Universidade de Paris X-Nanterre.

Segundo ele, há uma produção deliberada de certa imagem negativa das favelas por parte da imprensa – “os jornais pendurados nas bancas são espantalhos urbanos” – que contribui para criminalizar os seus moradores.

Especialista  em  Antropologia e Sociologia Urbana, Mello critica, ainda, o retorno da política de “remoção” para a realização de lucro do capital  imobiliário e do entretenimento e ressalta que grandes cidades do mundo, como o Rio de Janeiro, estão se transformando em commodities.

Jornal da UFRJ: Em maio, o Laboratório de  Etnografa Metropolitana realizou um Colóquio comemorativo dos 50 anos de publicação do  estudo Aspectos Humanos da Favela Carioca, que será objeto de reportagem na nossa próxima edição. Essa pode ser considerada a primeira pesquisa acerca das favelas no Brasil?

Marco Mello: Essa foi realmente a primeira grande pesquisa empírica realizada nas favelas do então Distrito  Federal. O estudo foi feito por encomenda da família Mesquita, dona do jornal O Estado de São Paulo, que contratou a Sagmacs, uma empresa de pesquisa  criada na França pelo padre dominicano Louis-Joseph Lebret. Para fazer o levantamento, essa empresa se associou ao professor e sociólogo José Artur Rios. Depois de finalizada, O Estado de São Paulo publicou a pesquisa na íntegra, em duas edições, em 1960.

Jornal da UFRJ: Na época, eles se defrontaram com que tipo de problema para levar adiante esse empreendimento?

Marco Mello: Muitos. Um deles era a rejeição do ensino universitário à pesquisa empírica e ao fato de um sociólogo se apresentar no espaço público oferecendo um serviço, uma expertise. Isso parecia incongruente com o que se professava nas salas  universitárias. Outro  problema era a inexistência, no Rio de Janeiro, de uma massa crítica de estudantes, de jovens pesquisadores, capacitados a trabalhar com a chamada pesquisa empírica. Por isso, José Artur Rios foi a São Paulo, na Escola Livre  de  Sociologia  e  Política,  coordenada pelo sociólogo norte-americano Donald Pearson, para contratar profissionais que desenvolvessem essa metodologia da pesquisa empírica proposta, no início dos anos 1950, por Joseph Lebret.

Jornal da UFRJ: E qual é a importância de Lebret para a compreensão da cidade contemporânea?

Marco Mello: Ele foi autor do primeiro manual de pesquisa urbana em língua francesa, que inclui não apenas indicadores econômicos, mas também sociais. Isso era, até certo ponto, uma grande novidade nos quadros de uma Sociologia muito mais preocupada com o desenvolvimento econômico.

Jornal da UFRJ: Acerca das origens das favelas no Rio de Janeiro, há alguma relação entre a chamada modernização capitalista  promovida  pela reforma de Pereira Passos, no início do século XX, e a ocupação dos morros pela população de baixa renda?

Marco Mello: O engenheiro Pereira Passos estudou no antigo Instituto Politécnico, no prédio do atual Instituto de Filosofa e Ciências Sociais (IFCS), onde estamos fazendo essa entrevista. Ele foi um homem muito bem articulado acadêmica e tecnicamente. Passou muito tempo na França estudando as gares (grandes construções em  ferro, aço e vidro) e os sistemas de transporte ferroviário, que constituíam o grande exemplo de modernidade e racionalização da vida nas cidades. Pereira Passos, que também representava os interesses capitalistas e a especulação imobiliária, é nomeado prefeito por imposição do Clube de Engenharia. Durante o seu mandato, no quadriênio 1902 a 1906, o Rio vive um processo chamado de renovação urbana associado à reforma sanitária.

Jornal da UFRJ: Pereira Passos recebeu carta branca de Rodrigues Alves para fazer essa reforma?

Marco Mello: Sim, ele inclusive  impôs uma  condição a Rodrigues Alves para aceitar o cargo de prefeito: a de que não precisasse consultar a Câmara Municipal. Obteve a concordância do presidente e passou a promover  essa  grande  reforma urbana no Rio,  inspirada na que  foi realizada  em  Paris, na  segunda metade  do século XIX, pelo então prefeito Georges-Eugène Haussmann, nomeado por Napoleão III.

Jornal da UFRJ: Esta reforma estava vinculada à ideia de higienizar a cidade, o espaço público, e afastar os moradores pobres das chamadas áreas nobres?

Marco Mello: Exatamente. Era um projeto que estava ligado à reforma sanitária, promovida por Oswaldo Cruz, que muito cedo enveredou pela discussão da chamada Medicina  Experimental, a partir das descobertas de Pasteur na área da Microbiologia. Ele implanta a vacinação obrigatória, que sofre resistência dos positivistas, que eram contrários ao aumento do poder de polícia do Estado. O higienismo é muito importante posto que, com Pasteur, houve uma mudança na concepção do  laço social. As  fronteiras entre público e privado são alteradas radicalmente. Entre os indivíduos, que aparentemente eram mônadas separadas, passa a haver continuidade, que é dada pelo inimigo de dentro, os micróbios. Então, o Estado vai reivindicar acesso às áreas que ele jamais tinha pensado em entrar, o que significa dizer que o poder de polícia do Estado aumenta significativamente.

Jornal da UFRJ: E o que isso representou?

Marco Mello: Uma presença superlativa do Estado na vida das pessoas, por meio dessas políticas de saúde, algo que não era bem visto pelos positivistas e grande parte dos republicanos. Com a reforma urbana, vem, então, o chamado “bota-abaixo”, que se dirige a um sistema construído e antigo, os chamados cortiços e casas de cômodos, que são associados à insalubridade. Todo o modelo  de  vida  que  era  peculiar  nessas habitações também vai ser banido do centro urbano. É como se a política de renovação urbana associada ao sanitarismo pudesse exorcizar todo o mal da cidade.

Jornal da UFRJ: E houve um aumento da ocupação dos morros com a expulsão das pessoas que moravam em cortiços?

Marco Mello: A reforma urbana operada por  Pereira Passos altera a morfologia urbana e social da cidade. Certamente, houve maior ocupação dos morros, que foi uma das alternativas para a população atingida pelo “bota-abaixo”. Ainda não existia o termo favela, que era uma fava pequena, como o feijão, que existia em um dos morros do arraial de Canudos (BA). Quando os combatentes de Canudos vêm para o Rio de Janeiro, eles vão para o morro da Providência. No entorno desse morro, inclusive, havia muitas chácaras de famílias abastadas, entre elas a família que abrigou Machado de Assis. Era uma área de gente que morava bem. Esses  ex-combatentes se instalam no alto e, de lá, por analogia, começam a dizer que o local se parecia com o morro da favela, de Canudos. Assim surgiu o termo  e  a  categoria “favela”, que passa a ser definida sempre em termos negativos em relação à cidade formal. As favelas não teriam ruas, mas becos. Não teriam casas, mas barracos, e assim por diante.

Jornal da UFRJ: Pode-se  dizer  que  essa ideia de “civilizar” a cidade, com a exclusão de setores de baixa renda, que marcou a  gestão de Pereira Passos, contaminou o poder público desde então?

Marco Mello: Creio que sim. O  grande dístico da reforma de Pereira Passos é ‘O Rio civiliza-se’. Quer dizer, o Rio não precisa ser civilizado, ser desenvolvido, moderno, mas precisa parecer ser desenvolvido e moderno. A palavra civilização, na língua francesa, está associada ao polimento de superfície de pedra. Tanto que se diz: ‘fulano é muito civilizado, muito polido’. Tinha-se que parecer  civilizado por um problema concreto e gravíssimo. O Rio de Janeiro era um porto dos mais importantes das Américas e corria-se o risco de os navios o evitarem. Isso porque morriam tripulações inteiras de febre amarela no Rio de Janeiro. Os grandes setores associados à exportação e à importação começam a pressionar o governo por medidas na área da Saúde. Um exemplo é a Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), da UFRJ, que surge para resolver problemas bastante concretos ligados ao coração desse capitalismo nascente.

Jornal da UFRJ: Foi essa a lógica que orientou a criação das primeiras leis no Brasil para tratar da questão social?

Marco Mello: Essa é uma discussão muito interessante porque frequentemente os pesquisadores passam longe dela. Um colega do Lemetro, professor Rafael Soares Gonçalves, discorre em seu livro, lançado em Paris recentemente, acerca da construção da favela como objeto jurídico. E o ponto central da sua tese é que a favela é produzida pelo Estado. Seria talvez uma veleidade de minha parte comentar as leis porque há uma sucessão enorme de leis e decretos para regular, ou melhor, para impedir a relação do resto da cidade com essas áreas chamadas de favelas.

Jornal da UFRJ: Dê alguns exemplos.

Marco Mello: São leis que impedem, por exemplo, obras de melhorias na moradia e no acesso a essas áreas. Ou seja, o Estado precariza a habitação. Ao fazê-lo, favorece o que chamamos de “favelização”. Esse processo, portanto, é derivado da incúria do poder público em relação à moradia como um direito fundamental, um direito à cidade. Os dispositivos legais, em diferentes momentos, tinham a finalidade, na verdade, de viabilizar uma relação com o capital vinculado à especulação imobiliária.

Jornal da UFRJ: A favela sempre teve uma presença  forte no  imaginário carioca e foi tema de várias manifestações culturais. Por exemplo, no cinema, os filmes Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, da década de 1950, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, de 2003, retratam épocas distintas da realidade das favelas. É possível identificar o que mudou, de lá para cá, na sociabilidade dos moradores desses territórios?

Marco Mello: Tanto Rio 40 graus, do nosso querido Nelson Pereira dos Santos, como Cidade de Deus são obras de ficção, que tentam apreender, de modos distintos, a favela como um elemento associado à própria imagem do Rio de Janeiro. Os quadros de Di Cavalcanti também fazem isso. Do ponto de vista da sociabilidade, há vários colegas que afirmam  que houve uma  grande  transformação  nesse tipo de padrão de relação interpessoal e na relação entre diferentes grupos urbanos que fazem parte da cidade. Há quem fale de “cidade partida”. Há outros que insistem em reeditar a discussão de um historiador francês, Louis Chevalier, que escreveu um  livro, há muitos anos, chamado As classes perigosas, uma obra que associa esses territórios à criminalidade.

Jornal da UFRJ: A cidade de Rio 40 graus ficou então para trás?

Marco Mello: Um colega meu, o professor Luiz Antonio Machado da Silva, cunhou a expressão  de “sociabilidade violenta” para mostrar que as formas de sociabilidade registradas em Rio 40 graus não vigem mais. Eu, particularmente, não tenho certeza disso, embora não queira desqualifcar os modos de apreender as transformações nas relações sociais que os sociólogos e antropólogos, que fazem pesquisas na área, têm trazido para discussão. O que, de fato, parece ser uma constatação banal, é que as relações simbolicamente  polarizadas entre a favela e o asfalto se alteraram. As relações eram mesmo muito mais  entremeadas, não havia nenhuma separação marcada por uma  fronteira tão simbolicamente estruturada em torno do medo, da ideia de ‘eles’ e de ‘nós’. Ou seja, não eram relações marcadas por aquilo que podemos chamar de “aduanas urbanas”. Hoje, elas existem tanto na relação com as eufemisticamente chamadas “comunidades”, como nos bairros dos bacanas. Há ruas que foram privatizadas, ou melhor, nas quais o uso foi particularizado, porque não se trata de uma definição jurídica, mas diz respeito ao modo de uso do espaço. O espaço da rua é público, não privado, mas pode ser apropriado para uso particular, por meio de cancelas, guaritas.

Jornal da UFRJ: Cite um exemplo.

Marco Mello: A Selva de Pedra, no Leblon, que é um conjunto de 40 prédios de 13 andares voltados para uma praça pública. Foi construída em ruas públicas. Esse lugar parece um condomínio fechado, mas não é. São ruas e praças públicas. Na Selva de Pedra, há guardas particulares em cabines, guaritas e uma parafernália  eletrônica para controle de visitantes. Atrás das guaritas há uma placa onde se lê “logradouro público”, que foi colocada por determinação do Estado. Mas a verdade é que as pessoas são permanentemente dissuadidas de entrar ali.

Jornal da UFRJ: E nas favelas, como a presença do tráfico e das milícias afeta a  sociabilidade e o movimento comunitário?

Marco Mello: Uma das primeiras formas de atividade de trabalho associativo nas favelas, como política pública, foi desenvolvida por José Artur Rios, que era o chamado mutirão. Quem trouxe a discussão de mutirão foi  ele, com um argumento muito simples. Nos anos 1950, a população das favelas do entorno da cidade ainda tinham uma forte origem rural. E a única forma de trabalho coletivo e associativo que poderia ter apelo nessas favelas era o mutirão, já conhecida no mundo rural. Hoje, o movimento associativo sofre muito com a presença crescente dessa economia política do tráfico que passa a controlar as associações de moradores, na maioria dos casos. Eu já presenciei uma situação constrangedora. Em uma reunião, o pessoal da associação teve que ir pegar as chaves de um equipamento urbano público nas mãos de uma pessoa ligada ao tráfico. Isso acontece em várias favelas do Rio; as associações foram “fagocitadas” pelo tráfico, que tem a persuasão impositiva das armas.

Jornal da UFRJ: E o outro lado da moeda, isto é, as  execuções extrajudiciais, as torturas e os abusos de poder por parte das forças policiais nas favelas? Até que ponto essas práticas são um meio para manter esses setores sob controle?

Marco Mello: Isso envolve uma questão ligada ao caráter perverso de algumas das políticas públicas de segurança. Nunca podemos  esquecer  de  um  dado  fundamental, a associação do clientelismo e do tráfico com o aparato policial. O professor Michel Misse tem um argumento interessante. Ele chama de mercadoria política aquela oferecida pela polícia, na sua faceta informal, como milícia ou como corrupção policial. Isto porque se trata de vender proteção para  mercados  ilícitos, que comercializam drogas e armas. Para protegê-los, surge uma outra mercadoria, que tem um preço.

Jornal da UFRJ: E que papel tem a mídia no reforço desse tipo de política de segurança e de prática policial?

Marco Mello: Essa agenda do medo também é produzida pela imprensa. Quando examinamos os arquivos do jornal Correio da Manhã, no Arquivo Nacional, apenas no que se refere às fotografas, podemos constatar empiricamente a produção deliberada de certa imagem sobre a favela. Os jornais e suas manchetes funcionam como espantalhos urbanos. Os moradores das favelas são criminalizados e, por um processo de subjetivação extremamente perverso, passam a se autoincriminar.

Jornal da UFRJ: Quais os efeitos disso no tecido social?

Marco Mello: Certamente, isso provoca nas pessoas uma demanda por mais helicópteros policiais, blindados, “caveirões”. A metáfora da guerra que vem sendo utilizada pela polícia e pela mídia, e que convém muito em certas condições, é absolutamente inadequada. Não há nenhum analista sério que afirme que, de fato, exista uma guerra. Essa metáfora da guerra sugere um inimigo, que é a favela. A solução, claramente falaciosa, passa a ser o uso de tanques para subir as favelas. Passa a haver um clamor para ‘remover’ as favelas e as pessoas começam a dizer absurdos do tipo: ‘tem que jogar napalm nas favelas’. A favela é demonizada.

Jornal da UFRJ: Em relação aos dados sobre violência, há alguma maquiagem?

Marco Mello: Esse é um problema. O aparato policial no Rio de Janeiro resistiu durante muito tempo à estatística. Não é possível formular políticas públicas comprando “caveirão” e helicóptero sem mostrar os dados, que muitas vezes apontam em outra direção. Por exemplo, no município de São Gonçalo, onde existem muitas favelas e assentamentos de baixa renda, uma pesquisa empírica mostrou, para horror de todo mundo, que 64% dos homicídios na cidade ocorrem em ambiente doméstico. Ou seja, o que  o helicóptero blindado vai resolver nesses casos? E não é um caso único. Qualquer delegado ou policial  medianamente  informado  pode confirmar  isso. Há toda  uma manipulação de dados. O Instituto de Segurança Pública (ISP), encarregado da produção de estatísticas no estado, cujo trabalho acompanhei desde a sua fundação, sofreu inúmeros reveses. Isso aconteceu porque o levantamento de dados não  indicava a direção que o governo queria. Passou-se, então, a manipulá-los. [grifos nossos]

Jornal da UFRJ: Algo parecido acontece com a população das favelas?

Marco Mello: Sim. Segundo os dados do Instituto Pereira Passos, por exemplo, a Rocinha tem 50 mil moradores. Já de acordo com levantamento das associações de moradores a população da favela é de cerca de 170 mil. Há uma manipulação de dados, para cima ou para baixo. O Complexo da Maré tem 135 mil pessoas. Mas há favelas na América Latina com até um milhão de habitantes, como Ciudad Bolívar, em Bogotá (Colômbia). Comparativamente a algumas favelas da Zona Sul do Rio, que possuem cerca de 5 mil, não é nada. Produz-se um tipo de discurso que se parece muito com uma técnica de apavoramento.

Jornal da UFRJ: Como o senhor avalia a chamada Unidade de Polícia Pacificadora (UPP)?

Marco Mello: É interessante essa denominação, que apenas reforça a idéia da guerra. O administrador poderia ter inventado uma denominação diferente. Mas os próprios moradores demandam esse serviço, porque se ele não existe tem-se aqueles 64% de homicídios no âmbito doméstico. E sabe como a polícia classifica esse tipo de conflito? “Feijoada”! Que quer dizer, briga de família, entre conhecidos. É um conflito tido como pouco nobre para receber a atenção da polícia, que, portanto, deve se ocupar com a “guerra”, com o “criminoso”. Ela não compreende que é mediadora de conflitos e  que é um serviço  público. Como pode alguém ficar com medo da polícia, de um serviço público?

Jornal da UFRJ: No Rio, voltou com força a ideia de remoção, um termo somente utilizado, segundo o antropólogo Marcos Alvito, quando se fala de  favela, lixo e cadáver. Como senhor avalia essa questão?

Marco  Mello: Primeiramente, concordo integralmente com a observação do meu colega Marcos Alvito. Há um problema na ideia de “remoção”, pois o Estado precisa dizer para onde vai a população deslocada de sua moradia. E o Estado pode, por exemplo, ser pego em armadilhas. Por exemplo, na época em que desalojou Vila Mimosa, precisou indicar para onde ela iria. E acabou descobrindo que nenhum bairro queria a Vila Mimosa, porque ninguém quer prostituta  morando perto. Então, o Estado teve que voltar atrás e indenizá-las. Ou seja, recaiu sobre elas o ônus de ir procurar lugar para  morar. Tentaram Nova Iguaçu e acabaram na rua Ceará. Foram  recebidas a pedradas e barricadas. Mas hoje a Vila Mimosa está completamente  associada à economia  daquela  área decadente da cidade.

Jornal da UFRJ: O poder público vem buscando associar a remoção a áreas de risco. Como o senhor avalia isso?

Marco Mello: Não se deve misturar as coisas. Em uma área nobre de Niterói, uma casa de luxo, na  estrada Fróes, desabou e matou um homem. Lá existe outra casa linda, prestes a desabar, e ninguém vai falar em remoção, mas em contenção de encosta. [grifo nosso]

Jornal da UFRJ: Historicamente, a ideia de remoção paira sempre como uma ameaça sobre as classes pobres?

Marco Mello: Ela sempre esteve presente, mas de modo dissimulado, tanto no Brasil como em outros países. Fala-se de reestruturação urbana, mas não de renovação urbana, porque isso parece coisa do passado, lembra o ‘bota-abaixo’ do Pereira Passos. Fala-se em revitalização em bairros como a Lapa, mas isso implicou na ‘remoção’ de várias pessoas que moravam naquele sistema construído. Nesse processo de  estabelecimento de casas de shows, ocorreram vários conflitos. É uma área associada  ao  corredor cultural que reabilita um antigo circuito de diversão que era a Lapa. O capital do entretenimento se apropriou dessas áreas.

Jornal da UFRJ: Essa exclusão de moradores se dá pelo fato de a habitação ser tratada mais como mercadoria do que como direito?

Marco Mello: Pior do que a habitação como  mercadoria são as cidades como commodities. Esse é o processo que estamos experimentando. Eu somente fui compreender Luanda depois que ouvi a palestra de uma colega da Escola de Arquitetura de La Villette (Paris, França). Ela falou de uma viagem dela para Istambul, Marrocos, e a descrição dela me fez entender o que está acontecendo na área portuária do Rio de Janeiro e também em Maricá, onde os  espanhóis compraram uma extensa  área. As cidades realmente estão se transformando em commodities. Queiramos ou não, há um processo de internacionalização dessas áreas para a realização de um capital imobiliário.

Jornal da UFRJ: E qual o papel da universidade nessa discussão  sobre a questão urbana?

Marco Mello: A universidade produz conhecimento, mas não é um polo de decisão política, não executa políticas públicas. A universidade disponibiliza o conhecimento, mas não sabe  se o agente público vai dialogar seriamente com a produção acadêmica. Às vezes, ele prefere uma  relação com as organizações não-governamentais (ongs), o que considero uma perversão do espaço público. Essas organizações têm acesso a uma mina de dinheiro para fazer supostamente política pública. Em cidades como Paris, por exemplo, nenhum morador vai achar que um organismo desse tipo pode substituir a política pública que ele demanda. No Brasil, se construiu essa relação com as ONG, com a “demonização”, inclusive, da universidade, considerada pesada, complexa e burocrática. É assim que se vai justificando a aproximação do poder público com elas.

Jornal da UFRJ: Por que o poder público não consegue massificar efetivamente o acesso à habitação de qualidade para as faixas de baixa renda?

Marco Mello: Isso deveria ser absolutamente banal do ponto de vista da função redistributiva do Estado. A imprensa publicou recentemente que o município de Niterói tem um dos mais altos impostos Territorial e Urbano (IPTU) do Brasil. Ao mesmo tempo, foi um dos que mais sofreu com  deslizamentos e mortes por causa das chuvas que atingiram o Rio de Janeiro no início de abril. Isso evidencia o caráter perverso da gestão, porque se deveria ter políticas urbanas muito mais  adequadas. Faltou  planejamento? Sim. Mas, como planejar políticas públicas urbanas para a área de transportes, por exemplo, se essa função fica a cargo de empresas privadas? Como pensar em planejamento hidroviário se o dono da empresa de transporte por barcas é, também, o dono da Viação 1001? Esse é um processo predatório da ambiência das cidades levado a cabo por empresários e que impede o planejamento urbano.

Jornal da UFRJ: Como enfrentar esse vácuo no planejamento?

Marco Mello: O Estado não pode abrir mão de planejar, e de modo articulado. A política de habitação não pode estar dissociada da política de urbanização. Há também o problema da educação, que é importante. No fnal dos anos 1970 e início dos anos 1980, tivemos no Rio de Janeiro uma  formulação de política  pública  nessa  área, com a criação dos Centros Integrados de Educação Popular (Ciep), tendo à frente Darcy Ribeiro e Maria Yedda Linhares. A ideia era implantar a educação integral e algumas soluções para construir os Cieps em favelas passava, por exemplo, pelo plano inclinado. Muitos as ridicularizaram, como se os moradores dessas áreas não merecessem esse tratamento.

Jornal da UFRJ: Em sua opinião, a solução seria então global, abrangendo diversas políticas públicas? E as soluções pontuais, baseadas nas chamadas boas práticas, como o Favela-Bairro, estariam então esgotadas?

Marco Mello: Acho que não. Um dos urbanistas que concebeu esse “Ovo de Colombo” chamado Favela-Bairro foi o nosso colega Sérgio Magalhães, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ. É um projeto que surgiu a partir de questões muito práticas. Por exemplo, como acabar com as enchentes da praça da Bandeira. E elas não vão acabar caso não se resolva o problema da coleta de lixo nos morros do Borel, da Formiga, entre outros. Querendo-se ou não, são localidades que fazem parte da cidade, não podem ser excluídas. As soluções globais não excluem as intervenções pontuais. Não se pode jogar a criança fora junto com a água do banho.

Fonte: Jornal da UFRJ